SÓRDIDO
Começa perguntando:
— Topas uma farrinha hoje?
Do outro lado, Camarinha boceja:
— Hoje não posso. Outro dia.
E o Nonato: — Escuta, seu zebu. Tem que ser hoje. Vamos hoje. Escuta, Camarinha. Eu acabo de ler o Corção. Deixa eu falar. E quando leio o Corção tenho vontade de fazer bacanais horrendas, bacanais de Cecil B. de Mille!
Novo bocejo do Camarinha:
— Não faz piada!
Com alegre ferocidade, Nonato continua: — “Piada, vírgula! Batata!”. Sua tese era a de que o Corção “compromete os valores que defende”.
E insistia, com jucunda agressividade:
— Por causa do Corção já desisti da vida eterna. Já não quero mais ser eterno, percebeste? Quando penso na virtude do Corção, eu prefiro, sob a minha palavra de honra: prefiro ser um canalha abjeto!
O Camarinha achava graça. Por fim, admitiu:
— Está bem. Vamos fazer a farra. Levo aquelas duas garotas.
— Leva. E olha: — rachamos as despesas.
O LANTERNEIRO
Deixa o telefone e anuncia para os companheiros: — “Hoje vou fazer uma bacanal de Cecil B. de Mille!”.
Uma datilografa, de óculos e maus dentes, sorri-lhe, melíflua: — “O senhor gosta de uma boa pândega!”.
Foi aí que, num repelão teatral, Nonato puxa do bolso o artigo do Corção. Esfrega-o na cara dos colegas:
— Vê como o artigo do Corção cheira mal!
A datilógrafa (ainda por cima dentuça) geme, extasiada: — “O senhor é um número! Uma bola!”.
E, então, com uma falsa gravidade, o rapaz estende-lhe o recorte:
— Fora de brincadeira, a senhora leia! Por obséquio, leia. Depois me diga se tenho ou não tenho razão. Certas virtudes fedem. A do Corção é dessas!Do fundo do escritório, veio o Zé Geraldo, tropeçando nas cadeiras. Era um “lanterneiro” frenético. Começa:
— Você, olha! Um momento! O Corção está muito acima de você. Muito acima. Você não tem nem competência para entender o Corção!
Com um alegre tom polêmico, o outro replicava:
— Depois de ler o Corção, eu tenho vontade de roubar galinhas! De agarrar mulher no peito, “à galega”! E, se hoje vou fazer uma farra sórdida, agradeça ao Corção!
Ao lado, meio atônita, a datilógrafa ouvia só. Instintivamente, farejou o recorte. E, fosse por sugestão ou por outro motivo qualquer, achou que o artigo exalava realmente um odor esquisito.
O lanterneiro” estrebucha: “Sórdido!”.
Ao que Nonato replicou na sua fúria radiante:
— A minha sordidez fede menos que a virtude do Corção!
A BACANAL
A briga deu em nada. Às seis horas sai o Nonato, às carreiras. Encontra-se com o Camarinha, na esquina de México com Araújo Porto Alegre. O outro parecia lúgubre.
Rosna:
— Mixou.
— O que é que mixou?
— A farra.
Protesta: — “Mas não me diga uma coisa dessas! Eu já estava todo engatilhado!”.
Contou que lera o Corção e que o artigo lhe dera uma violenta nostalgia do excremento. O outro explicava, com certo humor:
— Eu já sou normalmente sórdido, mesmo sem ler o Corção. Mas o caso é o seguinte: — uma das pequenas, a menorzinha, comeu uma empada que fez mal e…
Nonato pôs as mão na cabeça: — “Que peso! Que azar!”. Caminhando com o amigo em direção ao “Pardelas”, fazia-lhe apelos:
— Arranja outra! Outras! Tu conheces todo mundo!
— Dou um jeito — prometeu o Camarinha.
Entram no “Pardelas”, sentam-se. Dentro em pouco, estão bebendo. Mais uns quinze, vinte minutos e o chope começa a atuar nos dois. Nonato continua na idéia fixa:
— Por causa do Corção, já chutei a vida eterna. Prefiro apodrecer dignamente.
Estão semibêbados. Súbito, o Camarinha levanta a cabeça: — Descobri. Tenho uma mulher pra ti. Uma cara. Boa pra burro.
Com o olhar apagado, quer saber: — “Quem é?”.
Camarinha passa as costas da mão na boca encharcada. Disse (ri pesadamente):
— Surpresa.
O próprio Camarinha paga a despesa. Saem, com um equilíbrio meio deficiente. Nonato faz perguntas: “Onde é? Eu conheço?”. A resposta foi a mesma:
— Surpresa.
Tomam um táxi. Nonato insiste: “Diz logo! Não chateia!”.
O outro reage, ofendido: — “Você confia ou não confia em mim?”.
Respondeu que confiava. Mas o Camarinha era um bêbado insistente:
— Se não confia, a gente salta!
— Confio. Em você, confio. Juro.
Quando param, Nonato dormia no ombro do Camarinha. Este teve de sacudi-lo. Pagam e descem. Nonato olha em torno. Reconhece a praça Saenz Peña. Com a vista turva e as pernas bambas, é puxado pelo amigo. Apesar de tudo, Camarinha é o mais sóbrio. Dobram uma esquina. Nonato, que pouco andava por aqueles lados, estava perdido. Súbito, Camarinha estaca: — “É aqui”. Crispa a mão no braço do outro e baixa a voz:
— Eu quero me vingar dessa cara. Eu te apresento e olha: — antes de sair, você dá a ela cinco cruzeiros. Cinco. Eu quero humilhar. Dá-lhe cinco cruzeiros. Se não tem trocado, toma aqui. Olha. Aqui, cinco cruzeiros. Toma. Segura.
Nonato embolsa a cédula. Empurra o portão e entram. Batem. Uma moça (linda, linda) abre. Camarinha a afasta, com um palavrão. Nonato parou:
— Mas essa é tua mulher!
Ela não se mexe, firme, ereta. Camarinha ri pesadamente:
— É minha mulher. Me traiu. Eu descobri e todo dia trago um. Ouviu? Trago um e o sujeito paga cinco cruzeiros. Hoje é você. Entra ali. Naquela porta. Ali.
Sem uma palavra, a mulher foi na frente. Nonato tem um esgar de choro: —“Mas é tua esposa!”.
O outro sacode: “Vai ou te arrebento!”.
Empurra-o. Nonato caminha, entra. A mulher fecha a porta à chave. Olham-se. Ela espera. Nonato começa:
— Eu não tocarei na senhora. Não tocarei.
E, súbito, cai-lhe aos pés. De joelhos, abraçado às suas pernas, repetia: — “Minha santa! Oh, minha santa!”. Na sua tristeza quase doce, ela passou-lhe, de leve, a mão pela cabeça.
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Conto extraído do livro A vida como ela é… — O homem fiel e outros contos, de Nelson Rodrigues
Aliás, cá entre nós, esse livro do Nelson Rodrigues me lembrou um comentário do Mário Ferreira dos Santos, no livro A invasão vertical dos bárbaros, a respeito dos literatos brasileiros. Estava na cara que se referia a Nelson Rodrigues… :^)
Vinicius
Curioso ._.