Este é o Rei da Lua, mas poderia ser Kant ou Descartes.
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Aqui, neste momento, encontra-se talvez seu [de Santo Tomás de Aquino] único momento de paixão pessoal, com exceção daquela efusão solitária durante as dificuldades da sua juventude. E mais uma vez ele está lutando contra seus inimigos com uma tocha ardente. No entanto, mesmo neste isolado apocalipse de fúria, há uma frase que poderia ser recomendada às pessoas de todos os tempos que às vezes ficam irritadas por muito menos. Se há uma frase que poderia ser esculpida em mármore para representar a racionalidade mais calma e resistente, é a frase que surgiu juntamente com todo o resto desta lava derretida. Se há uma frase que passou para a história como típica de Tomás de Aquino, é a frase sobre o seu próprio argumento: “Não se baseia em documentos da fé, mas nas razões e nas afirmações dos próprios filósofos”. Que bom teria sido se todos os doutores ortodoxos da Igreja, quando enraivecidos, tivessem sido tão razoáveis quanto Aquino! Que bom seria se todos os apologistas cristãos se lembrassem daquela máxima e a escrevessem em letras grandes na parede antes de pregar ali suas teses. No auge da sua fúria Tomás de Aquino entende o que muitos defensores da ortodoxia não conseguem entender. É inútil dizer a um ateu que é ateu; ou atirar contra um negador da imortalidade a infâmia da sua negação; ou imaginar que alguém pode forçar um adversário a admitir que está equivocado demonstrando que está equivocado segundo os princípios de outra pessoa e não de acordo com seus próprios princípios. Após o grande exemplo de Santo Tomás, foi estabelecido o princípio — ou deveria ter sido estabelecido para sempre — de que, ou não devemos discutir com uma pessoa de forma alguma, ou devemos fazê-lo em seu próprio terreno e não no nosso. Podemos fazer outras coisas em vez de discutir, de acordo com nossa concepção de ações moralmente admissíveis; mas, se nós discutimos, devemos fazê-lo “com as razões e as afirmações dos próprios filósofos”. Este é o senso comum contido em uma frase atribuída a um amigo de Tomás, o grande São Luis, rei de França, que as pessoas superficiais citam como exemplo de fanatismo e cujo significado é: ou te dedicas a discutir com um infiel como somente um verdadeiro filósofo pode discutir, ou então “crava-lhe uma espada no corpo o mais profundamente possível”. Um verdadeiro filósofo (mesmo um da escola contrária) seria o primeiro a concordar que São Luis foi inteiramente filosófico neste assunto.
G. K. Chesterton, in “Santo Tomás de Aquino” (ensaio biográfico).
EL género novelesco es, sin duda, cómico. No digamos que humorístico, porque bajo el manto del humorismo se esconden muchas vanidades. Por lo pronto, se trata simplemente de aprovechar la significación poética que hay en la caída violenta del cuerpo trágico, vencido por la fuerza de inercia, por la realidad. Cuando se ha insistido sobre el realismo de la novela, debiera haberse notado que en dicho realismo algo más que realidad se encerraba, algo que permitía a esta alcanzar un vigor de poetización que le es tan ajeno. Entonces se hubiera patentizado que no está en la realidad yacente lo poético del realismo, sino en la fuerza atractiva que ejerce sobre los aerolitos ideales.
La línea superior de la novela es una tragedia; de allí se descuelga la musa siguiendo a lo trágico en su caída. La línea trágica es inevitable, tiene que formar parte de la novela, siquiera sea como el perfil sutilísimo que la limita. Por esto, yo creo que conviene atenerse al nombre buscado por Fernando de Rojas para su «Celestina»: tragicomedia. La novela es tragicomedia. Acaso en la Celestina hace crisis la evolución de este género, conquistando una madurez que permite en el «Quijote» la plena expansión.
Claro está que la línea trágica puede engrosar sobremanera y hasta ocupar en el volumen novelesco tanto espacio y valor como la materia cómica. Caben aquí todos los grados y oscilaciones.
En la novela como síntesis de tragedia y comedia se ha realizado el extraño deseo que, sin comentario alguno, deja escapar una vez Platón. Es allá en el Banquete, de madrugada. Los comensales rendidos por el jugo dionisiaco, yacen dormitando en confuso desorden. Aristodemos despierta vagamente, «cuando ya cantan los gallos»; le parece ver que sólo Sócrates, Agatón y Aristófanes siguen vigilantes. Cree oir que están trabados en un difícil diálogo, donde Sócrates sostiene frente a Agatón, el joven autor de tragedias, y Aristófanes, el cómico, que no dos hombres distintos, sino uno mismo debía ser el poeta de la tragedia y el de la comedia.
Esto no ha recibido explicación satisfactoria, mas siempre al leerlo he sospechado que Platón, alma llena de gérmenes, ponía aquí la simiente de la novela.
“Meditaciones del Quijote“, José Ortega y Gasset.
“Dentre todas as criações do espírito humano, a arte goza duma situação excepcional. Se aceitarmos considerá-la em suas culminâncias, elas nos dá à consciência uma satisfação gratuita e perfeita que supera as expectativas e mesmo as esperanças. Põe em movimento todas as potências interiores: mas estas, em vez de se oporem umas às outras, se correspondem, se sustentam e se unificam. Toma a dianteira de nossos desejos: ela despertará este desejo do fundo de nós mesmos, descobrindo-o e suscitando-o. Mas, ao mesmo tempo, o apazigua e preenche. Na emoção estética, o desejo e o objeto do desejo são dados de uma só vez, não cessando de se corresponderem, numa oscilação ininterrupta; contudo, enquanto que, na vida cotidiana, eu não encontro nenhum objeto que possa se igualar em face de minha potência desejante, aqui as relações encontram-se repentinamente invertidas. O desejável é anterior ao desejo. Temo que em mim nunca haja desejo suficiente para atualizar e possuir tudo o que é desejável. Mais ainda, é típico do desejo sempre exibir-me a insuficiência do real e transportar-me para além dele. Mas aqui, ao contrário, é o real que temos sob nossos olhos que não cessa de alimentar o desejo, sem que este sinta-se capaz de esgotá-lo. Daí fazer-se mister apenas deste leve contato da atividade humana que, ao transportar o real para uma obra de arte, dá-lhe de chofre uma luz extraordinária, um imenso plano de fundo, uma afinidade misteriosa conosco. A arte é criada no momento em que o hiato que separa o real de nosso espírito se encontra abolido, em que a contradição entre o sujeito e o objeto, entre a aspiração e o dado é ultrapassado, em que uma comunicação incessante produz-se entre a consciência e a natureza, sendo de tal natureza que cada uma se entrega a outra sem parar, ambas parecendo por sua vez dar e receber.
“O mundo que para mim era um obstáculo agora torna-se um caminho aberto para meu espírito. As coisas param de se me opor: descubro entre mim e elas uma afinidade que é objeto duma possessão atual, mas que sempre conserva-se como uma promessa e uma esperança. O sinal da emoção estética é a alegria que renovo ao ver que as coisas são, com efeito, o que elas são. Não mais temo que elas me escapem, porque é próprio da arte captá-las e dá-las em sua disposição, digamos; mas eu nunca termino de tomá-las à disposição: temo também que sua posse se esgote e me feche o caminho para o futuro. Mais ainda, não basta apenas que a emoção estética renove-se e regenere-se sem parar, à medida que estende-se e aprofunda-se: é preciso que ela multiplique as razões que temos de querer que as coisas sejam precisamente como são. Permite-nos dar ao tempo seu significado verdadeiro, pois ela não nos retira nada do que já tenhamos e, se nos compromete com o vir-a-ser, é só para mostrar-nos a plenitude infinita dum valor que temos, todavia, sob os olhos.”
Louis Lavelle
“Chamam-se virtudes todos os hábitos constantes que levam o homem para o bem, quer como indivíduo, quer como espécie, quer pessoalmente, quer coletivamente.
É esse o conceito de virtude (de vir, homem). É a potência racional que inclina o homem à prática de operações honestas, tendentes para o bem.
Pode-se, assim, falar de virtudes morais e virtudes intelectuais. As que tendem para o bem honesto são morais, as que tendem para a verdade são as intelectuais. A caridade é uma virtude moral. As virtudes intelectuais, também chamadas especulativas, são a sabedoria, a ciência, etc.”
VIRTUDES CARDEAIS
“A palavra cardeal vem de cardo, cardinis, que, em latim, significa gonzo, em torno do qual gira a porta. As virtude cardeais são as virtudes fundamentais em torno das quais gira o ser humano. Toda virtude é uma capacidade ou aptidão para levar avante ações adequadas ao homem. Entre as virtudes adquiridas pelo homem, estabelecem-se quatro, que são fundamentais, ou capitais, às quais estão subordinadas outras, que são acessórias, ou subordinadas. Desde a antiguidade, classificou-se como virtudes cardeais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.
A prudência é aquela virtude que permite ao entendimento reflexionar sobre os meios conducentes a um fim racional. A prudência manifesta-se, assim, de vários modos. É uma virtude intelectual. Por si só ela não é realizadora de atos morais, mas, por facilitar a escolha, ela pode guiar a vontade, a fim de que esta se dirija, após a seleção feita pelo entendimento, para aqueles fins mais benéficos ao homem. Há uma prudência (sapiência) para conduzir a si mesmo e para conduzir os outros. A prudência exige: reflexão, capacidade atencional, para examinar os juízos e as idéias, e acuidade, para descobrir os meios mais hábeis. Exige, ademais, inteligência, capacidade de resolver com clareza e segurança, de modo a alcançar as melhores soluções.
A segunda virtude é a fortaleza ou valentia. Consiste esta na capacidade de enfrentar os perigos que se oferecem à obtenção dos bens mais elevados, e entre estes perigos, os males e a morte. Chama-se heroísmo a fortaleza quando enfrenta até a morte. Medo é o estado emocional que detém o ser humano ante o perigo. A fortaleza é uma vitória sobre o medo. A audácia é um desafio ao risco e à morte, indo-lhes ao encontro. É ela uma virtude, quando refreada. Os meios de fortalecimento da fortaleza são o exercício, que consiste em enfrentar os riscos e a perseveração na obtenção dos fins. Como as virtudes cardeais conjugam-se, a fortaleza recebe apoio e equilíbrio da prudência, pois, pelo saber, pode o homem empregar esta virtude em termos que lhe sejam mais benéficos possíveis.
A paciência é uma virtude subordinada à fortaleza, e consiste na capacidade constante de suportar as adversidades. Também o é, a generosidade, que é aquela virtude que se caracteriza pela energia e decisão no ataque do homem de brio e de valentia, sobretudo quando ele enfrenta a morte. São ainda virtudes afins à fortaleza, a confiança na sua capacidade de enfrentar os riscos, a munificência, que constitui a pronta decisão de sacrificar seus próprios bens para atingir fins elevados, a tenacidade, que é a disposição firme de enfrentar os obstáculos exteriores, e a constância, que é saber manter-se firme ante os obstáculos interiores.
A terceira virtude cardeal é a temperança. Esta consiste em aperfeiçoar, constantemente, a potência petitiva, sensitiva, de modo a conter o prazer sensitivo dentro dos limites estabelecidos da sã razão. Assim, a moderação é a temperança no comer, a sobriedade, no beber, a castidade, no prazer sexual.
Há virtudes outras auxiliares da temperança, como seja o decoro no modo de vestir e proceder, e o sentimento de honra, a humildade, que é a moderação na tendência a salientar-se, a mansidão, que é a temperança em refrear a ira, a clemência, que se manifesta na indulgência ao castigar, e a modéstia, que é a temperança nas manifestações exteriores.
A quarta é a justiça. Consiste ela na atribuição, na equidade, no considerar e respeitar o direito e o valor que são devidos a alguém ou a alguma coisa.
O domínio da justiça permite o equilíbrio da moderação, da temperança, da fortaleza e da própria prudência. Essas quatro virtudes cardeais, que lhes são acessórias, ou subordinadas, nos limites marcados pela interatuação de umas sobre as outras, permitem formar o homem dentro dos mais altos valores. São assim as virtudes cardeais fundamentais, não só para a ordem social, como para a pessoal, pois não pode haver homens sãos nem sociedades sãs, onde a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança não estejam presentes. Todo trabalho pedagógico tem de se fundamentar, primacialmente, na preparação de seres humanos para que adquiram, pelos meios mais aptos e eficientes, estas quatro virtudes, infelizmente tão pouco estudadas pelos modernos, que as esquecem e não lhes dão o valor que elas realmente têm.
Distinguem-se as virtudes cardeais das virtudes teologais, no seguinte: as primeiras são adquiridas e fortalecidas pelo hábito; as segundas, ou nascemos com elas ou não, porque nem a fé, nem a esperança, nem a caridade as obtemos pelo exercício dos hábitos, mas, ou elas moram em nós mesmos, ou não moram.”
VIRTUDES TEOLOGAIS
“Assim como há virtudes cardeais, adquiridas pelo hábito constante, há virtudes que nos parecem espontâneas, que não são produtos de um hábito humano, como sejam a fé, a esperança e a caridade.
Na Ética religiosa, essas três virtudes são chamadas de teologais, porque não são elas produtos de um hábito, pois o homem não as adquire através do seu próprio esforço.
A fé é o assentimento do intelecto que crê, com constância e certeza, em alguma coisa. A prudência, podemos adquiri-la, a pouco a pouco, como podemos adquirir a fortaleza e alcançar, pelo nosso esforço, a justiça e a moderação, mas, para crer com constância e certeza em alguma coisa, não basta o nosso querer, é preciso que esse assentimento do nosso intelecto se dê espontaneamente. Ninguém gesta dentro de si a fé; ou a tem, ou não. Ou com ela nascemos, ou subitamente ela aflora em nós, sem necessidade de termos dirigido para ela, conscientemente, qualquer de nossos esforços.
A esperança é a expectação de algo superior e perfeito. Tem esperança aquele que aguarda algo de maior, de melhor, de mais perfeito, que venha a suceder.
A esperança não é o produto de nossa vontade, mas de uma espontaneidade, cujas raízes nos escapam, porque não é ela genuinamente uma manifestação do homem, mas algo que se manifesta pelo homem, porque não encontramos na estrutura da nossa vida biológica, nem da nossa vida intelectual, uma razão que a explique.
A caridade é a mãe de todas as virtudes como diziam os antigos, e diziam-no com razão; é a raiz de todas as virtudes, porque ela é a bondade suprema para consigo mesmo, para com os outros, para com o Ser Infinito. A caridade, assim, supera a nossa natureza, porque, graças a ela, o homem avança além de si mesmo, além das suas exigências biológicas. É essa a razão porque, na Religião, essas três virtudes, que Cristo nos apontou, são consideradas como vindas de uma raiz mais longínqua.
A palavra de Cristo é clara. A fé, a esperança e a caridade são aquelas virtudes pelas quais o homem supera a si mesmo, pelas quais o homem tange a suprema perfeição. Todas as tentativas de explicar essas virtudes, com origem nos fatores emergentes e predisponentes, malograram até aqui. Elas não são o produto de uma prática, porque pode o homem praticar a caridade, sem tê-la no coração; pode o homem exibir uma crença firme, sem alimentá-la no seu âmago; pode o homem tentar revelar aos outros que é animado pela esperança, sem ressoar ela em sua consciência. Assim, podem praticar-se atos de fé, atos de esperança e atos de caridade, e estar-se ainda muito distante dessas três virtudes.
Não basta desejar adquiri-las; é preciso tê-las. A ciência é um hábito, como um hábito são também as outras virtudes, mas, sem a presença dessas três, aquelas esmaecem e se apagam. O verdadeiro homem religioso e virtuoso afana-se em adquirir as virtudes cardeais, mas humildemente espera que nele se fortaleçam as três virtudes teologais.
E nesta humilde espera está em grande parte a sua grandeza.”
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Santos, Mário Ferreira. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. São Paulo: Ed. Matese, 1963. Vols 1,4. (págs 1271-1272: “Virtude” e “Virtudes Teologais”; págs 233-235: “Cardiais”).
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Em seu livro Psicologia, escreve o filósofo Mário Ferreira dos Santos:
“…a consciência é gradativa; apresenta uma infinidade de graus.
“Acentuava William James que as naturezas geralmente emotivas, muito acessíveis aos movimentos afetivos, podem caracterizar-se, em linhas gerais, por um mais alto grau e por um campo mais estreito de consciência, que os não-emotivos.
“Reduzindo a extensidade, aumenta-se a intensidade, eis uma lei que registramos em todo o existir tempo-espacial.
“O fato de sempre necessitar o homem um campo mais amplo de atividade, levou-o a dispersar mais a sua consciência atencional.
“A mulher sempre esteve mais ligada à moradia. Enquanto o homem tinha maior campo de ação e por isso generalizava mais, a mulher, por estar mais perto da singularidade dos fatos, captou melhor o heterogêneo. Por isso, é ela mais intuitiva que o homem, sendo este mais racional.”
Psicologia, Mário Ferreira dos Santos, Editora Logos, 5ª edição, 1963.
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Agora que a mulher leva uma vida semelhante à do homem, não se espante por vê-la sempre a meter-se em enrascadas sentimentais — culpando um suposto “dedo podre” — e a vê-la, tal como um homem, incapaz de notar que a amiga tem um corte novo de cabelo ou que o cônjuge tem mais problemas do que se imagina. A “caracterologia” e a atenção em profundidade, tão dependentes da intuição intensista, já não são dons femininos — por outro lado, se ainda são dons naturais, estão reprimidos.
Antes de alguém vir criticar o texto acima, lembre-se de que Mário Ferreira dos Santos certamente tinha uma compreensão mais profunda dos conceitos de “extensidade”, “intensidade”, “generalização”, “razão”, “singularização”, “intuição”, “homogêneo”, “heterogêneo”, e assim por diante, do que julga a vã filosofia de quem nunca levou a sério a filosofia.
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Dias atrás, um amigo — um excelente amigo —, durante uma conversa num grupo do WhatsApp, fazendo o “isentão”, declarou que não é de direita nem de esquerda, nem dá palpites em política, porque “todo brasileiro é corrupto”. Decidi então recorrer ao mais básico dos silogismos, no qual, para efeito de manutenção da amizade, chamarei aqui esse amigo de Fulano, e lhe respondi:
Premissa maior: Todo brasileiro é corrupto.
Premissa menor: Fulano é brasileiro.
Conclusão: Fulano é corrupto.
E então lhe indaguei: ¿há algum erro nesse silogismo? Ele nunca me respondeu…
Comentando o caso com outro amigo, este me disse que eu poderia ter escrito:
Premissa maior: Todo brasileiro é corrupto.
Premissa menor: A mãe de Fulano é brasileira.
Conclusão: A mãe de Fulano é corrupta.
Achei a proposta engraçada, mas indecorosa. Não era minha intenção forçar meu amigo a uma resposta, ainda que motivada emocionalmente, mas apenas fazê-lo pensar. Ora, ao longo da minha vida, conheci um número muito maior de pessoas honestas do que de pessoas desonestas, até mesmo entre esquerdistas. (Neste último caso me refiro a questões práticas, de ética no trabalho, por exemplo, e não à honestidade intelectual.) O número de pessoas corruptas só nos parece demasiado grande apenas porque, quando esses desonestos agem nessa clave, costumam causar grandes danos, os quais sobressaem diante do panorama geral da moralidade saudável. Certos atos desonestos são como um Pão de Açúcar frente às praias da honestidade: nossa vista é automaticamente atraída por eles.
O fato é que o pensamento revolucionário — tal como comentei numa crônica de 2006, “A culpa é da sociedade” — prega exatamente essa perspectiva, afinal, pretende destruir aquilo que Alain Peyrefitte afirmava ser o liame social por excelência: o par complementar “confiança-esperança”. Num estado totalitário, todos os cidadãos devem ser colocados uns contra os outros, visando um domínio mais eficiente, por parte do Politburo, de suas consciências: dividir para reinar. O que um “isentão” não percebe é que, mesmo declarando-se “não-esquerdista”, ele se move, vive e existe dentro de uma atmosfera cultural moldada, no mínimo, pela Escola de Frankfurt. É por isso que muita gente, por mais que odeie um partido como o PT, ainda assim defende um sem número de princípios e valores semelhantes aos dos membros do partido — se não comunistas ao menos progressistas (que é o comunismo em doses homeopáticas) — e nem sequer se dá conta disso.
Albert Camus, que também estudou o movimento revolucionário, escreveu em O Homem Revoltado:
“No fim desta longa insurreição, em nome da inocência humana, surge, por uma perversão essencial, a afirmação da culpabilidade geral. Todo homem é um criminoso que se ignora. O criminoso objetivo é justamente aquele que se supunha inocente. (…) Trata-se aqui de uma objetividade científica? Científica não, mas sim histórica”, pois, lembra Camus, a História justificará todos os crimes cometidos pelo movimento revolucionário contra esses supostos “criminosos” no caminho para a sociedade socialista perfeita.
E, ao falar das conseqüências dessa conversão de uma condenação subjetiva, por parte dos revolucionários, em um ato objetivo contra o “herege”, Camus resume: “é a definição filosófica do terror”. A mentalidade revolucionária, pois, considera “culpado tudo o que ela própria não aprovar”. Sua ideologia se torna “matéria de fé” e recai na “evangelização forçada”, perseguindo, assim, “os culpados que fabrica”.
Deste modo, continua Camus, “a culpabilidade já não reside no fato, mas sim na simples ausência de fé [na ideologia], o que explica a aparente contradição do sistema objetivo. Num regime capitalista, o homem que se diz neutro é considerado como favorável, objetivamente, ao regime. No regime do Império [revolucionário], o homem que se mostra adepto da neutralidade é julgado hostil, objetivamente, ao regime. (…) Aderir à lei, numa atitude de indiferença, é coisa que não basta; há que vivê-la e que agir em seu serviço; há que se manter o indivíduo sempre vigilante para aderir a tempo quando os dogmas se transformam. Ao menor erro, a culpabilidade em potência torna-se por sua vez objetiva”.
Em suma: quando alguém, meu caro isentão, luta contra a mentalidade revolucionária, esse alguém está lutando por ti; e caso esse alguém saia derrotado, a idéia que os revolucionários te impuseram através da cultura e da educação — a saber, a idéia de que “todos são corruptos” — poderá, mais cedo ou mais tarde, ser usada contra ti.
Reconhecer a possibilidade da corrupção de si mesmo não é abraçar a corrupção, assim como reconhecer-se um pecador não é abraçar o pecado: é prevenir-se contra ambos. Já para a mentalidade revolucionária é sempre uma condenação prévia que visa o momento oportuno da pena capital; para ela, exatamente porque não reconhece uma ética transcendente, as palavras ‘corrupto’ e ‘corruptível’ são sinônimas.
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