Eugen Rosenstock-Huessy

(Eugen Rosenstock-Huessy)

Quase todas as civilizações não-cristãs preservam os sinais da irrupção da queixa legal e formal a partir de uivos e gritos naturais e animais. Espera-se que as mulheres contribuam com gritos selvagens, passionais e inarticulados de cego sentimento. Espera-se que os homens construam sobre esse estrato natural a estrutura da linguagem elevada e articulada. Tanto os ritos dionisíacos como os enlutados profissionais entre os judeus dos guetos poloneses cumprem ambas essas funções. As mulheres e as crianças gritam, choram, tremem; os homens agem e falam.
Tal divisão do trabalho parece provar que deparamos, aqui, com importante lei da história: um novo ritual, criado como vitória sobre um aspecto negativo da vida, consiste nos atos e gestos, sons e palavras pelos quais o aparecimento da ordem a partir do caos, da forma a partir da confusão, pode ser revivido todas as vezes que se executa o ritual. A situação negativa anterior torna-se parte do ritual, para que a solução positiva que se segue não fique incompreensível. Rituais cuja pré-história, cuja “irritação” deixa de ser compreensível não nos tocam. A reverência pelo poder humano de falar depende do nosso medo de submergir no estado animal. Em nosso meio, as mulheres podem manipular o discurso tanto quanto os homens. Mas no início de nossa era, e, como eu disse, fora do vital desabrochar cristão, esse não era e não é o caso. Nesses estratos, a espécie humana ainda está ocupada em representar o processo que vai do grito à fala, executando os procedimentos pelos quais essa emergência é alcançada.

O espírito procede, por um lado, na interação entre mulheres e crianças e, por outro, na interação dos homens. Esse é o significado do termo “processo do espírito”. A mente moderna não tem muito uso para esse termo criativo — ela poderia falar de “emergência desde o caos”. No entanto, a palavra “emergência” vai parar longe do ponto central do ritual. Emergimos da água, de um choque, de um feitiço, mas os elementos de que emergimos são deixados para trás. A emergência é um processo natural, e na natureza o indivíduo e o meio ambiente são vistos como entidades separadas. No ritual prevalece a atitude oposta: os gritos são transubstanciados, e a fala procede das origens mesmas: dos sons que compunham os gritos. Por milhares de anos, quando se cometia um assassínio, exigiu-se que os parentes do morto levassem o corpo ante os juizes. Na corte, a queixa era feita tanto pela lamentação das mulheres como pelas acusações verbais do parente mais próximo.

Esse dualismo tornou transparente o ‘concentus’ entre nossa natureza animal e nossa história formal. O homem primeiro gritou e depois falou, porque falar era o primeiro passo para longe do grito. Choros e gritos eram inseridos na cerimônia como medida da linguagem articulada. Tal interação na religião entre grito e nome, entre mulher e homem, representou a reconciliação entre nossa natureza animal e nossa natureza intelectual. Quando Paulo pediu que as mulheres fizessem silêncio na igreja, ele o fez num tempo em que era normal e esperado que as mulheres — as judias como as gentias — emitissem uivos e gritos terríveis, fossem sibilas e bacantes, chorassem passionalmente em cada funeral. Os modernos detratores de Paulo geralmente não têm a menor ideia do que estão atacando. Paulo tornou a linguagem formal acessível às mulheres, libertando-as do fardo do ritual pré-cristão em que derramavam cinzas sobre a cabeça, perfuravam os seios e emitiam longos e profundos gemidos durante muitos dias. Paulo estava diante de pessoas passionais que gaguejavam e tinham ataques ante a recente concessão de liberdade, pessoas que tinham sido obcecadas por espíritos e demônios de seu clã ou família.

A ‘taceat mulier’ [“Que a mulher se cale”] de Paulo lançou os fundamentos de uma nova verdade: de agora em diante, as mulheres poderiam participar da palavra, tanto quanto os homens. E sua ordem foi bem-sucedida. Já não receamos ouvir gritos histéricos na igreja. Nas reuniões religiosas, as mulheres comportam-se tão respeitosamente como os homens. E agora, as mulheres desprezam o reacionarismo de Paulo. Que elas se perguntem a si mesmas se, depois de Hitler, podem negar a existência da natureza animal do homem. Será impossível regredir à histeria? Será incompreensível um ritual que é oficiado pelo espírito e em que nós mesmos nos lamentamos de ter matado o filho de Deus? Se a “histeria” e a natureza animal tivessem desaparecido de todo, já não precisaríamos de ritual. Quando já não nascer nenhuma criança e a última geração viver para sempre, poderemos deixar de lado o ritual. O ritual insiste em que todas as nossas conquistas na história se fazem com base nos fundamentos elementares de nossa origem animal. Na história, portanto, não perdura nada que não seja incessantemente restabelecido. As línguas não “nascem”. O homem tem de aprender a falar, assim como tem de aprender a escrever. A fala da criança e a escrita do aluno não são senão pequenos fragmentos dos poderes conferidos ao homem pelo ritual tribal.

O ritual tribal comunicava religião, lei, escrita e fala. O ritual criou o tempo — como passado e futuro —, o poder — como liberdade e sucessão —, a ordem — como título e nome —, a expectativa — como cerimônia e vestuário —, a tradição — como canto fúnebre e mito do herói. O ritual ligou o homem ao tempo, e isso é expresso pelo termo “religião”. Dedicaremos uma seção especial à tragédia de tais “ligações”. Com efeito, as forças “ligantes” da religião tribal tornaram-se cruéis grilhões. Certamente não estou cego a essa crueldade. O melhor é sempre o berço da mais terrível corrupção. Mas, em primeiro lugar, a tribo deve ser avaliada positivamente, em sua grandeza, isto é, a grandeza de que, afinal, tenhamos aprendido a falar. Os evolucionistas não podem fazer justiça a essa grandeza, já que dão a linguagem por pressuposta. Quem vê emudecer todos os estratos da vida e tudo recair na estupidez ou na guerra civil, admira a realização graças à qual somos capazes de falar. É claro que o perpétuo pro-cessus por que os sons animais se podem transubstanciar em linguagem não foi nem é possível senão quando a alma inteira do homem, macho e fêmea, entra no pro-cessus. Não é importante senão aquilo para que tanto os homens como as mulheres contribuem.

Mas é exatamente esse o caráter do ritual. Ele baseia-se no choque de duas naturezas, a feminina e a masculina, e sobre essa base institui uma ordem que busca perpetuar-se. O ritual representa, incessantemente, a primeira vitória sobre a mudez. O ritual criou uma ordem duradoura, que ultrapassa em muito o momento.

À medida que percebemos a relação entre as horas sagradas do ritual e o longo futuro, podemos compreender outro aspecto da linguagem até agora incompreensível. Invariavelmente, as pessoas pensam que alguém um dia começou a chamar à cabeça “cabeça”, à mão “mão”, e que depois a palavra entrou no dicionário, e passou a ser usada por todos, e todos foram felizes para sempre. O oposto é o verdadeiro. Antes de nossa era, nenhuma palavra entrava em dicionário se não fosse usada em ritual. Então nenhuma palavra era palavra se não tivesse sido dita primeiramente como nome sagrado. Miosótis não eram “miosótis”, juncos não eram “juncos”, carvalhos não eram “carvalhos”, antes de o chefe ou o pajé se dirigirem a eles em ritual público e os convidarem a participar. As pessoas falavam com flores e animais, com fogo e água, com árvores e pedras num ritual, antes que qualquer um falasse deles. Assim, quando alguém falava com eles pela primeira vez em língua humana, recebiam nomes plenos e não palavras vazias.

Os filhotes e sua mãe podem apontar uma noz ou um graveto, podem gritar de alegria brincando com isto ou aquilo, lá e cá. Procuram, aqui e acolá, alimento, brinquedos e armas. Mas nenhum nome resulta de toda essa vida momentânea. O ritual é necessário para criar uma linguagem que atravesse cinquenta ou cento e cinquenta gerações. Essa linguagem é essencial para o ritual. O ritual está para o tempo assim como uma hora ou um dia estão para todo o passado, que o ritual revela com seus nomes, e para todo o futuro, que o ritual vela com seu vestuário cerimonial. O ritual era o mais demorado possível, porque ele encena o “para sempre e sempre”. O ritual cria, presumivelmente, uma ordem duradoura, que vai muito além do momento. A tarefa de formar uma taça de tempo de promessa e cumprimento parecia estupenda. A tribo podia celebrar durante três dias ou uma semana. Mas permanecia o fato de que as reuniões teriam de se dispersar mais cedo ou mais tarde; as pessoas precisavam voltar para casa. O ritual precisava compensar essa perda de continuidade e de presença física. A linguagem e o vestuário tornaram-se, então, os representantes do ritual para o tempo em que a tribo não estivesse reunida. A deficiência do ritual é que, comparados aos espaços de tempo que tenta abarcar, seus próprios procedimentos nunca são suficientemente longos. Em consequência, o ritual teve de criar representações duradouras. E foi tão bem-sucedido nisso, que ainda falamos línguas de seiscentos anos atrás. As línguas são imortais porque tinham por alvo a imortalidade!
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Trecho de “A Origem da Linguagem”, de Eugen Rosenstock-Huessy.