palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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G.K. Chesterton fala sobre o verdadeiro prazer de beber

Pieter Breughel, Detail from "The Wine of St. Martin's Day," ca.

Omar e a vinha sagrada

UMA NOVA MORALIDADE veio ao nosso encontro com certa violência e se relaciona ao problema da bebida alcoólica. Os entusiastas do assunto variam desde o homem que é posto para fora dos pubs ingleses às 00h30 até a dama que ataca os balcões dos bares com um machado. Em tais discussões, quase sempre sentimos que uma postura moderada e bastante sábia é dizer que o vinho, ou coisas do tipo, devem ser ingeridos como remédio. Atrevo-me a discordar disso com particular veemência. A forma genuinamente perigosa e imoral de tomar vinho é tomá-lo como remédio. E por esta razão: se alguém bebe vinho por prazer, está tentando obter algo excepcional, algo que não espera a qualquer hora do dia, algo que, a menos que seja um tanto louco, não tentará obter a qualquer hora do dia. Mas se alguém bebe vinho para ter saúde, está tentando obter algo natural; ou seja, algo sem o que não consegue viver; algo sem o que dificilmente passará sem consumir. Pode ser que aquele que não tenha visto o êxtase de ficar extático não fique seduzido; é mais fascinante vislumbrar o êxtase de estar normal. Se houvesse um ungüento mágico, e o mostrássemos a um homem forte e lhe disséssemos: “Isto te permitirá saltar do Monumento”,145 sem dúvida saltaria, mas não ficaria saltando durante o dia todo para alegrar o centro da cidade. Mas se mostrássemos o ungüento a um cego e lhe disséssemos, “Isto te permitirá recobrar a visão”, essa pessoa ficaria fortemente tentada. Ser-lhe-ia difícil não esfregá-lo nos olhos quando ouvisse o galopar de um nobre cavalo ou o cantar de pássaros ao alvorecer. É fácil não permitir que alguém tenha prazeres; difícil é negar a aquisição da normalidade. Por isso, e todos os médicos sabem, é sempre perigoso dar bebida alcoólica aos doentes mesmo quando precisam. Inútil dizer que não considero que dar bebida alcoólica como estimulante a um doente seja necessariamente injustificado. Mas considero o dar bebidas alcoólicas a pessoas saudáveis como divertimento um uso apropriado e muito mais coerente com a saúde.

A regra sadia nessa questão parece ser a mesma de muitas outras regras saudáveis – um paradoxo. Beba por estar feliz, mas nunca por se sentir extremamente infeliz. Nunca beba quando estiver infeliz por não ter uma bebida, ou irá parecer um triste alcoólatra caído na calçada. Mas beba quando, mesmo sem a bebida, estaria feliz, e isso o tornará parecido com um risonho camponês italiano. Nunca beba por precisar disso, pois tal ato racional é o caminho para a morte e o inferno. Mas beba por não precisar disso, pois beber irracionalmente é a antiga fonte de saúde do mundo.

Por mais de trinta anos o vulto e a glória de uma grande figura oriental têm sido impostos à literatura inglesa. A tradução de Fitzgerald dos Rubáiyát de Omar Khayyām146 concentrou, com imorredoura comoção, todo o sombrio e desnorteado hedonismo de nossa época. Seria simplesmente inútil falar do esplendor literário da obra; poucos são os livros dos homens que conseguiram combinar tão bem a alegre combatividade de um epigrama com a vaga tristeza de uma canção. Mas, sobre a influência filosófica, ética e religiosa, que é tão grande quanto o esplendor, gostaria de dar uma palavra, e tal palavra, confesso, é de uma hostilidade intransigente. Há muitas coisas que podem ser ditas contra o espírito do Rubáiyát, e contra sua enorme influência. Mas uma acusação se destaca das demais de forma nefasta – uma verdadeira desgraça para a obra, uma calamidade genuína para todos. Tal acusação seria o golpe terrível que o grande poema desferiu na sociabilidade e na alegria da vida. Alguém já chamou Omar de “o vetusto persa jubilosamente triste”.147 Triste é; mas não jubiloso, em nenhum dos sentidos da palavra. Tem sido um inimigo da alegria pior que os puritanos.

Um oriental pensativo e elegante repousa debaixo de uma roseira, com uma garrafa de vinho e seu rolo de poemas. Pode parecer estranho que nossos pensamentos, no momento em que visualizamos tal cena, se voltem à sombria cabeceira do leito em que o médico oferece ao doente um cálice de brandy. Pode parecer ainda mais estranho que tal pensamento possa se voltar para o trêmulo vagabundo com um copo de gim em Houndsditch.148 Contudo, uma grande unidade filosófica envolve os três elementos num elo maligno. O beberricar vinho de Omar Khayyām é mau, não porque seja um sorvo de vinho. É ruim, e muito nocivo, porque é um beber medicinal. É o beber de um homem que bebe porque não é feliz. Seu vinho é o que o exclui do universo, não aquilo que lho revela. Não é um beber poético, alegre e instintivo; é um beber racional, tão prosaico quanto um investimento, tão insípido quanto um cálice de camomila. Infinitamente superior, do ponto de vista do sentimento, embora não do estilo, surge o esplendor de uma antiga canção boêmia inglesa:

Then pass the bowl, my comrades all,
And let the zider vlow.149

Pois esta canção era entoada por homens felizes, para expressar o valor das coisas verdadeiramente valorosas, da irmandade e loquacidade, e do breve e cordial lazer do pobre. É claro que a maior parte das acusações mais disparatadas dirigidas à moralidade omariana são tão falsas e pueris quanto geralmente são tais acusações. Um crítico, cuja obra já li, teve a incrível insensatez de considerar Omar ateu e materialista.150 É quase impossível para um oriental ser uma coisa ou outra. O oriente conhece metafísica muito bem para que isso aconteça. A verdadeira objeção filosófica que um cristão poderia apresentar à religião de Omar não é, por certo, a de não conceder um lugar para Deus, mas sim a de lhe dar espaço demais. É de um teísmo terrível que não consegue imaginar nada exceto a divindade, e nega completamente os elementos da personalidade e da vontade humana.

A bola não questiona “sim” ou “não”,
Mas vai aqui e ali, conforme bate o jogador;
E ele, que a lançou neste campo,
Ele tudo sabe – ele sabe – ele sabe!151

Um pensador cristão como Agostinho ou Dante se oporia a isso porque ignora o livre-arbítrio, que é o valor e a dignidade da alma. A contenda da alta cristandade com esse tipo de ceticismo, no mínimo, não é porque o ceticismo nega a existência de Deus; é porque nega a existência do homem.

No culto dos que buscam o prazer pessimista, o Rubáiyát tem lugar de destaque em nossa época; mas não está sozinho. Muitas das inteligências mais brilhantes de hoje têm nos incitado a semelhante desfrutar súbito de prazeres excepcionais. Walter Pater152 disse que estamos todos sob sentença de morte, e o único curso possível é o desfrutar de deliciosos momentos por amor aos próprios momentos. Semelhante lição foi ensinada pela poderosa e infeliz filosofia de Oscar Wilde. É a religião do carpe diem.153 No entanto, a religião do carpe diem não é a religião das pessoas felizes, mas a das absolutamente infelizes. A grande alegria não colhe o botão de rosas quando pode;154 seus olhos estão fixos na rosa imortal vista por Dante.155 A grande alegria traz em si o sentido da imortalidade; o próprio esplendor da juventude é a sensação de que há muito espaço para esticar as pernas. Em toda a grande literatura cômica, em Tristram Shandy156 ou Pickwick,157 há um senso de espaço e incorruptibilidade; sentimos que as personagens são seres imortais numa lenda interminável.

É bem verdade, claro, que uma felicidade pungente surge, sobretudo, em alguns momentos fugazes; mas não é verdade que deveríamos pensá-los como passageiros, ou desfrutá-los simplesmente “por amor aos próprios momentos”. Fazer isso é racionalizar a felicidade e, portanto, destruí-la. A felicidade é um mistério, como a religião, e nunca deve ser racionalizada. Suponhamos que um homem experimente um esplêndido momento de prazer. Não quero dizer algo com um verniz de felicidade; falo de algo como uma violenta felicidade interior – uma felicidade quase dolorida. Alguém pode ter, por exemplo, um momento de êxtase no primeiro amor, ou um momento de vitória numa batalha. O amante desfruta o momento, mas não por causa do momento. Ele o desfruta pela mulher, ou para o próprio bem. O guerreiro desfruta o momento, mas não pelo momento; desfruta-o por causa da bandeira. A causa que a bandeira representa pode ser tola e passageira; o amor pode ser apenas um arrebatamento juvenil, e durar uma semana. Mas o patriota acredita na bandeira como eterna. O amante vê seu amor como algo que não pode terminar. Esses momentos são repletos de eternidade; esses momentos são jubilosos porque não parecem transitórios. Uma vez que os olhemos como momentos à maneira de Pater, se tornam tão frios quanto Pater e seu estilo. Os homens não podem amar coisas mortais. Só conseguem, por um instante, amar as coisas imortais.

O erro de Pater é revelado em sua expressão mais famosa. Ele nos convida a “arder com o inflexível fulgor de uma pedra preciosa”.158 O brilho nunca é rijo e nunca se parece com uma jóia – não pode ser manuseado ou organizado. Do mesmo modo, as emoções humanas nunca são inflexíveis e nunca se parecem com jóias. São sempre perigosas, assim como o brilho das chamas, ao toque ou mesmo à averiguação. Há somente um modo pelo qual as paixões podem ser rijas e se assemelharem às pedras preciosas: tornarmo-nos frios como os diamantes. Até então, nenhum golpe aos amores e às gargalhadas espontâneas dos homens foi tão esterilizante quanto esse carpe diem dos estetas. Para qualquer tipo de prazer, é preciso um espírito totalmente diferente; certa timidez, certa esperança vaga, certa expectativa infantil. Pureza e simplicidade são essenciais às paixões – sim, mesmo às vis paixões. Até o vício exige uma espécie de virgindade.

O efeito de Omar (ou de Fitzgerald) sobre o outro mundo pode ser afastado, mas sua mão sobre este mundo tem sido pesada e paralisante. Os puritanos, como disse, são muito mais alegres. Os novos ascetas que seguiram Thoreau159 ou Tolstói160 são companhias mais cheias de vida; pois, embora o abandono à bebedeira e aos semelhantes luxos nos possa parecer uma negação inútil, ele pode legar ao homem inumeráveis prazeres naturais, e, acima de tudo, submetê-lo ao poder natural da felicidade. Thoreau podia apreciar o nascer do sol sem uma xícara de café. Se Tolstói não podia admirar o casamento, ao menos era bastante saudável para admirar a lama. A natureza pode ser apreciada mesmo sem a maioria dos confortos naturais. Um belo bosque não necessita de vinho. No entanto, nem a natureza nem o vinho, nem nada mais, pode ser apreciado se assumirmos uma postura errada em relação à felicidade, e Omar (ou Fitzgerald) tinha uma postura errada em relação à felicidade. Ele e aqueles a quem vem influenciando não percebem que se pretendemos ser verdadeiramente felizes, devemos acreditar que há uma felicidade eterna na natureza das coisas. Não conseguimos apreciar plenamente nem mesmo um pas-de-quatre161 num baile público a menos que acreditemos que as estrelas estejam dançando a mesma música. Ninguém pode ser realmente hilário senão o homem sério. “O vinho”, diz a Escritura, “alegra o coração do homem”,162 mas somente do homem que tem coração. O chamado espírito elevado163 é possível somente ao homem espiritual. No fim das contas, um homem não pode se alegrar com nada, a não ser com a natureza das coisas. No fim das contas, um homem não pode se alegrar com nada, a não ser com a religião.

Outrora, na história do mundo, os homens realmente acreditaram que as estrelas dançavam ao som da música dos templos, e dançaram como nunca se dançara desde então. A respeito desse antigo eudaimonismo164 pagão, o sábio do Rubáiyát tem tão pouca relação quanto a tem com um cristão de qualquer denominação. Não é um adorador de Baco nem um santo. A igreja de Dionísio era fundada num sério joie-de-vivre como a de Walt Whitman.165 Dionísio fez do vinho não um remédio, mas um sacramento. Jesus Cristo também fez do vinho não um remédio, mas um sacramento. Mas Omar o fez não um sacramento, mas um remédio. Festeja não porque a vida é prazerosa; diverte-se porque não está feliz. Diz: “Bebei, pois não sabeis de onde vindes nem por quê. Bebei, pois não sabeis quando nem aonde ireis”.166 Bebei, porque as estrelas são cruéis e o mundo é tão sem propósito quanto um pião. Bebei, porque não há nada em que valha a pena crer, nada por que lutar. Bebei, porque todas as coisas se passam numa regularidade ignóbil e numa paz nociva. Dessa maneira, o poeta nos oferece a taça que está em suas mãos. E no altar-mor da cristandade se encontra outra personagem, em cujas mãos também há um cálice de vinho. Ele diz: “Bebei, pois todo o mundo é tão vermelho quanto o vinho, tão carmesim quanto o amor e a ira de Deus. Bebei, pois já soam as trombetas da batalha e esta é a taça transbordante. Bebei, pois este é o meu sangue, o sangue da nova aliança que é derramado por vós. Bebei, pois Eu sei de onde vindes e por quê. Bebei, pois Eu sei aonde ireis e quando”.
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FONTE:  Hereges (Cap. VII), de G.K. Chesterton. Ed. Ecclesiae. Tradução:  Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito.

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NOTAS:

145 Referência ao monumento ao grande incêndio de Londres, construída por Sir Christopher Wren (1632–1723) entre 1671 e 1677. O monumento, erigido próximo ao local onde iniciou o grande incêndio de Londres em 1666, é uma coluna de pedra em estilo dórico e tem cerca de 60 metros de altura.
146 Edward Fitzgerald (1809–1883) publicou, em 1859, a versão poética traduzida para o inglês da obra Rubáiyát do poeta iraniano Omar Khayyām (1048–1131) e tal trabalho se tornou imensamente popular, embora a obra guarde pouca relação com o texto original.
147 Chesterton, sem dar crédito, cita o livre-pensador secularista e editor George William Foote (1850–1915), anteriormente mencionado no capítulo II, que se refere ao autor persa como “the sad-glad old persian” no ensaio “Rose-water Religion” de 1894.
148 Rua de Londres que seguia o mesmo trajeto do antigo fosso romano, construído fora dos muros de Londres. No século XIX era o local onde se aglomeravam miseráveis e bêbados.
149 Algo como: “Então passem a taça, camaradas, / E deixem a sidra rolar”. A graça está no último verso, que reproduz a fala de bêbado: “and let the zider vlow” ao invés de “and let the cider flow”.
150 Provável referência à obra de John M. Robertson (1859–1933), jornalista inglês, defensor do racionalismo e do secularismo. Foi membro do parlamento pelo Partido Liberal e discípulo de Charles Bradlaugh (1833–1891). Em A Short History of Freethought Ancient and Modern, cujo primeiro volume apareceu em 1899, há um capítulo “Freethought under Islam” onde o autor se refere ao persa nesses termos.
151 A presente estrofe é uma tradução literal (e livre) da quadra LXX de Fitzgerald que diz: “The Ball no Question makes of Ayes and Noes, / But Right or Left as strikes the Player goes; / And He that toss’d Thee down into the Field, / He knows about it all–HE knows–HE knows!”. Atualmente, vários estudiosos já contestaram a seriedade desta tradução, dentre eles, Jorge Luis Borges (1899–1986) que, num ensaio chamado “O enigma de Edward Fitzgerald”, atribuiu ao inglês a “invenção” dos Rubáiyát. A presente estrofe, se confrontada com várias traduções para o português da mesma obra, parece não corresponder a nenhuma passagem. Se fizermos uma tradução mais literal do poema diretamente do persa o trecho ficaria da seguinte forma: “No jogo cósmico de polo és a bola / À direita e à esquerda do bastão fica a tua vocação / É ele quem te move, levanta ou faz cair / Ele é aquele, o único, que tudo sabe”.
152 Walter Horatio Pater (1839–1894) foi um ensaísta, crítico de arte e escritor de ficção inglês. Neste e nos parágrafos seguintes, Chesterton está fazendo referência à famosa conclusão de Pater na obra Studies in the History of Renaissance de 1873, chamado a partir da segunda edição de The Renaissance: Studies in Art and Poetry. Sobre o lema e filosofia de Pater, ver capítulo XVII.
153 Expressão tirada de um verso do poeta Horácio (65 a.C.–8 a.C.) em Odes, Livro I, 11, 8 que diz: “Carpe diem quam minimum credula postero” [Colhe o instante, sem confiar no amanhã]. Interpretada como “aproveite o momento” ou “desfrute o dia”.
154 Referência aos versos de abertura do poema “To the Virgins, to Make Much of Time” de Robert Herrick (1591–1674): “Gather ye rosebuds while ye may / Old Time is still a-flying; / And this same flower that smiles today, / Tomorrow will be dying”.
155 Referência à visão que o poeta tem da rosa mística ao centro da rosa dos beatos como luz, fulgurante, no Empíreo. Ver canto XXX e XXXI do “Paraíso” na Divina Comédia de Dante Alighieri (1265–1321).
156 Referência ao romance The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman de Laurence Sterne (1713–1768), fortemente influenciado por François Rabelais (1494–1553) e Miguel de Cervantes (1547–1616). A obra compreende nove volumes e influenciou muitos escritores modernistas como Virginia Woolf (1882–1941) e James Joyce (1882–1941).
157 Referência ao romance de Charles Dickens (1812–1870), The Pickwick Papers, lançado em formato de folhetim de 1836 a 1837, em que o autor faz várias críticas à sociedade vitoriana.
158 A expressão aparece na conclusão da já citada obra de Walter Pater sobre a Renascença.
159 Henry David Thoreau (1812–1862) foi um poeta, historiador e filósofo norte-americano, cuja tese da desobediência civil influenciou o pensamento político de muitos filósofos e ativistas como seu contemporâneo russo, Liev Tolstói, e posteriormente, Gandhi (1869–1948) e Martin Luther King, Jr. (1929–1968). Também defendia a volta à natureza, o abandono do desperdício e da ilusão para descobrir as necessidades essenciais da vida.
160 Liev Nikoláievich Tolstói (1828–1910) foi um dos grandes escritores russos. No fim da vida se tornou um pacifista e pregou uma vida simples em contato com a natureza. Chesterton discorrerá sobre o autor, neste livro, no capítulo X.
161 Um divertissement de balé com quatro bailarinos, cuja primeira coreografia ocorreu em 1845, em Londres, e alcançou enorme sucesso.
162 Sl 103, 15.
163 Há, nesta passagem, um duplo sentido intraduzível, pois o termo spirits, além de indicar disposição, temperamento, vigor ou vivacidade, em inglês pode significar bebida alcoólica.
164 Doutrina segundo a qual a felicidade é o valor supremo, critério último da razão e objetivo da vida humana.
165 Walt Whitman (1819–1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado “o pai do verso livre”. Embora fosse defensor de um estilo de vida “vagabundo”, propunha a abstinência alcoólica. Em termos de religião era bastante cético em relação às igrejas; politicamente, propunha uma visão igualitária das raças. Na principal obra, Leaves of Grass, de 1855, podem ser vistos traços de homossexualismo, fato que escandalizou seus contemporâneos.
166 Quadra LXXIV da tradução de Fitzgerald. Em inglês: “Drink, for you know not whence you come nor why. / Drink, for you know not when you go nor where”.

O Pecado Favorito

O advogado do diabo

— Você já assistiu ao filme “O Advogado do Diabo”?

— Aquele com o Al Pacino?

— Esse mesmo.

— Já vi. Por quê?

— Lembra qual a declaração final do Diabo?

— Claro: “A vaidade é definitivamente o meu pecado favorito”.

— Pois é, acho que o pecado favorito do demônio que me atormenta é a luxúria.

— Ah, é bem mais fácil de lidar com esse. Sabe como se faz?

— Não.

— É só dar um chute no saco do demônio.

— Ah, tá certo, me ajudou muito.

— Sério. Posso fazer isso agora mesmo se você quiser.

— Beleza, manda.

E o amigo lhe dá um forte chute no saco, fazendo-o desabar ao chão. Enquanto rola de tanta dor, as mãos segurando os testículos, murmura entre gemidos:

— Seu filho da puta, que brincadeira idiota!

— Mas não foi brincadeira: qual saco você acha que o demônio da luxúria usa?

— Run, Forrest, run!

O amigo sai correndo pela coxia enquanto o outro, gemelhicando, rasteja vagarosamente em seu encalço para fora do palco. Cai o pano. Ninguém ri, ninguém aplaude, afinal, para o público de hoje já não existem demônios, pecados e, sobretudo, colhões — não houve a mais mínima identificação, não entenderam nada.

Fim.

Mário Ferreira dos Santos: Deus e o índio do Mackenzie

Reproduzimos a seguir as palavras de Grouard, citadas por Foulquié, expressivas e de grandes sugestões. Pertencem ao livro “Souvenirs de mes soixant ans d’apostolat”:

« Um índio de Mackenzie disse-me um dia:

— Padre, antes de te ter visto, eu sabia que Deus existe.

— Como o sabias? Creio que fui o primeiro a te falar de Deus.

— Na verdade — retrucou — antes de ti, ninguém me havia falado nele, e contudo, eu sabia que há um Deus.

Um dia, quando tinha catorze ou quinze anos, fui à caça com o meu arco e minhas flechas. Conhecia os bosques, os rios, os lagos por onde havia passado, buscando matar alguma caça. Nesse dia, no verão, cheguei à borda de um lago cercado de belas árvores. Patos desciam sobre a água, o sol brilhava no céu sem nuvens; lá longe, montanhas elevavam-se, em variadas alturas. Detendo-me, contemplei tudo isso com um imenso prazer. Subitamente, a idéia me veio: “Quem fez tudo isso? Não fomos nós, nem tampouco os ingleses, pois são homens semelhantes a nós. É preciso que haja alguém mais forte que todos os homens que tenha feito isso”. Vês — acrescentou o índio — eu sabia que essas florestas, esses lagos, esse sol, não haviam sido feitos por si sós. Eu não podia explicar-me mais corretamente. Mas, quando tu nos ensinaste: “Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra”, eu compreendi logo e disse a mim mesmo: “Ei-lo; eu sabia que ele existia”.»

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Trecho de “O Homem Perante o Infinito (Teologia)”, de Mário Ferreira dos Santos.

Paul Harvey: “Se eu fosse o Diabo”

G.K. Chesterton e A História de um Detetive

G.K. Chesterton

Gabriel Syme não era apenas um detetive que pretendia ser poeta, era um poeta que se tornara detetive. Nem tampouco era hipócrita o seu ódio à anarquia. Ele era daqueles que cedo na vida são levados a tomar uma atitude demasiado conservadora por causa da loucura confusa da maioria dos revolucionários. Não chegara a ela devido a uma calma tradição, a sua respeitabilidade era espontânea e súbita, uma revolta contra a revolta. Provinha de uma família de caturras, na qual os membros mais idosos tinham as ideias mais modernas. Um dos seus tios passeava sempre sem chapéu, outro fizera uma tentativa, mal sucedida, de passear com chapéu e sem mais nada. O pai cultivava a arte e a realização de si próprio, a mãe dedicava-se à simplicidade e à higiene. Daí resultou que a criança, durante os seus primeiros anos, desconheceu qualquer bebida entre os extremos do absinto e do cacau, ambas as quais detestava cordialmente. Quanto mais a mãe pregava uma abstinência ultrapuritana, mais o pai se expandia numa relaxação ultrapagã, e pela altura em que a primeira chegara ao ponto de impor o vegetarianismo, o último chegara quase a defender o canibalismo. Gabriel, vendo-se cercado desde a infância por toda a espécie possível de revolta, tivera também de se revoltar, e seguira o único caminho livre: o do equilíbrio. Mas restava-lhe uma dose suficiente do sangue daqueles fanáticos para tornar o seu protesto em prol do senso comum demasiado feroz para ser sensato. O seu ódio à anarquia moderna fora também coroado por um acidente. Aconteceu que ia a passar na rua no momento em que se deu um atentado dinamitista. Por momentos ficara cego e surdo e, quando o fumo se dissipou, vira as janelas partidas e os rostos a sangrar.

Depois deste incidente continuou a sua vida do costume sossegado, cortês, bastante amável -, mas havia um sector do seu cérebro que não regulava bem. Não encarava os anarquistas como a maior parte de nós o fazemos, como um punhado de indivíduos mórbidos, que aliam a ignorância ao intelectualismo. Encarava-os como um perigo enorme e impiedoso, como uma invasão chinesa. Despejava continuamente nos jornais, e nos seus cestos dos papéis, uma série de contos, versos e artigos violentos precavendo os homens contra este novo dilúvio de negação barbárica. Não parecia, porém, que se aproximasse do inimigo, nem tão-pouco de um modo de vida. Quando passeava ao longo do cais do Tamisa, mordendo amargamente um charuto barato e meditando sobre o avanço da Anarquia, não havia anarquista de bomba na algibeira que fosse mais selvagem ou mais solitário do que ele. De fato, imaginava sempre o Governo só e desesperado, encurralado num beco sem saída. E era demasiado quixotesco para se importar com ele se assim não fosse.

Passeava um dia no cais, sob um pôr de Sol vermelho-escuro. O rio vermelho reflectia o céu vermelho, e ambos reflectiam a sua ira. Na realidade o céu estava tão escuro e a luz no rio relativamente tão brilhante, que a água quase parecia uma chama mais viva que o pôr de Sol que nela se espelhava. Parecia uma torrente de fogo serpenteando sob as vastas cavernas de um país subterrâneo. SYme, naquele tempo, andava mal vestido. Usava um chapéu alto fora de moda, andava embrulhado num sobretudo preto e roto, ainda mais fora de moda, e aquele vestuário dava-lhe um aspecto de cínico de romance de Dickens ou Bulwer Lytton. A barba e o cabelo amarelado também andavam mais hirsutos e despenteados do que quando, muito mais tarde e já aparados e penteados, apareceram nos jardins de Saffron Park. Pendia-lhe dos dentes cerrados um charuto negro, esguio e comprido, comprado no Soho por dois pence, e no conjunto passava por um espécime muito satisfatório dos anarquistas a quem votara guerra santa. Foi talvez por isso que um polícia se dirigiu a ele e lhe deu as boas-tardes. Syme, numa das suas crises de temor mórbido pela sorte da humanidade, pareceu picado pela simples solidez do automático guarda, um mero vulto azulado no crepúsculo.

— Com que então boa tarde? — disse rispidamente. Vocês seriam capazes de chamar boa-tarde ao fim do mundo. Olhe para aquele pôr de Sol vermelho de sangue e para o rio sangrento! Mesmo que se tratasse de fato de sangue humano, você continuaria na calma, à procura de um pobre inocente vagabundo a quem pudesse mandar circular. Vocês, os polícias, são cruéis para os pobres mas, se não fosse a vossa calma, talvez me sentisse capaz de até essa crueldade perdoar.

— Se somos calmos é porque temos a calma da resistência organizada.

— Eh? — proferiu Syme, boquiaberto.

— O soldado tem de ser calmo no mais aceso da batalha. A compostura do exército é a ira da nação.

— Valha-me Deus, as Board-Schools! Isto é que é a educação laica?

— Não — respondeu tristemente o polícia. — Nunca tive nenhuma dessas regalias, as Board-Schools ainda não existiam no meu tempo. Receio que a educação que recebi fosse muito grosseira e antiquada.

— Onde a recebeu?

— Oh, em Harrow. As simpatias de classe que, apesar de todas as suas falsidades, são, em tantos homens, dos sentimentos mais reais, manifestaram-se em Syme antes que ele as pudesse refrear.

— Mas, meu Deus, homem! Você nunca devia ser polícia.

o guarda suspirou e abanou a cabeça.

— Bem sei — disse solenemente –, bem sei que não sou digno.

— Mas por que se alistou na Polícia? — inquiriu Syme, com curiosidade malcriada.

— Pela mesma razão por que você a insultou. Descobri que no serviço havia um lugar especial para aqueles cujos receios pela humanidade se relacionavam mais com as aberrações do intelecto científico do que com as erupções, normais e desculpáveis, se bem que excessivas, da vontade humana. Espero que me faça compreender.

— Se pergunta se se exprime com clareza, suponho que assim é. Mas agora, se quer dizer que se faz compreender, isso nunca. Como explica que um homem como você esteja, de capacete azul na cabeça, a falar de filosofia junto às margens do Tamisa?

— É evidente que não viu falar nos mais recentes métodos do nosso sistema policial, e não me admiro, pois não os revelamos às classes educadas, pois nelas se encontram a maior parte dos nossos inimigos. Mas parece-me que você atravessa o estado de espírito apropriado. Creio que está quase a unir-se a nós.

— Unir-me a quem?

— Vou-lhe dizer — respondeu o polícia com lentidão. — A situação é a seguinte: à testa de uma das nossas repartições está um dos mais célebres detetives europeus, que é há muito da opinião que uma conspiração puramente intelectual brevemente ameaçará a própria existência da civilização. Está certo de que os mundos artísticos e científicos se uniram silenciosamente numa cruzada contra a família e contra o Estado. Em vista disto, formou um corpo especial de polícias, que são simultaneamente filósofos, e é seu dever observar o início desta conspiração, não só no sentido criminal, como também no controverso. Eu próprio sou democrático e concebo perfeitamente o que vale o homem vulgar em assuntos de valor ou virtude vulgares. Mas é óbvio que não seria conveniente empregar polícias vulgares numa investigação que é também uma caçada à heresia.

Nos olhos de Syme brilhava curiosidade simpatizante.

— Que fazem então?

— O trabalho do polícia filósofo e ao mesmo tempo mais audacioso e mais subtil que o do polícia vulgar. Este vai aos tascos prender ladrões, nós vamos aos chás de artistas descobrir pessimistas. O detetive vulgar descobre, por uma agenda ou por um diário, que se cometeu um crime. Nós, num livro de sonetos, descobrimos que se vai cometer um crime. Temos de descobrir a origem desses horríveis pensamentos que empurram os homens para o fanatismo e o crime intelectuais. Chegámos mesmo a tempo de evitar o atentado de Hardepool e isso deve-se exclusivamente ao fato de o nosso Mr. Wilks (um rapazinho muito esperto) ter compreendido perfeitamente um poema.

— Quer dizer que de fato há assim hoje tanta relação entre o crime e o intelecto?

— Você não é bastante democrático, mas tinha razão quando há pouco dizia que o nosso tratamento normal do criminoso pobre é um tanto brutal. Confesso-lhe que muitas vezes me aborreço com o meu ofício, quando vejo que ele é uma guerra perpétua ao ignorante e ao desesperado. Mas este nosso novo movimento é um caso muito diferente. Nós negamos a presunçosa concepção inglesa de que os criminosos perigosos são os sem educação. Lembramo-nos dos imperadores romanos, dos príncipes envenenadores da Renascença, e dizemos que o criminoso mais perigoso é o educado. Dizemos que, presentemente, o criminoso mais perigoso é o filósofo moderno, sem o mínimo respeito pela lei. Comparados com ele, os gatunos e os bígamos são indivíduos essencialmente morais, e eu estou de alma e coração com eles. Aceitam a ideia essencial acerca do homem, mas buscam-na erradamente. Os ladrões respeitam a propriedade, apenas desejam que ela se torne sua, a fim de a poderem respeitar melhor. Mas os filósofos detestam a propriedade na sua essência, querem destruir a própria ideia de possessão pessoal. Os bígamos respeitam o casamento, caso contrário não se sujeitariam à formalidade, altamente cerimoniosa e até ritual, da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento por ser casamento. Os assassinos respeitam a vida humana, somente desejam atingir neles próprios uma maior plenitude dela pelo sacrifício do que lhes parece serem vidas inferiores. Mas os filósofos odeiam a vida em si, tanto a própria como a dos outros.

Syme bateu as mãos.

— Que verdade isso é! Sentia-o desde a minha adolescência, mas nunca fui capaz de o exprimir bem. O criminoso vulgar é um homem mau, mas ao menos é, se assim se pode dizer, um homem condicionalmente bom. Segundo ele, se um único e determinado obstáculo fosse removido, digamos um tio rico, estaria pronto a aceitar o mundo tal qual ele é e a louvar a Deus. É um reformador mas não um anarquista, quer limpar o edifício mas não destruí-lo. O filósofo maldoso não deseja alterar as Coisas, mas sim aniquilá-las. Em verdade, o mundo moderno conservou todas as partes do trabalho policial que são de fato opressivas e ignominiosas: a perseguição dos pobres, a espionagem dos infortunados, e abandonou a sua obra mais digna, o castigo de poderosos traidores contra o Estado e de poderosos heresiarcas contra a Igreja. Os modernos dizem que não devemos punir os heréticos. A minha única dúvida é se teremos o direito de punir mais alguém.

— Mas isto é absurdo! — gritou o polícia, apertando as mãos uma na outra, com uma excitação invulgar em pessoas do seu físico e uniforme. — Mas isto é intolerável! Não sei o que faz, mas está decerto desperdiçando a sua vida. Você deve ir, você vai alistar-se no nosso corpo especial contra a anarquia. Os exércitos desta estão nas nossas fronteiras, o seu golpe está pronto a ser vibrado. Um momento mais e pode perder a glória de trabalhar connosco, talvez a glória de morrer com os últimos heróis do mundo.

— É de fato uma oportunidade que se não deve perder concordou Syme –, mas eu ainda não percebi bem. Sei tão bem como qualquer outro que o mundo moderno está cheio de homenzinhos sem lei e de movimentozinhos loucos, mas, sendo todos bestiais, têm em geral o mérito de estar em desacordo uns com os outros. Em que se baseia para dizer que eles conduzem um exército ou preparam um golpe? O que é esta anarquia?

— Não a confunda com essas ocasionais erupções dinamitistas, vindas da Rússia e da Irlanda, que são na realidade erupções de homens oprimidos, se bem que enganados. Isto é um vasto movimento filosófico composto de dois anéis, um exterior, outro interior. Pode até chamar aos do anel exterior os laicos e aos do interior os sacerdotes. Eu prefiro dizer que o anel exterior é a secção inocente, e que o anel interior é a secção supremamente culpada. O anel exterior, a grande massa dos adeptos, é apenas de anarquistas, isto é, homens que crêem ter sido a felicidade humana destruída por regras e fórmulas. Crêem que todos os males que provêm dos crimes humanos resultam do sistema que lhes chamou crimes. Não acreditam que o crime criou o castigo, mas sim que o castigo criou o crime. Crêem que um homem pode seduzir sete mulheres e conservar-se tão inocente como as flores primaveris, que se um homem roubar uma carteira se sentirá naturalmente, refinadamente, bom. São estes que eu chamo a secção inocente.

— Oh! — exclamou Syme.

— Naturalmente, portanto, essa gente fala “dos bons tempos que hão-de vir”, do “paraíso futuro”, da “humanidade liberta das grilhetas do vício e da virtude”, e assim por diante. E também assim falam os homens do círculo interior, os sacerdotes sagrados. Também às massas que aplaudem eles falam da felicidade futura e do gênero humano por fim libertado. Mas nas suas bocas — e o polícia baixou a voz — estas frases felizes têm um significado medonho. Eles não têm ilusões, são demasiado intelectuais para pensar que neste mundo o homem se possa libertar completamente do pecado original e da luta pela vida. O que eles querem é a morte. Quando falam no gênero humano por fim livre, querem dizer com isso que a humanidade se suicidará. Quando falam em paraíso sem certo nem errado, querem dizer o túmulo. Têm apenas dois objectivos: primeiro, destruir a humanidade; depois, destruírem-se a si próprios. É por isso que lançam bombas em vez de disparar pistolas. A inocente arraia miúda fica desapontada porque a bomba não matou o rei, mas os grandes sacerdotes ficam contentes porque matou alguém.

— Como me posso alistar no vosso grupo? — perguntou Syme entusiasmado.

— Sei de certeza que neste momento há uma vaga, e tenho a honra de merecer uma certa confiança do chefe em que lhe falei. Você devia ir vêlo, ou antes, porque não devo dizer vê-lo, nunca ninguém o vê, devia falar-lhe.

— Pelo telefone? — perguntou Syme, interessado.

— Não, ele tem a mania de estar sempre num quarto escuro como breu. Diz que lhe torna as ideias mais luminosas. Venha daí. Syme, um tanto deslumbrado e muito excitado, deixou-se levar até uma porta lateral da comprida fila de edifícios de Scotland Yard. Antes que soubesse o que fazia já havia passado pelas mãos de quatro guardas intermediários e fora introduzido num quarto, cuja escuridão abrupta o alarmou tanto como um jacto de luz. Não era como a escuridão normal, na qual se podem distinguir vagamente as coisas, era como se tivesse cegado subitamente.

— Você é o novo recruta?– perguntou uma voz grossa. Por um instinto inexplicável, pois não se distinguia nada na escuridão, Syme compreendeu duas coisas: primeiro, que era a voz de um homem de grande estatura; segundo, que esse Homem estava de costas para ele.

— Você é o novo recruta? — repetiu o chefe invisível, que parecia estar já ao fato do que se passava. — Muito bem, está alistado. — Syme, completamente aturdido, lutou debilmente contra esta frase irrevogável:

— Não tenho experiência nenhuma — começou.

— Ninguém tem experiência da batalha de Armagedão — disse o outro.

— Mas, de fato, não sirvo.

— Tem boa vontade, e isso chega — opôs o desconhecido.

— Na verdade não sei de profissão na qual a boa vontade seja a prova final de admissão.

— Sei eu, a profissão de mártir. Estou a condená-lo à morte. Bom dia.

E foi assim que quando Gabriel Syme, de chapéu alto e sobretudo, ambos velhos e coçados, viu de novo a luz rubra da tarde, era já membro do Novo Corpo de detetives, destinado a frustrar a grande conspiração.

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Trecho do “Capítulo IV” do livro O Homem que era Quinta-Feira, de G.K. Chesterton. Tradução de Domingos Arouca.

Agenda: Grinding America Down (2010) – documentário legendado

Leia sobre o filme no IMDB. (O vídeo postado originalmente foi deletado, só encontrei este outro.)

Swedenborg e o duplo de Maomé

UM DUPLO DE MAOMÉ
Já que na mente dos muçulmanos as idéias de Maomé e de religião estão indissoluvelmente ligadas, o Senhor ordenou que no Céu eles sejam presididos por um espírito que faz o papel de Maomé. Esse delegado nem sempre é o mesmo. Um cidadão da Saxônia, que em vida foi aprisionado pelos argelinos e que se converteu ao Islã, ocupou certa vez esse cargo. Como havia sido cristão, falou-lhes de Jesus e lhes disse que Ele não era filho de José, senão o Filho de Deus; foi conveniente substituí-lo. A condição desse representante de Maomé é indicada por uma tocha visível somente aos muçulmanos. O verdadeiro Maomé, que redigiu o Corão, já não é visível a seus adeptos. Disseram-me que os presidia no início, mas pretendeu dominá-los e foi exilado no Sul. Uma comunidade de muçulmanos foi instigada pelos demônios a reconhecer Maomé como Deus. Para aplacar o tumulto, Maomé foi trazido dos infernos e o exibiram. Nessa ocasião eu o vi. Parecia-se aos espíritos corpóreos que não têm percepção interior, e seu rosto era muito escuro. Pôde articular as palavras: “Eu sou vosso Maomé” e imediatamente afundou.

UN DOBLE DE MAHOMA
Ya que en la mente de los musulmanes las ideas de Mahoma y de religión están indisolublemente ligadas, el Señor ha ordenado que en el Cielo siempre los presida un espíritu que hace el papel de Mahoma. Este delegado no siempre es el mismo. Un ciudadano de Sajonia, a quien en vida tomaron prisionero los argelinos y que se convirtió al Islam, ocupó una vez este cargo. Como había sido cristiano, les habló de Jesús y les dijo que no era el hijo de José, sino el hijo de Dios; fue conveniente reemplazarlo.
La situación de este Mahoma representativo está indicada por una antorcha sólo visible a los musulmanes.
El verdadero Mahoma, que redactó el Corán, ya no es visible a sus adeptos. Me han dicho que al comienzo los presidía, pero que pretendió dominarlos y fue exiliado en el Sur. Una comunidad de musulmanes fue instigada por los demonios a reconocer a Mahoma como Dios. Para aplacar el disturbio, Mahoma fue traído de los infiernos y lo exhibieron. En esta ocasión yo lo vi. Se parecía a los espíritus corpóreos que no tienen percepción interior, y su cara era muy oscura. Pudo articular las palabras: “Yo soy vuestro Mahoma” e inmediatamente se hundió.

Emanuel Swedenborg, Vera Christiana Religio (1771).

Citado por Jorge Luis Borges e Bioy Casares no livro Cuentos Breves y Extraordinarios. (Tradução do trecho: Yuri Vieira.)

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