palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Tag: Religião Page 7 of 15

A viagem astral de Machado de Assis

Machado de Assis costumava publicar crônicas sob diversos pseudônimos. Apenas 40 anos após sua morte descobriu-se que, entre eles, encontrava-se o pseudônimo “Lelio”. Imagino que o utilizava quando sua abordagem do tema ultrapassava seu parâmetro normal de deboche. A crônica abaixo — Balas de Estalo — foi publicada no jornal Gazeta de Notícias, edição do dia 5 de Outubro de 1885, e trata de um tema então em moda: o espiritismo. Nele, Machado relata uma suposta viagem astral com um desenlace dos mais inesperados…

Eça de Queiroz e o médium

Estou me divertindo com a Hemeroteca Digital Brasileira. Muito bom ter acesso a tantos jornais e revistas antigos. Estava pesquisando uma informação dada por José J. Veiga, no livro Relógio Belisário, que cita o jornal Cidade do Rio, e acabei encontrando essa outra notinha das mais interessantes. Trata do encontro, em Paris, entre os escritores Eduardo Prado e Eça de Queiroz e um médium local. O jornal data de 21 de Maio de 1896.

A melhor cena de Zé do Caixão: que tipo de cético você é?

Para mim, esta é a melhor cena de Zé do Caixão. (Infelizmente, não sei dizer se o humor dela é ou não voluntário. Tentei conversar a respeito uma vez com José Mojica, durante um festival de cinema, mas fomos interrompidos por uma horda de fãs. E ele, ao contrário do personagem, não fugiu para a floresta. Eu fugi.) Enfim, sempre que me vejo em meio a uma discussão XYZ com um cético sistemático qualquer — porque, modéstia à parte, cético metódico sou eu (informe-se) — esta cena do filme Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) me vem à mente. Para certas pessoas, as provas não valem de nada, por mais contundentes e chamuscantes que sejam.

Assista a partir de 1h:40m:00s até 1h:44m:05s. (Basta clicar neste link e o vídeo já estará no ponto. Não se esqueça: assista-o por quatro minutos.)

E você? [Olhe o Zé apontando para você.] Que tipo de cético você é?
______
Publicado no Digestivo Cultural.

“Mighty Good Leader” em dois tempos

Cantada por Skip James (1902-1969), a música era assim:

Então, com o andar da carruagem ocidental morro abaixo – Oswald Spengler explica-o -, Beck Hansen, a quem admiro, melhorou a embalagem, tornou o conteúdo nebuloso, deixando-a assim:

Bonita, porém mutilada.

A experiência da paternidade e o conceito do Pai Universal

 

Paternidade

Aproveitando que hoje é dia dos pais, segue um trecho do Livro de Urântia no qual é explicitada a importância da experiência da paternidade para a compreensão de Deus enquanto Pai Universal:

« (…) Nos sete mundos das mansões, os mortais ascendentes têm amplas oportunidades de compensar todas e quaisquer privações experienciais sofridas nos seus mundos de origem, seja devido à herança, ao ambiente ou a um término prematuro infeliz da carreira na carne. Isso é verdadeiro em todos os sentidos, salvo para a vida sexual mortal e para os ajustamentos que a acompanham. Milhares de mortais alcançam os mundos das mansões sem se haverem beneficiado particularmente da disciplina derivada das relações sexuais usuais nas suas esferas de nascimento. A experiência nos mundos das mansões pouca oportunidade pode dar para compensar essas privações bastante pessoais. A experiência sexual, em um sentido físico, faz parte do passado para os seres ascendentes; entretanto, na associação estreita com os Filhos e Filhas Materiais, tanto individualmente quanto como membros das suas famílias, esses mortais sexualmente carentes serão capazes de compensar os aspectos sociais, intelectuais, emocionais e espirituais em tudo o que houverem sido deficientes. Assim, a todos aqueles humanos, a quem as circunstâncias ou o juízo errôneo houverem privado dos benefícios de ligações sexuais vantajosas nos mundos evolucionários, aqui, na capital do sistema, são oferecidas oportunidades plenas de adquirir essas experiências mortais essenciais, em associação íntima e amorosa com as supernas criaturas sexuadas Adâmicas de residência permanente nas capitais dos sistemas.

« Nenhum mortal sobrevivente, nenhum ser intermediário, ou serafim, pode ascender ao Paraíso, alcançar o Pai, nem ser incorporado ao Corpo de Finalidade, sem haver passado pela experiência sublime de estabelecer uma relação de paternidade com as crianças em evolução, dos mundos, ou sem ter alguma outra experiência análoga e equivalente. A relação entre a criança e os seus pais é fundamental para o conceito essencial que devemos ter do Pai Universal e suas crianças no universo. Portanto, essa experiência torna-se indispensável à educação experiencial de todos os ascendentes.

« As criaturas intermediárias ascendentes e os serafins evolucionários devem passar por essa experiência de paternidade, em associação com os Filhos e Filhas Materiais da sede-central do sistema. Assim, esses ascendentes não-reprodutores ganham uma experiência de paternidade, ajudando aos Adãos e Evas, em Jerusém, na criação e na educação da sua progênie.

« Todos os mortais sobreviventes que não experimentaram a paternidade, nos mundos evolucionários, devem também adquirir esse aperfeiçoamento necessário enquanto permanecem nos lares dos Filhos Materiais de Jerusém, e como pais colaboradores desses esplêndidos pais e mães. Isso é verdade, exceto no caso em que esses mortais tenham sido capazes de compensar as suas deficiências nos berçários do sistema, localizados no primeiro mundo de cultura transicional de Jerusém.

« Esse berçário probatório de Satânia é mantido por algumas personalidades moronciais no mundo dos finalitores, onde a metade do planeta se dedica a esse trabalho de educar as crianças. Aqui, algumas crianças, filhas dos mortais sobreviventes, são recebidas e recompostas, tais como aquelas que pereceram nos mundos evolucionários antes de adquirirem o status espiritual como indivíduos. A ascensão de qualquer dos seus progenitores naturais garante que a essa criança mortal dos reinos seja outorgada a repersonalização, no planeta dos finalitores do sistema; e que ali lhe seja permitido demonstrar, pelo próprio livre-arbítrio subseqüente, se fará ou não a escolha de seguir o caminho da ascensão mortal dos progenitores. As crianças, aqui, apresentam-se como no mundo do seu nascimento, exceto pela ausência da diferenciação sexual. Não há reprodução à maneira mortal, após a experiência da vida nos mundos habitados.

« Os estudantes dos mundos das mansões que têm uma ou mais crianças no berçário probatório do mundo dos finalitores, e que apresentam deficiências quanto à experiência essencial da paternidade, podem solicitar a permissão de um Melquisedeque para efetivar a sua transferência temporária, dos deveres da ascensão, nos mundos das mansões, para o mundo dos finalitores, onde lhes é dada a oportunidade de funcionar como progenitores solidários dos seus próprios filhos e outras crianças. Esse serviço de incumbência da paternidade pode ser, mais tarde, creditado em Jerusém como equivalente à metade da educação a que esses seres ascendentes devem submeter-se nas famílias dos Filhos e Filhas Materiais.(…)»

Fonte: The Urantia Book.

Otto Maria Carpeaux e a inexistente Idade das Trevas

No ensaio “História do Humanismo e das Renascenças”, Otto Maria Carpeaux prova, por A mais B, que considerar a Idade Média como uma “Idade das Trevas” não passa de preconceito caipira. (T.S. Eliot chamaria isto de “provincianismo temporal”, coisa de quem se isola em seu próprio tempo e se torna cego para outras épocas.)

Leia trecho do referido ensaio:

O aspecto sentimental das ruínas romanas levou os humanistas a criarem o esquema tripartido da História Universal: Antiguidade, “séculos escuros” da Idade Média, Época Moderna, começando com o renascimento das letras clássicas pelos próprios humanistas. O êxito completo deste conceito historiográfico explica-se, em parte, pela admiração que já os eruditos medievais tinham à civilização romana: já o abade Servantus Lupus de Ferrières (+ 862) se congratula com o renascimento dos estudos latinos em sua época; o cluniacense Bernardus de Morlas, no seu poema didático De contemptu mundi (c. 1140), lamenta a falta de cultura do seu tempo, lembrando a civilização dos antigos romanos; entre muitos outros, Johannes de Garlandia (+ 1258) reconhece a superioridade intelectual dos pagãos da Antiguidade. Daí vai só um passo para o grito de júbilo do humanista: “O saeculum! o litterae! Iuvat vivere etsi quiescere nondum iuvat, Billlibalde, vigent studia, florent ingenia! Heu tu accipe laqueum barbaries, exilium prospice!” (Ulricus de Hutten, em carta a Willibald Pirkheimer, de 25 de outubro de 1518); essa consciência de ter saído enfim de um período de trevas decidiu o êxito do esquema tripartido da História Universal. Ao orgulho dos intelectuais juntaram-se outros motivos, de origem emocional: durante toda a “Idade Média”, a forte reação contra a corrupção moral do clero levou a comparações menos lisonjeiras com a pureza da Igreja primitiva e às esperanças heréticas de uma “renovatio“, de uma “Terceira Igreja”, puramente espiritual: assim aconteceu com os franciscanos espiritualistas e joaquimistas dos séculos XIII e XIV. Enquanto os humanistas, buscando sempre as “fontes”, estiveram interessados em questões religiosas, aprofundaram a comparação com a Igreja primitiva, de Poggio Bracciolini, no seu De miseria humanae conditionis, até Erasmo, com as suas edições do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A Reforma pensou ter vencido a “noite do Papado” (expressão de Lutero), e o esquema tripartido, com o seu duplo fundamento literário e religioso, sobreviveu ao humanismo e zelo reformador, gerando ainda no século XVIII a expressão “Dark Ages” (William Robertson), e dominando até hoje os manuais e a linguagem. Até no abismo absoluto que Oswald Spengler cavou entre a Antiguidade e a civilização moderna, reconhecem-se os vestígios da velha retórica.

A historiografia atual já não admite esse conceito; não existe cisão absoluta entre a Antiguidade e os séculos seguintes, e sim uma evolução contínua. Os historiadores dos séculos passados fixaram o “Fim da Antiguidade” em datas diferentes: em 375, pretenso começo das grandes migrações dos bárbaros, que, no entanto, haviam começado já muito antes; ou então em 476, ano do pretenso fim do Império Romano, que, no entanto, continuava no seu novo centro, Bizâncio. A análise imparcial dos fatos revela, ao contrário, uma solidificação das instituições e resíduos culturais da Antiguidade, no século VI. Com efeito, um cataclismo, uma catástrofe, nunca pode servir de data para o começo de uma nova era. A época pós-antiga do mundo cristão-ocidental começa com uma data de valor positivo: com a elaboração, no século VI, dos três grandes Códigos, nos quais a herança se cristalizou.

O século VI é a época das grandes codificações. Até mesmo o judaísmo termina então o imenso trabalho da codificação das suas leis pós-mosaicas tradicionais: o Talmude. A igreja ocidental, possuindo já um texto latino autêntico da Bíblia, a Vulgata de São Jerônimo, começa a organizar um corpo de escritos autentificados dos chamados Padres da Igreja: em 496 (a data não é certa), o Papa Gelásio I promulga a Epistola decretalis de recipiendis libris, na qual autentifica os opuscula de Cipriano, Gregório Nazianzeno, Basílio, Hilário de Poitiers, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e Próspero Aquitanense, constituindo assim o corpo patrístico que significa o aproveitamento da filosofia e da literatura greco-romanas a serviço da teologia cristã. Já por volta de 400, sob a influência de Ambrósio, conceitos cristãos tinham penetrado no direito romano (Collatio legum mosaicarum et romanarum); agora, o imperador Justiniano termina esse processo com a grande codificação que é principalmente obra do seu conselheiro jurídico Triboniano: o Corpus Juris é de 529 e a segunda edição, que inclui as Instituiones e os Digesta seu Pandectae, de 534; o conjunto é a criação literária mais poderosa do espírito romano – é o fundamento institucional do humanismo europeu.

Essas codificações marcam uma data e, ao mesmo tempo, uma delimitação. Religião judaico-cristã, ciência grega, direito romano: eis a herança da Antiguidade, lançando os fundamentos da civilização ocidental. As regiões e nações que não receberam aquela herança ficaram excluídas da comunidade ocidental, entrando nela somente século depois e em circunstâncias bem diferentes. E todas as outras influências alheias, que o Ocidente recebeu mais tarde, já não se incorporaram bem na nossa civilização; tornaram-se influências “exóticas”. Nem os elementos de pintura chinesa que, trazidos pelos viajantes do século XIII, influíram em Giotto; nem as riquezas ornamentais da Índia que a arquitetura da época dos descobrimentos imitou; nem a abundância fantástica das Mil e uma Noites arábicas nem a pacífica sabedoria chinesa de que o Rococó gostava; nem o budismo que os pessimistas do século XIX apregoaram – nada disso entrou realmente em nossa civilização; continuou sempre “exotismo”. A sorte dos documentos literários do Ocidente entre nós confirma a distinção entre o “exotismo” greco-romano, que faz parte da nossa cultura, e o “exotismo” oriental, que ficou fora dela. Há certas obras da Antiguidade clássica que ninguém conseguiu traduzir bem para as línguas modernas, como as de Píndaro; contudo Píndaro é uma das maiores e mais persistentes influências nas nossas literaturas. Das literaturas orientais recebemos e conservamos definitivamente apenas algumas poucas obras, traduzidas (se é lícita a expressão) de maneira antes inexata, razão por que se tornaram obras nossas. Hafiz é, para nós, um nome; as traduções exatas apenas servem de ajuda de leitura ao especialista; mas o Westoestlicher Diwan, de Goethe, só ligeiramente inspirado no poeta persa, é uma das grande obras líricas da literatura ocidental. Omar Khajjam é, para nós, menos do que um nome; as traduções literais só constituem a delícia dos bibliófilos; mas a tradução libérrima de Edward Fitzgerald, quase obra independente, é obra “clássica” da língua inglesa. E que mais? As grande coleções orientais de fábulas e contos, das quais as literaturas medieval e renascentista se aproveitaram, forneceram apenas matéria-prima novelística. As traduções de Li Tai Po que d’Hervey-Saint-Denys e Hans Bethge popularizaram, na França e na Alemanha, são belas poesias neo-românticas, nas quais os sinólogos são incapazes de reconhecer os originais. O que não provém daquela herança antiga, continua inassimilável; e com isso o conceito “Literatura do Ocidente” está justificado.

(…)

Renascença como marco decisivo da civilização ocidental: este conceito enquadra-se bem no esquema tripartido da História Universal, na qual deveria haver duas cesuras, a queda do Império Romano e a renascença de Atenas e Roma pelo esforço dos humanistas. Mas, que é a Renascença? O uso da expressão pelos historiadores foi inaugurado por Michelet e Burckhardt; o conceito, porém, é mais antigo. Os historiadores das artes plásticas no século XVIII tinham em consideração especial aqueles poucos artistas modernos – Leonardo, Miguel Ângelo, Rafael, Correggio, Ticiano – que pareciam dignos de participar das glórias da Antiguidade clássica. Os românticos gostavam de acrescentar o nome de Dürer, e até de alguns artistas posteriores, como Rubens, Van Dyck, e Claude Lorrain. São estes, mais ou menos, os nomes que definem o gosto artístico de Goethe. Segundo a opinião dos classicistas ortodoxos, a humanidade moderna é, em geral, incapaz de atingir o esplendor da arte antiga; contudo, a imitação assídua das obras de arte greco-romanas, durante o século XVI, teria produzido aqueles poucos artistas sobremaneira geniais, dignos de ser venerados no Panteão da arte clássica. Ao mesmo tempo, a historiografia literária dos românticos fez renascer as “literatures du Midi de l’Europe” (Sismondi): Ariosto e Tasso, Camões e Cervantes. Fortaleceu-se a opinião segundo a qual o século XVI teria sido época de uma prosperidade excepcional da civilização humana, já liberta das cadeias medievais pelo heroísmo geográfico de Colombo, pelo heroísmo religioso de Lutero e pelo heroísmo científico dos Copérnicos e Galileus; e tudo isto se devia ao estudo da Antiguidade pelos humanistas! No famoso livro de Jacob Burckhardt, porém a ênfase já é dada ao século XV. Com efeito, o trabalho principal dos humanistas pertencem a este século; e os italianizantes ingleses da época, os pré-rafaelistas, já tinham descoberto o esplendor maior das artes plásticas “antes de Rafael”: Brunelleschi, Ghiberti, Donatello, Masaccio, Fra Filippo Lippi, Bellini, Mantegna, Botticelli e Perugino. O “Cinquecento” foi substituído, na admiração geral, pelo “Quattrocento”. Mas o recuo do conceito historiográfico não parou aqui. Já na exposição de Burckhardt aparece, como “primeiro homem moderno”, Francesco Petrarca, que nasceu em 1304: e começaram a celebrar, como pai da arte moderna, o grande Giotto, que nasceu em 1267, dois anos depois de Dante, considerado até então como o maior espírito da Idade Média, ser nomeado inaugurador da Renascença. O único obstáculo foi a questão religiosa: os homens da Renascença passaram por libertadores, enquanto que Dante foi o poeta máximo do cristianismo medieval, o poeta do tomismo; e a aversão à escolástica era muito forte. Mas já se havia chamado a atenção para as energias religiosas no movimento renascentista, mesmo em Erasmo; Thode explicou os elementos de espírito novo em Dante e Giotto pela influência da reforma religiosa de São Francisco; e Burdach construiu uma nova linha de evolução: “Humanismo – Renascença – Reforma”, com o apogeu do humanismo no século XIV, em Petrarca e Cola di Rienzo, e com as raízes do movimento inteiro na religiosidade franciscana. Quase ao mesmo tempo, Duhem fez a descoberta surpreendente de que os conceitos da astronomia e da física modernas já se encontravam em nominalistas como Johannes Buridanus, Nicolaus Oresmius e outros escolásticos menos ortodoxos do século XIV. Desde então, o conceito “renascença medieval” já não parecia paradoxo. Afinal, Aristóteles é um dos espíritos mais poderosos da Antiguidade grega – e a assimilação da sua filosofia, no século XIII, por São Tomás e a sua escola, não teria sido uma renascença? A palavra já aparece com o artigo indefinido e no plural. Até uma época bem anterior revela ao estudioso conhecimentos tão amplos da Antiguidade clássica, que se fala de uma “renascença do século XII”. A “Idade Média”, considerada antigamente como época estática de ortodoxia petrificada, perdeu esse aspecto: apresenta-se com a nova característica de época de intensas lutas espirituais, com renovações periódicas, das quais a primeira foi a renovação dos estudos clássicos na corte de Carlos Magno: a “renascença carolíngia” do século IX. É possível continuar essa série de renascenças, para trás e para frente. A renovação do espírito romano no século VI, pela atividade legislativa do Imperador Justiniano, pela regra dos monges de São Bento, pelo governo autenticamente romano do Papa Gregório, o Grande, é uma renascença. Até na Roma do imperador Augusto, a revivificação da poesia grega por Horácio, Virgílio, e pelos poetas elegíacos, é uma renascença. São renascenças, posteriormente, o classicismo francês do “siècle de Louis le Grand”, o classicismo alemão de Weimar, e até a ressurreição da “Antiguidade dionisíaca”, em Nietzsche. Agora, já não é possível confundir atuação do espírito greco-romano no Ocidente com a conservação estática da herança antiga no islamismo: a história espiritual do Ocidente, segundo Mandonnet, é uma seqüência de renascenças.

Essas renascenças consecutivas constituem um fenômeno inquietante: tentativas sempre repetidas de apoderar-se da substância da civilização antiga; sempre repetidas, porque talvez sempre malogradas. Afirma-se a influência imensa das letras greco-romanas nas literaturas medievais e modernas. Parece, porém, que todas as épocas souberam escolher na Antiguidade apenas o que lhes era afim: cada época logrou somente criar uma imagem da Antiguidade segundo a sua própria imagem, de modo que já a época seguinte ficava na obrigação de abandonar o erro e incidir em novo erro. “Erros férteis”, no sentido do pragmatismo. No fundo, a Antiguidade não influiu realmente nas literaturas modernas; só agiu como medida, como critério, e fato de, durante treze séculos, o critério da nossa civilização não ser imanente, mas encontrar-se fora, numa outra civilização, alheia e já passada, é a marca mais característica da cultura ocidental.

______
Publicado no Digestivo Cultural.

O Diabo — Valentin Tomberg fala sobre o 15º arcano do Tarô

Le Diable

(…) O “Diabo” da lâmina não evoca idéias que tenham relação com o drama cósmico da queda do “querubim protetor da montanha de Deus” nem do “Dragão antigo” que combate contra o arquiestratego Miguel e seu exército celeste. As idéias que o conjunto da lâmina e sua contextura evocam são, antes, as de escravidão, na qual se encontram as duas personalidades atadas ao pedestal de demônio monstruoso. A lâmina não sugere a metafísica do Mal, e sim a lição eminentemente prática, a saber, como pode ser que certos seres pervertam sua liberdade ao ponto de se tornarem escravos de um ser monstruoso, que os faz degenerar-se, tornando-os semelhantes a si mesmo.

O tema do décimo quinto arcano do Tarô é o da geração dos demônios e do poder que eles têm sobre seus geradores. É o Arcano da criação dos seres artificiais e da escravidão na qual o criador pode cair diante de sua criatura.

Para se compreender esse Arcano, é necessário, antes, considerar que o mundo do Mal é constituído não só dos seres das hierarquias celestes (com exceção dos Serafins) decaídas, mas também dos seres que, pela origem, não são hierárquicos, isto é, dos seres que, à semelhança dos bacilos, dos micróbios e dos vírus das doenças infecciosas, não devem sua origem, segundo os termos da filosofia escolástica, nem à Causa primeira, nem às causas segundas, mas às causas terceiras, as do arbítrio abusivo das criaturas autônomas. Há, pois, hierarquias “do lado esquerdo”, que estão e agem no quadro da Lei, executando funções de estrita justiça, na qualidade de acusadores, ou encarregadas de pôr o justo à prova, mas há, por outro lado, “micróbios do mal” ou seres criados artificialmente pela humanidade encarnada. Esses últimos são demônios cuja alma é paixão especial e cujo corpo é o conjunto das vibrações “eletromagnéticas” produzidas por essa paixão. Os demônios artificiais podem ser gerados por coletividades humanas como o foram muitos “deuses” monstruosos fenícios, mexicanos e até tibetanos de nossos dias. O Moloc cananeu, que exigia sacrifícios sangrentos de prisioneiros, mencionado muitas vezes na Bíblia, não é um ser hierárquico, do Bem ou do Mal, mas um egregório mau, isto é, um demônio criado artificial e coletivamente por comunidades humanas dominadas pelo arrepio do pavor. O mesmo vale para o Quatzacoatl do México.

Quanto ao Tibete, encontramos o fenômeno singular da prática — “quase científica” — da criação e destruição dos demônios. Parece que no Tibete o Arcano do qual nos ocupamos é conhecido e praticado como um dos métodos de treinamento oculto da vontade e da imaginação. Esse treinamento abrange três etapas: a criação das tulpas (criaturas mágicas) pela imaginação concentrada e dirigida, a sua evocação e a libertação de seu poder pelo ato de conhecimento, que as destrói, fazendo com que se tome consciência de que elas não são mais do que uma criação da imaginação e, portanto, uma ilusão. A finalidade desse treinamento é, pois, chegar à incredulidade a respeito dos demônios, depois de os ter criado pela força da imaginação e de ter enfrentado com intrepidez suas aparições terrificantes.

Eis o que diz sobre isso Alexandra David-Neel, que fala com conhecimento de causa:

“Interroguei vários lamas (a respeito da incredulidade). Às vezes, disse-me um deles — um gechê (filósofo) de Dirdi constata-se essa incredulidade. Ela pode ser considerada como uma das metas visadas pelos mestres místicos, mas, se o discípulo a atinge antes do tempo útil, priva-se dos frutos da parte do treinamento destinada a torná-lo intrépido.

Os mestres místicos, acrescentou ele, não aprovariam o noviço que professasse uma incredulidade simplista, porque ela é contrária à verdade.

O discípulo deve compreender que deuses e demônios existem realmente só para aqueles que crêem na sua existência, e que podem fazer bem ou mal somente àqueles que lhes prestam culto ou que os temem. Muito raros, aliás, são aqueles que chegam à incredulidade durante a primeira parte de seu treinamento espiritual. A maior parte dos noviços vêem realmente aparições terrificantes…

“Tive ocasião de conversar com um eremita de Gã (Tibete oriental), chamado Kuchog Wantchén, sobre casos de morte súbita durante as evocações de espíritos malfazejos. Esse lama não parecia propriamente inclinado à superstição, e pensei que fosse aprovar-me quando eu lhe disse:

“‘Aqueles que morreram, morreram de medo. As suas visões eram objetivações de seus pensamentos. Quem não acredita nos demônios jamais será morto por eles.’

“Para grande espanto meu, o anacoreta replicou num tom singular: ‘Em sua opinião, é suficiente também não crer na existência dos tigres para se estar certo de não ser devorado por um deles, quando se passa ao seu alcance’. E continuou: ‘Realize-se ela consciente ou inconscientemente, a objetivação das formações mentais é processo muito misterioso. Em que vão dar essas criações? Não será possível que, como os filhos nascidos de nossa carne, esses filhos de nosso espírito escapem ao nosso controle e venham, com o tempo ou imediatamente, a viver uma vida própria? Não devemos considerar ainda que, se podemos gerá-los, outros também o podem, e que, se tais tulpas (criaturas mágicas) existem, será extraordinário que entremos em contato com elas, seja pela vontade de seus criadores, seja porque nossos pensamentos e nossos atos produzem as condições requeridas para que esses seres manifestem sua presença e sua atividade?… É necessário que saibamos defender-nos dos tigres dos quais somos pais e também daqueles que foram gerados por outros’.” (Mystiques et magiciens du Thibet, Librarie Plon, pp.130-132).

Esse é o pensamento dos mestres tibetanos da magia criadora de demônios. Eliphas Levi, mestre magista francês, tem opinião semelhante:

A magia criadora do demônio, essa magia que ditou o Formulário de feitiçaria do papa Honório, o Enchiridion de Leão III, os exorcismos do Ritual, as sentenças dos inquisidores, os requisitórios de Laubardemont, os artigos dos Srs. Irmãos Veuillot, os livros dos Srs. de Faloux, de Montalembert, de Mirville, a magia dos feiticeiros e dos devotos que não o são, tudo isso é coisa verdadeiramente condenável em uns e infinitamente deplorável em outros. Foi principalmente para combater, revelando-as, essas tristes aberrações do espírito humano que publicamos esse livro. Possa ele servir ao sucesso dessa obra santa!” (Ritual, cap. XV).

O próprio homem é o criador de seu céu e de seu inferno, e não existem demônios, mas nossas loucuras. Os espíritos que a verdade castiga são corrigidos pelo castigo e não pensam mais em perturbar o mundo.” (Dogma, cap. XXII).

Apoiado em sua experiência, Eliphas Levi não via nos demônios tais como os íncubos e os súcubos, nos mestres Léonards presidindo os sábados e nos demônios possessos senão criações da imaginação e da vontade humanas, que projetam, individual ou coletivamente, seu conteúdo na substância plástica da “luz astral”; assim os demônios da Europa foram gerados exatamente do mesmo modo que as “tulpas” tibetanas!

A arte e o método de “fazer ídolos”, proibidos pelo primeiro mandamento do Decálogo, são antigos e universais. Parece que em todos os tempos e em toda parte foram gerados demônios.

Eliphas Levi e os mestres tibetanos estão de acordo não só no que concerne à origem subjetiva e psicológica dos demônios, mas também quanto à sua existência objetiva. Gerados subjetivamente, eles se tornam forças independentes da subjetividade que os gerou. Em outros termos, eles são criações mágicas, porque a magia é a objetivação  daquilo que se origina na subjetividade. Os demônios que não chegaram ao estádio de objetivação, isto é, da existência separada da vida psíquica de seu genitor, têm existência semi-autônoma, que a psicologia moderna chama “complexos” psicológicos, e que C. G. Jung considera como seres parasitas, que estão para o organismo psíquico como o câncer, por exemplo, está para o organismo físico. O “complexo” psicopatológico é, pois, um demônio em estado de gestação — não vindo de fora, mas gerado pelo próprio paciente —: ele ainda não nasceu, mas tem vida quase autônoma, alimentada pela vida psíquica de seu pai.

C. G. Jung diz a este respeito:

(O complexo) parece ser processo autônomo que se impõe à consciência. É como se o complexo fosse um ser autônomo capaz de interferir nas intenções do ego. Com efeito, os complexos se comportam como pessoas secundárias ou parciais que têm vida mental própria.” (Psychology and Religion, três conferências na Universidade de Yale, EUA, 1950, pp.13 e 14).

“Um ser autônomo capaz de interferir nas intenções do ego” e “que tem vida mental própria” não é senão o que entendemos por “demônio”.

O “demônio-complexo”, é verdade, não age ainda fora da vida psíquica do indivíduo, não tendo o direito de cidadania na comunidade variegada e fantástica das “tulpas” ou demônios objetivos, que podem, às vezes — como nos casos de santo Antão, o Grande, e do santo cura d’Ars — afligir com golpes bem reais as vítimas de seus assaltos. O ruído desses assaltos, que todos ouvem, e as marcas roxas nos corpos das vítimas, que todos vêem, não se incluem mais na psicologia pura e simples, mas já são fato objetivo.

Como, então, são gerados os demônios?

Como toda geração, também a dos demônios é resultado do concurso dos princípios masculino e feminino, isto é, no caso da geração pela vida psíquica de um indivíduo, é o resultado do concurso da vontade e da imaginação. Um desejo perverso ou contrário à natureza seguido da imaginação correspondente constituem juntos o ato de geração de um demônio.

As duas personagens, uma, masculina, a outra, feminina, atadas ao pedestal da personagem central da lâmina do décimo quinto Arcano, o demônio, não são, pois, filhos ou criaturas da personagem central, como seríamos tentados a pensar, dada sua pequena estatura em relação à do demônio. Ao contrário, elas é que são os pais do demônio, mas se tornaram escravos de sua criatura. Eles representam a vontade perversa e a imaginação contrária à natureza, as quais deram origem ao demônio andrógino, isto é, a um ser dotado do desejo e da imaginação que dominam as forças que o geraram.

No caso da geração efetuada coletivamente, o demônio — que então se chama “egregório” — é produto da vontade e da imaginação coletivas. O nascimento de tal “egregório” moderno nos é conhecido:

“Um espectro ronda a Europa — o espectro do comunismo” — é a primeira frase do “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels, de 1848. “Todos os poderes da velha Europa, o Papa, e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os agentes da polícia alemã, se aliaram para uma santa caçada a esse espectro”, prossegue o “Manifesto”.

Entretanto — acrescentamos nós — o espectro crescia em estatura e poder, gerado pela vontade das massas, nascido do desespero da “revolução industrial” na Europa, alimentado pelo ressentimento acumulado nas massas durante gerações, munido de intelectualismo fictício, que é a dialética de Hegel tomada em sentido contrário; esse espectro crescia, continuando a rondar a Europa e, depois, outros continentes… Hoje um terço da humanidade tende a se inclinar diante desse deus e a obedecer a ele.

O que acabo de dizer sobre a geração do egregório moderno mais imponente está em perfeito acordo com o próprio ensinamento marxista. Porque, para o marxismo, não há Deus nem deuses; só há “demônios”, isto é, criaturas da vontade e da imaginação humanas. É a doutrina fundamental, chamada “superestrutura ideológica”. É o interesse econômico — isto é, a vontade — que cria — isto é, imagina — ideologias: religiosas, filosóficas, sociais e políticas. Para o marxismo, todas as religiões são, pois, “superestruturas”, isto é, formações produzidas pela vontade e pela imaginação humanas. O próprio marxismo-leninismo é superestrutura ideológica, produto da imaginação intelectual, baseado na vontade de ordenar ou de pôr em ordem as coisas sociais, políticas e culturais. Esse método de produção de superestruturas ideológicas sobre a base da vontade é precisamente o que entendemos por “geração coletiva de um demônio ou de um egregório”.

Ora, há o Verbo e há egregórios diante dos quais a humanidade se inclina: a revelação da verdade divina e a manifestação da vontade humana, o culto a Deus e o dos ídolos feitos pelo homem. Não é um diagnóstico e um prognóstico da história do gênero humano, se nos lembrarmos de que, enquanto Moisés recebia a revelação do Verbo no alto da montanha, embaixo o povo fez e adorou o Bezerro de ouro? O Verbo e os Ídolos, a verdade revelada e as “superestruturas ideológicas” da vontade humana agem simultaneamente na história do gênero humano. Houve um só século no qual os servos do Verbo não se tenham defrontado com os adoradores dos ídolos, dos egregórios?

A décima quinta lâmina do Tarô contém advertência importante para todos os que tomam a sério a magia: ela lhes ensina o arcano mágico da geração dos demônios e do poder que eles têm sobre aqueles que os geraram.

Nós, que tivemos a experiência de dois demônios gerados pela vontade coletiva, um por uma vontade coletiva movida pela ambição nacional e servindo-se de poderosas forças imaginativas, baseadas nos recursos biológicos, o demônio ou egregório nacional-socialista, e o outro demônio ou egregório do qual falamos acima, nós sabemos quão terrível é o poder que reside em nossa vontade e me nossa imaginação e quão grande é a responsabilidade que ela traz para aqueles que a desencadeiam no mundo! Quem semeia vento, colhe tempestade! E que tempestade!

Nós, do século XX, sabemos que as “grandes pestes” de nossos dias são os “egregórios” das “superestruturas ideológicas”, os quais custaram à humanidade mais vidas e mais sofrimentos do que as grandes epidemias da Idade Média.

Sabendo isso, não é tempo de dizermos a nós mesmos: Calemo-nos? Façamos calar-se nossa vontade e nossa imaginação arbitrárias e imponhamos-lhes a disciplina do silêncio. Não é esse um dos quatro mandamentos tradicionais do Hermetismo, a saber: ousar, querer, saber e calar-se? Calar-se é mais do que guardar segredo, mais mesmo do que não profanar as coisas sagradas, às quais é devido silêncio respeitoso. Calar-se é principalmente o grande mandamento mágico de não gerar demônios pela vontade e pela imaginação arbitrárias. O silêncio da vontade e da imaginação arbitrária é dever.

Contentemo-nos, pois, com o Trabalho, com as contribuições construtivas à tradição, seja ela espiritual, cristã, hermética ou científica. Aprofundemo-la, estudemo-la, pratiquemo-la, cultivemo-la, isto é, trabalhemos não para destruir, e sim para edificar. Coloquemo-nos entre os construtores da grande Catedral da Tradição espiritual da humanidade. Que as Sagradas Escrituras sejam santas para nós, que os sacramentos sejam sacramentos para nós, que a hierarquia da autoridade espiritual seja hierarquia da autoridade para nós e que a “filosofia perene” e a ciência verdadeiramente científica do passado e do presente encontrem em nós amigos e, sendo o caso, colaboradores respeitosos.

Eis o que comporta o mandamento de calar-se, de não gerar demônios.

É sempre o excesso devido à embriaguez da vontade e da imaginação que gera demônios.(…)

_______

Trecho de Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô, de Valentin Tomberg, com Apresentação de Hans Urs von Balthasar

Page 7 of 15

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén