O crítico literário Rodrigo Gurgel (Folha de São Paulo e jornal Rascunho) comenta A menina branca, um dos contos do livro A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande:

Li, neste final de semana, “A menina branca”, do Yuri Vieira. Li esperando encontrar o afamado Dr. João Pinto Grande, que dá nome ao livro, mas ele não me concedeu a graça da sua presença.

Começo pelo fim: o destino de Edgard, protagonista da história, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o país luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela me fez lembrar a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em “A marca humana”.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

Quem me conhece sabe que me aproximo de um texto esperando que ele me ofereça o melhor. Na maioria das vezes, contudo, tenho de me esforçar para que isso aconteça. Mas o narrador de “A menina branca” me sequestrou desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo me agradou.

Yuri também demonstra timing perfeito e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

Só me resta, agora, prosseguir na leitura, para uma resenha completa, em que eu possa falar do famigerado Pinto Grande.

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