Redentor

Eu adiei porque pressentia a roubada. Fiquei anos sentindo que devia ficar longe desse filme. (Modéstia à parte, minha intuição sempre foi muito boa.) Contudo, ontem *, provavelmente devido a essa lei de cotas que obriga canais pagos a exibirem filmes nacionais, dei de cara com o bicho: “Redentor” (2004). Caramba… (longo suspiro). É, sem sombra de dúvida, o pior filme que vi neste milênio. É a prova definitiva de que, se o sujeito tem um péssimo roteiro em mãos, não adianta quantas estrelas e pessoas de talento ele mobilize — vai queimar o filme de todo mundo! É impressionante como conseguiram unir diversos atores excelentes, outros medianos, e apenas alguns ruins, a uma boa fotografia, a uma boa edição, e até mesmo a uma boa direção (em termos de cinematografia, claro), para criar um monstro espantoso, absurdo e terrivelmente sem graça. Até mesmo uma figura linda como Camila Pitanga é desperdiçada ali. Que filme! “Redentor” não é uma obra de arte e muito menos um produto de entretenimento — é um sintoma da mentalidade caótica em que anda mergulhada a classe artística brasileira. Não é um filme que observa do alto o panorama inteiro desse caos — é um filme de quem está perdido nele. Não é ruim por ser mal feito, porque não o é — é ruim por ser pernicioso às mentes despreparadas.

Aristóteles dizia que a comédia é uma imitação de caracteres inferiores, isto é, uma obra que apresenta as ações de pessoas piores do que a gente comum. “Redentor” poderia ter sido uma excelente comédia, afinal, TODOS os seus personagens são gente sem o menor valor, gente salafrária, egoísta, mesquinha, violenta, grosseira e o escambau. Mas, pelo jeito, o roteirista não o notou! Sim, em vez de uma comédia, o roteiro se apresenta como tragédia, como o drama de um sujeito supostamente bondoso que faz uma cagada e, em virtude dela, morre. Só que o protagonista é um bundão, um bosta, um sujeito tão babaca quanto todos aqueles a quem ele, no final, imagina “dar uma lição”. Que lição? Ele não sabe nada! Ele não faz apenas uma cagada (a suposta húbris trágica) — ele só faz cagada! No fundo, e já que ele anuncia a própria morte no início do filme, o espectador não vê a hora de vê-lo morrer e abandonar a tela. E o deus que a certa altura lhe aparece — uma figura animada do Cristo Redentor do Corcovado — é a pura representação de Judas Iscariotes: “Por que não se vende esse perfume caro e não se distribui o dinheiro entre os pobres?”. (No filme, é um “Vai lá e diz ao sujeito para distribuir a grana dele entre os pobres”.) No Evangelho, quando Jesus diz a um homem rico para distribuir seu dinheiro, diz claramente: “Dá teu dinheiro e me segue”. Qual foi a intenção de Jesus aí? Ora, o que Ele tentou mostrar ao homem rico é que, na deturpada hierarquia de valores deste, manter as posses materiais estava acima da experiência de caminhar na Terra com o próprio Deus. Jesus empregou muitíssimas vezes uma abordagem pessoal em seus ensinamentos: naquela ocasião, Ele ensinava a respeito de valores, era uma aula de axiologia, não estava pregando o socialismo. Jesus jamais diria que a riqueza, em si mesma, é um mal, uma vez que isto seria incorrer numa das heresias gnósticas, dessas que afirmam ser a matéria uma emanação do “mal absoluto” e a Terra, um inferno. Jesus, enquanto Criador, sempre soube que o Reino de Deus permeia e ultrapassa a Terra, sem excluí-la. E mais: embora não seja impossível — Deus pode tudo —, é extremamente improvável que um homem sem a menor sombra de virtude seja escolhido por Ele como um mensageiro. Saulo de Tarso, por exemplo, não foi escolhido por perseguir cristãos, mas, sim, por ser um homem lúcido e um implacável defensor da religião que então professava. Estão achando que Deus é um idiota? É óbvio que o roteirista jamais leu a Bíblia com o coração aberto. E duvido muitíssimo que ele realmente acredite em Deus. O que esperar de um sujeito assim? Um filme de Frank Capra? Para ser rodado por Capra, em primeiro lugar, o roteiro teria de fazer sentido; em segundo, teria de ser um ensaio sobre valores e princípios sólidos; em terceiro, teria de causar empatia e emocionar — e “Redentor” não faz nenhuma dessas coisas! Poxa vida, seja sincero consigo mesmo: assista a ele e tente chorar lágrimas que não sejam lágrimas de um crocodilo do Partido Comunista.

O conceito de tragédia evoluiu após Aristóteles — mas nunca se transformou no contrário do que ele afirmou. As formas do conflito e as causas do acontecimento trágico, nas narrativas, podem ter variado com o tempo; mas a tragédia continua sendo a imitação de caracteres superiores. E, quando digo que “Redentor” é um sintoma, refiro-me a isto: o roteiro tenta nos mostrar que o protagonista, mesmo cometendo ações abjetas, é um virtuoso, um enviado de Deus. Pois sim. As mentes contaminadas de ideologia, e de “ismos” dos mais diversos tipos, podem até acreditar que ele o seja — mas os corações que acompanham essas mentes não percebem virtude alguma! Está na cara que o protagonista não merece nossa simpatia e muito menos nossa compaixão. Aliás, ninguém no filme as merece! E isso é imperdoável! Ora, o cinema, enquanto arte dramática, deve falar primeiramente ao coração. Pouco importa se, como acontece em “Redentor”, se o roteirista não entende nada de economia, de teologia ou de filosofia — não importa! Claro, contanto que ele saiba dar vida aos personagens, o que ocorre sempre que, no momento da escrita, deixamos as rédeas da narrativa nas mãos do nosso coração, e não nas mãos das nossas convicções políticas ou idéias econômicas — para não dizer nas mãos do nosso caos mental! O relativismo se tornou absoluto nas mentes iluminadas dos nossos artistas. Nenhuma virtude, nenhum princípio, nenhum valor, nenhum ideal — para eles, nada pode ser universalmente verdadeiro. Não há chão que seja absolutamente o chão, não há Norte que seja absolutamente o Norte. É simplesmente impossível viajar com esse mapa! E por quê? Porque esse “relativismo absoluto” é uma contradição em termos. Se tudo é relativo, então até mesmo a idéia de que tudo é relativo é relativa e, portanto, ela não faz sentido, não diz nada. Não se pode viver solto no espaço. O niilismo é morte! E o coração precisa andar em algum trilho, seguir alguma direção. Em nossa época, a incapacidade de aceitar o transcendente (o que está além do espaço-tempo, a própria fonte de ambos) leva algumas pessoas a abraçar sucedâneos imperfeitos da transcendência — tais como a História (o tempo) e o meio ambiente (o espaço) — e valores de meia tigela, tais como a pobreza, que é o caso deste filme. Segundo “Redentor”, se você for pobre, você pode tudo, pode sequestrar, roubar, invadir, espancar, ressuscitar os mortos, ser capanga do mocinho, enfim, em nome da pobreza, pode qualquer coisa. E, ironicamente, o que querem todas as almas miseráveis de “Redentor”? Dinheiro, claro. Todos os personagens são corruptos — TODOS, sem exceção. Nenhum deles tem valor — mas todos têm seu preço. E, por isso, caso o filme não tivesse se levado tão a sério, teria dado uma ótima comédia. O problema é que seu deus ex machina — o suposto “redentor” — não passa de um demiurgo, de um senhor das trevas que dá poderes a um ser perverso e desmiolado, não passa, enfim, de um redentor que não redime, que não liberta ninguém e que, ainda assim, fez o roteirista e, de tabela, todos os participantes do filme ajoelharem-se a seus pés!

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* Publiquei esta crítica no Mídia Sem Máscara em Março deste ano e, por alguma razão, acabei me esquecendo completamente de postá-la aqui — antes tarde do que nunca.