palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Meus contos Page 3 of 7

A Síndrome do Salvador

Assim que o garçom se retirou, fitou o amigo nos olhos e lhe disse à queima roupa: — Conheci uma garota incrível! Tô apaixonado.

— Sério? Eu a conheço?

— Não, não. Não costuma freqüentar os mesmos lugares que a gente.

— E onde você a conheceu? Pelo Tinder?

— Quase. Foi pelo Happn.

— Nunca ouvi falar.

— É um aplicativo parecido. Mas não tem tantas barangas nele.

Os dois riram.

— E ela? — tornou o amigo. — Também gostou de você?

— Cara… A gente saiu, rolou o maior clima, ficamos…

— Porra, será que agora sai casório? A gente tá ficando velho, Marcelo. Eu pelo menos acabei de noivar. Você precisa ver como é bom ter alguém ao nosso lado.

O outro fez uma careta: — Calma, né. A gente acabou de se conhecer. Não quero assustar a figura. Ela só tem vinte e um anos.

— E daí? Minha mãe se casou com vinte e dois.

— Outra época, uê. Antigamente nego se casava porque, do contrário, só comeria putas. Se o Vinícius de Moraes fosse jovem hoje, não teria se casado tantas vezes.

— Sei. Antigamente na época dos nossos avós, você quer dizer. Nos anos setenta e oitenta já era quase como hoje. E, se o Vinícius estivesse na ativa hoje, seria como a gente: teria um monte de ex-namoradas e nenhuma estrutura, nenhum filho, necas de pitibiriba. Ele pelo menos, por se casar, se reproduzia. Mas é também por causa desse bando de pós-Vinícius que andam por aí que os islâmicos estão dominando tudo, multiplicando-se feito coelhos.

— Caraca! Suas conversas sempre terminam nos islâmicos! Quando a gente se conheceu, terminavam em Deus. Será que a gente pode voltar ao assunto?

— Ok, ok. Foi mal — e depois de tomar um gole da cerveja: — Então me fala da garota.

— Bom — e os olhos de Marcelo brilharam. — Ela é linda, inteligente, divertida, carinhosa, tem uma voz hipnotizante… e é gostosa, claro.

— Claro — e Tiago devolveu o sorriso.

— Só tem um problema…

— Ai ai… — fez o amigo, suspirando. — Lá vem: não me diga que se meteu de novo com outra garota de programa? Pelo amor de Deus, véio, você tem de parar com isso! Esse papo de salvar putas não dá certo não.

— Mas eu já convenci duas a largarem essa onda errada.

— Eu sei. Mas elas se casaram com você? Não, porque você foi apenas o… digamos assim, o terapeuta! Elas não iam querer ficar com um cara que conhecia o passado delas e que as atormentou tanto por conta disso. Ainda não entendeu? Vai repetir a dose?

— Mas eu não disse que essa figura de agora é garota de programa, cacete! E vê se fala baixo!

Tiago arqueou as sobrancelhas, curioso: — Ah, não? Qual é o problema então?

— Véio… — e fez um muxoxo. — Ela é uma esquerdista roxa! Adora a Dilma até hoje e acha que estão fazendo uma injustiça com o Lula…

O amigo abriu os abraços, rindo: — Uê! Mas você disse que ela era inteligente!

— Não começa, Tiago. Você sabe que não é uma questão de inteligência. É uma questão de valores! Ela submete a inteligência dela a valores equivocados, só isso.

— Ou seja, ela é burra.

— Puta merda! Por acaso o Graciliano Ramos era burro? O Jorge Amado era burro? O José Saramago era? Claro que não! Eles tinham era um problema de cognição, uma dificuldade de avaliar os fatos e reconhecer os verdadeiros valores, cada qual à sua escala, uns mais, outros menos. Isso nada tem a ver com inteligência. E a Andréia é super inteligente, tem um ótimo senso de humor… Ela logo logo vai entender que…

Tiago, sacudindo a cabeça, interrompeu-o: — Que bosta, véio! Você tá fodido.

— Ué, por quê?

— Agora tô achando que seria melhor mesmo você se apaixonar por uma puta de esquina.

— Ai, meu saco. Que papo é esse, Tiago? Deixe de ser radical!

— Não estou sendo radical: estou sendo é realista.

— Como assim?

— Marcelo, você não percebe que vai acontecer tudo de novo?

— Tudo o quê?

— Essa sua mania de salvar as garotas do mau caminho, velho! Vai ser como aconteceu com as duas garotas de programa: você vai torrar o saco da figura, vai falar um monte de coisas com as quais ela não concorda, vai desafiá-la, vai lhe provocar muitas dores de consciência, enfim, vai apenas deixá-la ferida e puta da vida. É como se você pegasse um pedaço de terra improdutiva, arrancasse suas ervas daninhas e suas pragas, a arasse, lhe revolvesse o solo e… seu talento principal… lhe jogasse as sementes. Só que você a machucará tanto nesse processo que ela não vai mais querer saber de você. O arado machuca, cara! Por orgulho, mesmo que mais tarde ela comece a mudar de valores, ela não aceitará permanecer com o sujeito que a fez cair das nuvens. Já disse, é como preparar a terra para o plantio: você poderá semeá-la, mas quem irá colher os frutos do seu labor não será você, mas, sim, um outro reaça dotado de uma colheitadeira. Você só tem as ferramentas de aragem e de semeadura. Se soubesse colher alguma coisa, não estaria nesse perene estado de busca. Eu pelo menos estou noivo da garota que namoro há três anos. Já você, fica pulando de galho em galho, preparando-os para outros passarinhos. Estou errado?

Marcelo ficou em silêncio, pensativo. Não queria dar o braço a torcer, mas tampouco sentiu que havia inverdades naquela observação. Voltou a bebericar da cerveja, o olhar distante.

— Bom, parece que você me entendeu, né — tornou Tiago, depois de um minuto. — Tome cuidado, hem.

— Cara… quer saber? Eu vou é arriscar!

— Porra, bicho! Não vacila!

— Bom, eu tenho um ótimo argumento. Quer ver?

— Ver? Eu quero é ouvir. Qual é o argumento?

Marcelo tomou o celular sobre a mesa, destravou-o e entrou na galeria de imagens. Por fim, estendeu o braço ao amigo: — Dá uma olhada na figura! Já pegou alguma garota assim na sua vida?

Tiago, de olhos esbugalhados, ia admirando as imagens que Marcelo lhe exibia: — Nã… não… — gaguejou.

Andréia era deslumbrante. Parecia uma super-modelo: esguia mas dotada das necessárias e imprescindíveis curvas, seio farto, a clavícula conspícua, os braços delgados e frágeis, a cabeça altiva, os cabelos longos, lisos e brilhantes, os olhos grandes de boneca, lábios deliciosos… e se vestia como uma princesa, extremamente feminina.

— Cara, você tem certeza que ela é petista? — indagou Tiago, muito impressionado.

— Ela tem uma foto abraçada com o Lula e outra com o José Dirceu no Facebook dela.

— Puts!… Queria ver isso. Qual o nome dela?

Marcelo lhe deu o nome completo.

— Vou pesquisar depois — tornou Tiago.

O outro sorriu, vitorioso: — Não disse que meu argumento era lacrador? Vai me dizer que não tenho razão em arriscar?

— Rapaz, eu acho que você deve ir com tudo! Faça a maior limpeza na cabeça dela! Eu sempre recomendo, antes de sugerir autores conservadores, que um esquerdista deve primeiro ler Krishnamurti, porque esse doido indiano é um ácido corrosivo que não deixa ilusão sobre ilusão na cabeça do sujeito. Depois literatura da boa: Dostoiévski, Wassermann, Bernanos, Chesterton… Só então você deve fazê-la ler o Olavo de Carvalho, o Mário Ferreira, o Scruton, o Voegelin… enfim, os de alto calibre filosófico. E aí… — e Tiago sorriu, maquiavélico.

— E aí o quê?

— Aí, daqui uns seis meses, depois que vocês terminarem, vou ficar espiando o Facebook dela. Vai levar um ou dois anos, imagino, para ela começar a frutificar e a postar umas coisas reaças. A essa altura, eu já terei rompido meu noivado e já terei comprado uma colheitadeira!

Marcelo deu um tapão na mesa: — Ah, véio, vá se foder!

Tiago deu uma gargalhada: — Vamo beber! Vamo beber!

Enquanto isso, em Miami… (conto)

Mal entrou no X Club, badalada casa noturna da Eleventh Street, em Miami, André Jorge, o mais novo galã das novelas globais, dirigiu-se ao balcão e pediu um uísque com energético. Feliz com sua nova aquisição, só pensava em comemorar. Chegara naquela tarde de Orlando, onde assinara o contrato de sua nova propriedade: uma mansão de quatro suítes e três pisos no condomínio Magic Village Resort. Após quase quatro horas de viagem num carro alugado, ali estava ele, cartão magnético do hotel no bolso, pronto para a caça. Cansado do assédio constante que sofria no Brasil — em geral, um assédio promovido por quem não lhe interessava —, na Flórida poderia se desvencilhar facilmente das raras brasileiras que por ventura lhe cruzassem o caminho, o que, para um pretenso alívio da sua vaidade, o faria sentir-se novamente uma pessoa normal. Sim, ele também sentia muita falta da difícil arte da sedução, aquela arte à qual, ‘confidenciava’ nas entrevistas, tanto se dedicara antes do estrelato. Mulher fácil, repetia aos colegas do Projac, não era com ele.

— It’s today! — gritou ele, copo na mão, traduzindo ao inglês uma expressão idiomática brasileira que não fez o menor sentido para quem estava à sua volta.

André Jorge era um homem bonito, másculo, simpático e seu olhar sedutor, do alto de seus trinta e dois anos, fazia as fãs brasileiras se atirarem aos seus pés. Tendo tantas vantagens naturais, colocou seus atributos masculinos em ação. Infelizmente, após meia-dúzia de tentativas frustradas, percebeu que, nos Estados Unidos, seu parco domínio do inglês tornara-se um súbito entrave aos seus planos. Ora, flertar em inglês não era tão fácil quanto pedir um prato num restaurante ou um quarto num hotel! Por mais que preferisse trabalhar arduamente para levar uma mulher para a cama, nada conseguiria se continuasse tartamudeando feito um inseguro nerd. Sem dizer que aquelas mulheres do club, pelo jeito, não eram dotadas de nenhum espírito de baile funk, no qual uma mera encoxada já fazia as vezes de uma conversa envolvente. Decidiu, pois, que teria mais sucesso abordando mulheres latinas com seu portunhol recentemente desenvolvido em Madrid. Sim, desenvolvido tal como apregoou, embora o famoso ator o tenha negado, o site O Fuxico: mediante a assistência de prostitutas hispano-americanas residentes na Espanha… Durante as gravações naquela capital dos capítulos iniciais de sua última novela, adotou, sem o saber, a técnica de aprendizado de idiomas do explorador inglês Sir Richard Francis Burton: um mês utilizando a língua num bordel.

— Hola! — disse ele para uma linda morena, metida num vestido colante revelador, que acabara de pedir um Apple martini. — Hablas español?

Ela o olhou de cima a baixo, e então sorriu: — Sí, claro.

— Puedes decirme cuales son los mejores drinks acá?

— Pero si ya estás bebiendo! — contestou a gata de olhos grandes e lábios fartos.

De fato, ele já estava bebendo. Mas dissera a primeira coisa que lhe viera à mente. Riu meio sem jeito e foi direto ao ponto: — Queres bailar conmigo un rato?

— Qué pasa, cariño? Ese huevón te está molestando? — disse um sujeito enorme, surgido repentinamente do meio da multidão, que se achegou à linda garota e a abraçou pela cintura.

Ela riu: — No. Solo me preguntaba sobre los drinks.

O homem se inclinou na direção do ator global e rosnou: — Oiga! No moleste mi novia solo porque ella es famosa! Queremos privacidad!

André Jorge já ia dizendo que também era uma celebridade, ao menos no Brasil, mas o casal, de mãos dadas, desapareceu em meio à efervescência da pista de dança. Aquilo o irritou profundamente… Virou pois o copo, tragando a bebida num único gole, e decidiu que o melhor a fazer era mesmo dançar. Dirigiu-se, pois, à pista de dança e tentou, em meio à espremeção geral, dar vazão à sua dança do acasalamento versão “música eletrônica”. Claro, sendo apenas “mais um entre muitos”, permaneceu no seu papel de incógnito solitário a atrair, no máximo, sorrisos de desdém ou até mesmo de escárnio, afinal, danças ridículas só fazem sucesso entre amigos e fãs. Mas ele, álcool na cachola, persistiu e, a certa altura, avistou outra bela morena, olhos amendoados, seios enormes, longas pernas, a qual, com um olhar estranhamente acanhado, vinha abrindo passo em meio à algazarra. Ele se deixou enfeitiçar por aquela beldade e, sem se dar conta, estacou enquanto ela cruzava sua frente. Então, de repente, alguém se chocou contra suas costas e o empurrou na direção da moça, que, de olhos arregalados, tentou recuar: tarde demais. O encontrão foi tão violento que ele quase a derrubou! Segurando-a pelos braços, pediu desculpas em espanhol, mas ela retrucou, enfastiada: “I’m don’t speak spanish, asshole! I speak only a little english”. E, aparentemente ofendida por ser confundida com uma latina, se desvencilhou dele, tencionando seguir seu caminho. Nesse momento, ele não pôde evitar uma espiada naqueles incríveis seios, mas o que viu o assustou: havia agora uma pequena mancha de sangue na parte inferior do seio direito. O vestido branco, extremamente colado, não deixava dúvidas: ele a havia ferido. Quis avisá-la, mas ela não lhe fez caso e prosseguiu seu caminho até o outro lado da pista. Talvez fosse brasileira, já que não falava espanhol, senão apenas “um pouco de inglês”. Brasileiras… Que se dane, pensou. André Jorge logo decidiu que era hora de voltar ao hotel. Estava cansado daquilo, não era um lobo solitário e já começava a sentir saudade de algo indefinível. Sorridente, fez então um selfie — precisava informar a seus seguidores do Instagram que sua vida era uma maravilha — e se dirigiu à saída. Antes de lá chegar, porém, ao passar novamente pelo balcão do bar, deparou-se com a loira mais deslumbrante que jamais vira na vida: e ela lhe sorriu! Num impulso, o ator soltou um tímido “hi”.

— Hola! — disse ela, o sorriso mais belo do mundo. — Eres brasileño, no es cierto?

— Sí — respondeu ele, surpreso.

— Creo que te he visto en una novela cuando estuve en Rio.

Salvo pela fama, cheio de alívio, entabulou uma agradável conversa na qual descobriu que aquela linda mulher era a mais famosa apresentadora de TV da Colômbia. Ela inclusive já havia entrevistado, em seu talk show, a atriz global que interpretara, na novela de estréia de André Jorge, o seu par romântico. E a colombiana começou a lhe apontar diversas outras celebridades latinas ali presentes: uma atriz mexicana, um âncora de telejornal argentino, uma cantora equatoriana, uma socialite chilena, dois atores venezuelanos e assim por diante. A linda garota, a quem havia abordado minutos antes, aquela do namorado brutamontes, não era senão a mais nova cantora celebridade do México, a qual, agora, iniciava uma promissora carreira de atriz nos Estados Unidos.

— Increíble — repetia ele.

E a apresentadora colombiana o convenceu a acompanhá-la até sua mesa, onde André Jorge conheceu mais meia-dúzia de famosos hispano-americanos. A conversa teve como mote, de início, esse irônico fato de haver tantas celebridades presentes que mal conheciam umas às outras. “E que os americanos não fazem a menor idéia de que sejam famosos em seus países”, acrescentou alguém. Depois falaram de suas casas na Flórida, de como era mil vezes melhor morar num país onde havia liberdade de ir e vir sem serem atormentados constantemente pelos fãs, e assim por diante. Uma atriz equatoriana, ademais, era vizinha do Sílvio Santos em Orlando e, apesar de saber que se tratava de um brasileiro rico e famoso, não tinha a menor idéia de quem ele era ou o que fazia.

— Que verga! — exclamou ela. — Una celebridad desde los años 1960!

Em seguida, falaram de como era muito mais seguro viver nos Estados Unidos, longe dos crimes horríveis e da eterna corrupção que assolam a América Latina. Dois dos presentes logo narraram os episódios em que, cada qual em seu país, haviam sido sequestrados, permanecendo em cativeiro vários dias, até que, num caso, o resgate foi pago e, no outro, os bandidos foram mortos pela polícia. O próprio André Jorge já havia sido vítima de um sequestro relâmpago no Rio de Janeiro, mas nada comentou a respeito porque, não apenas sua aventura havia sido inferior àquelas duas narradas, mas também nem sequer era famoso na época do ocorrido. A conclusão daquele assunto, enfim, era a verdade pungente de que a América Latina continuava desgovernada e cruel, e de que não havia melhor saída do que a clássica saída do aeroporto.

— Me voy una vez cada semana para mi país y despues vuelvo corriendo! — finalizou um ator colombiano, ao que lhe replicou um venezuelano que, no seu caso, nem sequer voltava mais para a Venezuela, afinal, seu país era agora um país socialista mergulhado no caos e todos os cidadãos que tinham condições e meios já se haviam exilado.

— Que buena nota es Estados Unidos, no? Todavía somos libres acá — comentou a equatoriana, toda sorridente.

Depois de algumas enfáticas concordâncias, a bela apresentadora colombiana, com ar sombrio, disse: — Sí, pero los americanos son estúpidos! Eligieron Trump!

E então iniciou-se uma série de longas asserções onde cada qual, inclusive o ator brasileiro, expressou seu espanto diante do resultado das eleições americanas e sua incapacidade de compreender como um povo tão próspero era capaz de eleger um louco como Donald Trump.

— Luego ya no podremos vivir acá! Trump odia a los inmigrantes.

E esse tema se prolongou tanto — recheado de tantas previsões de catástrofes que o novo presidente americano certamente causaria — que André Jorge, que falava apenas portunhol, começou a perder o fio da meada, já que todos, eufóricos de tanta indignação, passaram a falar o espanhol demasiado rápido para seus ouvidos brasileiros. E ele se distraiu. E, distraído, deixou o olhar vagar pelo club. Observou as pessoas na pista, dançando ao ritmo da música eletrônica, as pessoas mais ao longe, no balcão do bar, aqueles que, como ele e seus colegas famosos, estavam sentados nas mesas dos camarotes e então… Sim, cruzou olhares com a beldade, a mesma que se irritou ao ser confundida com uma latino-americana! Que linda ela era! E estava sentada apenas três mesas adiante acompanhada por outra garota tão bonita quanto ela. Curiosamente, pareciam tensas, irritadas, deslocadas. Talvez já tivessem se dado conta de que ele a machucara. Era bem provável que, tal como acontecera meses atrás com uma colega do Projac — uma atriz recém saída da adolescência — ele, ao chocar-se contra ela, tenha rompido os pontos de uma cirurgia para implantes de silicone mal feita. Sentindo-se culpado, decidiu ir pedir-lhe desculpas e, talvez, caso ela necessitasse, oferecer a devida reparação financeira. Vai que realmente se tratava de uma brasileira, pensou. Pediu, pois, licença aos novos amigos — já tinha o WhatsApp de todos (fariam muitas festas em Orlando) — e se dirigiu à mesa da morena, que, ao notar sua aproximação, pareceu ficar ainda mais aflita. Quando ele já estava abrindo a boca para lhe dirigir a palavra, ela sussurrou qualquer coisa para a amiga e, numa pressa nervosa, levantou-se e se retirou, metendo-se rapidamente entre os dançantes da pista. A moça que permaneceu na mesa o encarou, muito séria, e retirou um celular da bolsa. Ele a ignorou e saiu no encalço da primeira, a qual, provavelmente por acreditar ser ele um tipo qualquer de stalker, devia estar à procura de um segurança. André Jorge, porém, sentido-se seguro de si — afinal encontrara “sua turma” e voltara a ter consciência de quem ele era — não se fez de rogado e a perseguiu até o meio da pista, quando ela então estacou de costas para ele.

— Excuse me, miss — disse ele amavelmente, tocando-a de leve no braço.

Ela se virou, brusca, os olhos arregalados, uma expressão ao mesmo tempo decidida e cheia de espanto: encarando-o, ela ergueu o celular na mão direita. Ao mesmo tempo, André Jorge ouviu um grito vindo da mesa que acabara de deixar: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! A garota que ele seguia repetiu o grito: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! — e imediatamente apertou uma tecla do celular: as duas enormes explosões foram praticamente simultâneas. Havia trezentas e vinte e duas pessoas naquele club de Miami. Sessenta e três morreram instantaneamente. Outras sete morreram mais tarde no hospital ou a caminho dele. Setenta ficaram feridas. De fato, soube-se mais tarde, quando o vídeo das duas terroristas tornou-se público, que André Jorge tinha razão: não apenas a primeira, mas ambas haviam feito cirurgias para aumentar os seios. Contudo, em vez de silicone, haviam implantado o famigerado explosivo C-4, o qual fora detonado via bluetooth mediante um singelo aplicativo de celular. O próximo papel de André Jorge, na Globo, teria sido o de Riobaldo, numa nova adaptação do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Foi por isso que a revista Época, em sua capa, na qual falava desse atentado e da morte do ator, usara como manchete a frase do mais famoso jagunço da literatura brasileira: “Viver é muito perigoso”.

O machista feminista

Tempos atrás participei de um encontro literário na Casa Mário de Andrade, em São Paulo, onde, ao longo de uma semana, debati com outros autores as perspectivas da literatura brasileira neste novo milênio. Foi lá que, entre outros, conheci pessoalmente Elisa Andrade Buzzo, Luis Eduardo Matta, Miguel Sanches Neto, André de Leones, Fabrício Carpinejar e Antonio Prata, com quem, na última noite, dividi uma carona oferecida pela esposa de Julio Daio Borges, organizador do evento. Embora o encontro tenha sido muito interessante — principalmente porque pela primeira vez eu participava de algo do gênero enquanto escritor convidado, e não como leitor —, este relato nada tem a ver com o evento em si, com os demais colegas ali presentes ou sequer com literatura — ao menos não diretamente. O fato é que, justamente no dia em que Daniela Rede, minha bela e auto-proclamada assessora de imprensa, não pôde comparecer, fui abordado ao final do debate daquela noite por um sujeito de ar simultaneamente astuto e simpático.

— Li seu livro — revelou ele, após apertar-me a mão e me cumprimentar pelas intervenções daquela noite.

— ¿Foste tu? — repliquei, sorrindo.

Ele riu: — Escritores brasileiros estão sempre achando que não são lidos.

— Deve ser por causa do xerox das faculdades e dos ebooks piratas — retruquei. — O que o bolso não vê, o coração não sente.

Alto, metido num elegante paletó escuro feito sob medida, em lustrosos sapatos Oxford, exibindo um reluzente Cartier dourado no pulso, óculos de Clark Kent, o cachecol posto à la “forca”, tal como agora se usa — em vez de à la “estrangulamento”, se é que me entendem —, esse cara bem vestido parecia um desses freqüentadores de vernissages que vemos em filmes alemães ou franceses. Com isso, quero dizer que se tratava de alguém que, a despeito de sua aparência de intelectual, também tinha um quê de empresário de sucesso, e nitidamente atraía a atenção feminina circundante. No fundo, ele parecia alguém montado para a ocasião — ou seja, se aquela fosse uma reunião de navegadores, ele teria aparecido em trajes de marinheiro de revista de moda.

— Também acompanho seu blog — tornou ele.

— ¿Você? Pensei que apenas um punhado de universitários lia meu blog.

— Bom, fiquei sabendo desses debates por causa dele.

O sujeito, que se apresentou como Nathan, após tratar por alto de alguns temas sobre os quais eu havia escrito naquela semana, talvez para me provar que realmente era meu leitor, ofereceu-me uma carona até a Vila Madalena, onde residia o amigo com quem eu estava hospedado, e também me perguntou se eu não queria aproveitar os bares da região para beber alguma coisa. ¿Carona e drinques ofertados por alguém que comprou meu livro? Claro que aceitei.

— ¿Sua mulher não veio com você hoje? — perguntou quando nos dirigimos à porta da frente.

— Não, não veio. E ela, infelizmente, não é minha mulher.

— Uma linda garota. Eu a vi aqui ontem à noite.

Saímos da Casa. Ele tinha um desses Jeeps Cherokee blindados, uma mania entre os endinheirados paranóicos de São Paulo, pois, apesar de pesados e de beberem feito loucos, em nosso restrito mercado eram os mais indicados para sobreviver à guerrilha urbana de todos os dias. Lá dentro, no banco de trás, muitos livros empilhados.

— Você por acaso não é um editor… ¿ou é?

— Não, não. — E vendo meu desapontamento involuntário: — Não precisa fazer essa cara. Você logo logo terá um bom editor. Basta esquecer um pouco os contos e escrever um romance.

— Ou arranjar um agente literário — acrescentei.

— Um agente, não! Uma agente — e Nathan sorriu.

Quando ainda percorríamos a avenida Pacaembu, ele começou a entrar no assunto que realmente lhe interessava:
— ¿Yuri, você já trabalhou como ghost-writer?

— Não e, sinceramente, nunca tive interesse. Gosto de assumir o que escrevo. Prefiro publicar algo ruim com meu nome do que publicar uma obra prima anonimamente. Coisas do ego.

— Entendo. Mas você não se importaria de aconselhar quem nunca escreveu um livro, ¿não é?

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ATENÇÃO: O conto, que me parece muito longo para o blog, continua aqui.

Nosso homem em Curitiba

Aleksandr Dugin

O agente G. Greene segue o grupo até um bar de Curitiba e senta-se numa mesa próxima. Percebendo que a reunião poderá ocorrer ali mesmo, entra em contato com Langley, a sede da CIA, mediante um excelente software utilizado por todos os espiões do mundo: o WhatsApp.

— Controle, segui Dugin até um bar próximo ao hotel em que ele se hospedou. Ele está bebendo com um grupo de jovens e com outras duas pessoas de meia-idade, um homem e uma mulher.

— ¿Algum deles é ligado ao governo? ¿O agente cubano José Dirceu está com eles?

— Não, Controle. Nenhum dos presentes está em nossa lista.

— Estranho. ¿Mas estão falando sobre uma aproximação entre o Kremlin e Brasília?

— Bom, por enquanto Dugin apenas reclamou de ser o único a pedir uma vodka, enquanto os demais, segundo seu intérprete, “como menininhas, tomam apenas suquinhos de fruta”.

Resposta de Langley: :-))

— Começaram a falar mais baixo, Controle. Devem ter chegado ao assunto principal. Aguarde um momento.

— OK.

Em Langley, o Controle da missão espera por novas informações, enquanto joga Candy Crush Saga. Os minutos passam rapidamente. Por um instante, o Controle pensa que talvez fosse melhor utilizar aquele tempo para ler a pilha de documentos em sua mesa, todos relativos a Dugin, mas está tenso demais para se concentrar na leitura do que quer que seja. Melhor prosseguir com o jogo.

— Controle — chama novamente o agente Greene, ao cabo de uns vinte minutos. — Eles estão falando sobre um certo “Inimigo Número 1 do Eurasianismo”, alguém que divulgou para o resto do mundo os planos secretos de Dugin e de Putin.

— Quem é ele, Greene? Você obviamente já sabe por que isso nos interessa tanto.

— Sim, Controle: “o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo”.

— Exato. E, quando o descobrir, relate apenas a mim, você sabe que também temos inimigos aqui em Langley.

— Claro, senhor. Um momento, ainda estou tentando entender o nome.

O Controle volta ao Candy Crush. A cada cinco minutos de vida desperdiçada, ele xinga mentalmente o criador de tão viciante praga digital.

— Controle, eles o chamam apenas de “O Astrólogo”.

— Astrólogo? Que codinome interessante.

— Não sei se é apenas um codinome. Dugin está a lhes dizer para que insistam nessa alcunha em todas as redes sociais. Por enquanto, segundo ele, seria a melhor maneira de desmoralizar esse inimigo.

— Esquisito, ¿não?

— Controle! Agora Dugin o chamou de Olaf e, em seguida, de Olev. Também o chamou de O Colecionador de Rifles da Virgínia. Deve ser nosso conterrâneo.

— Isso é muito esquisito, Greene. O único Olaf colecionador de rifles daqui da Virgínia, que conheço, é meu próprio pai, um veterano da Guerra da Coréia.

— Sim, eu me lembro do seu pai. Eu o conheci no seu aniversário, ¿lembra-se? Por isso estou espantado.

— Bem… Vou perguntar a ele se está sabendo de algo que não sabemos.

— OK, Controle.

— Mais alguma…

— Eles estão saindo, Langley! Tentarei segui-los.

— OK. Mantenha-me informado.

Por alguma razão, o grupo sai sem pagar a conta. Greene não notou se alguém já havia se encarregado disso. Infelizmente, o dono do bar o encara com uma expressão de maus bofes quando o vê se aproximar da saída, e ele então entra na fila do caixa para pagar sua própria conta. Em Langley, o Controle põe de lado o Candy Crush e volta a organizar a pilha de documentos sobre Dugin. Deixa por baixo de todos um calhamaço contendo um debate entre Dugin e um filósofo brasileiro. ¿O que um filósofo brasileiro poderia acrescentar ao que já sabem? Ele nem sabia que havia filósofos no Brasil. Enquanto isso, em Curitiba, Greene é atendido pela simpática caixa, cuja camiseta traz uma inscrição que lhe passa desapercebida: “Olavo tem razão”.

O náufrago e a náufraga

Cansado dos constantes atritos com a esposa, Júlio decidiu convidá-la a fazer um cruzeiro pelas ilhas do Pacífico: uma viagem daquele tipo, acreditava, poderia devolvê-los a um estado pós-Lua de Mel. Marilda ouviu a proposta, meditou por alguns momentos e a aceitou: talvez ele tivesse razão e novos ares iriam restaurar um relacionamento já tão gasto. Sim, no fundo, o problema que vinham enfrentando era o mais banal, o mais corriqueiro de todos: enquanto a esposa queixava-se da desatenção e do egoísmo do marido, ele, que era um argentino radicado no Brasil, ya estaba podrido com tantas reclamações: “Ela não me deja en paz! Vive pegando no meu pé!”.

— Comprei o pacote! Serán dos semanas en un navio! — anunciou Júlio, pouco antes do início das férias.

E, de fato, três semanas mais tarde, partiram. Os primeiros dois dias de viagem foram excelentes: assistiram ao pôr-do-sol do convés, jantaram à luz de velas, ouviram música ao vivo, dançaram e, no segundo dia, até mesmo transaram. Duas vezes! De manhã e à noite. Sim, parecia promissor.

— Foi a melhor idéia que você já teve, Júlio!

Mas, no terceiro dia, logo após Marilda reclamar da toalha molhada sobre a cama, as coisas começaram a desandar. Júlio já não conseguia ficar mais do que quinze minutos no camarote. Depois da toalha, ouviu sobre os chinelos, a “bagunça da mala”, a temperatura do ar-condicionado, sobre seu inútil “inglês de Tarzan”, como se o dela fosse melhor, e assim por diante. Sabia que, em seguida, seria o cigarro, a sunga, a roupa suja, a escova de dentes, o carregador do celular e quaisquer outros pretextos descobertos ao momento. Por mais que tentasse vigiar a si mesmo, ele sempre se surpreendia com os novos defeitos que a esposa encontrava nele. Marilda era extremamente detalhista: nada lhe escapava! Por isso, Júlio decidiu passar a maior parte do tempo ou no bar, ou à beira da piscina. E o pior: notou que a escolha entre esses dois lugares estava condicionada à presença da mulher mais linda que já vira na vida: uma loira totalmente Barbie, de olhos grandes, lábios fartos, nariz delicado e arrebitado, cabelos compridos, pernas longas, seio hipnótico, corpo longilíneo, uma verdadeira deusa. Se ela estava no bar, era ali que ele ficava. Se ela estava tomando sol, ele escolhia a piscina. Ficava admirando-a horas a fio por trás dos óculos escuros. No quinto dia, porém, ele percebeu que ela também o notara. E o mais incrível: quando o via, ela lhe sorria! Infelizmente, Júlio, que era mais baixo que a esposa, não tinha uma autoestima das melhores e, por isso, sentia-se incapaz de qualquer aproximação. É óbvio que aquela mulher, mais alta ainda que Marilda, devia ser uma modelo européia e jamais se interessaria por ele.

— Você está me evitando!! — berrou Marilda, na tarde do sétimo dia.

— Yo? Claro que não, cariño!

— Tá sim! E aposto que já está de olho em alguma sirigaita.

Como ele nada respondesse a essa acusação, a mulher, subindo nos tamancos, se enfureceu:

— Seu desgramado! Eu sabia!

E começou a lhe atirar todo objeto que estivesse ao alcance. O camarote se encheu de cacos e de coisas quebradas. Até o iPhone dele foi trincar-se de encontro à parede. Ao ver isso, Júlio, embora já fosse demasiado tarde, decidiu se defender:

— Marilda! Pelo amor de Dios! Você realmente acha que eu iria atrás de outra mulher logo neste cruzeiro? Eu vim aqui por sua causa! Por nossa causa!

— Eu te conheço muito bem! — esbravejou ela. — Se não foi atrás de ninguém, é só porque você morre de vergonha de ser baixinho!!

Ah, por essa ele não esperava. Desde que se conheceram, nove anos antes, ela jamais fizera qualquer alusão à diferença de altura entre eles. Por alguma razão inexplicável, talvez a intuição feminina, ela jamais se referira àquele fato, pois sentia que, se o fizesse, desencadearia um Armagedom. E foi justamente o que ocorreu:

— Cala essa boca! — berrou Júlio. — Cállate ahora!! Com quem você pensa que está falando?! El hombre aquí soy yo!

— Grande homem! — debochou a esposa, sorrindo sarcasticamente. Para quê… Júlio a tomou dos pulsos à força, puxou-a para si e, sob protestos e pedidos de socorro, deitou-a no colo e levantou-lhe a saia. Quando lhe deu a primeira e fortíssima palmada, chocados, de olhos arregalados, ouviram juntos o som de uma forte explosão. Ficaram paralisados, perdidos num limbo da realidade. Num primeiro momento, parecia que ele havia explodido a bunda dela com a palmada. Mas então veio o som de uma sirene e as luzes vermelhas. O navio adernou acentuadamente para a direita, derrubando-os da cama. Alguém gritou no corredor e, em seguida, pelos alto-falantes:

— Todos para o convés! O navio está afundando!

Apavorados e silenciosos, fugiram de mãos dadas pelo corredor, quase correndo pelas paredes. Os passageiros atropelavam-se, tomados pelo mesmo pânico. Por sorte, Júlio e Marilda estavam apenas um andar abaixo do convés, o qual alcançaram com relativa rapidez. Mas não foi o suficiente. Ninguém sabia o que estava ocorrendo, mas o céu azul, sem nuvens, a completa ausência de recifes ou corais, indicava que o acidente fora causado por algum vazamento de gás ou, quem sabe, até mesmo por uma bomba. O sol começava a esconder-se no horizonte. Sem sucesso, os marinheiros tentavam liberar os botes salva-vidas. Mas já era tarde, o rombo no casco certamente era enorme e, quando o casal deu por si, já estava dentro d’água. O navio desapareceu em menos de três minutos.

— Júlio!! — gritou Marilda, que nadava muito mal.

— Aqui! — tornou ele, que tentava subir sobre um grande baú de fibra de vidro.

Os passageiros e a tripulação se espalhavam pela superfície das águas, quase todos aos berros. Júlio não conseguiu afastar da mente a lembrança do filme Titanic: “Então foi assim”, pensava. Já sobre o baú, meteu os braços na água para levá-lo na direção dos gritos de Marilda.

— Marilda!!

— Aqui, Júlio! Aqui!!

Ele remou mais para a direita e a encontrou. Ao mesmo tempo, sentiu que alguém forçava o baú para o outro lado, tentando escalá-lo. Olhou naquela direção: era a belíssima loira.

— Help me, please! — disse ela, o olhar cheio de medo.

— Wait a second — respondeu e, já segurando as mãos de Marilda, tentava puxá-la para cima daquele salva-vidas improvisado. Contudo, por mais que se esforçasse, apenas fazia tombar o objeto.

— Vai logo, Júlio! — gritou então a esposa. — Será que nem pra isso você tem força?! Que droga de homem, viu.
Aquelas palavras converteram Júlio num iceberg. O iceberg que afundou Marilda. Sem esboçar qualquer sentimento, soltou-lhe as mãos e observou-a afundar no mar escuro:

— Adiós, Leonardo DiCaprio — disse o argentino à meia voz. E, voltando-se para o outro lado, deu as mãos para aquela beldade. Embora fosse mais alta, a mulher tinha corpo de modelo, era bem mais magra que sua esposa e, por isso, não houve maior dificuldade em puxá-la para cima do baú sem desestabilizá-lo. Juntos, remaram para longe do desastre, temendo que outras pessoas pudessem virá-los. Horas mais tarde, adormeceram um nos braços do outro, passando toda a noite assim. Na manhã seguinte, despertaram encalhados numa minúscula ilha deserta, dotada não mais que de cinco coqueiros.

Sete anos mais tarde, o novo veleiro da família Schürmann passava por ali. Heloísa, de pé no convés, apreciava o horizonte com um binóculo.

— Vilfredo! — gritou ela. — Acho que tem alguém pulando e gritando numa ilhota nesta direção.

— Deve estar pedindo ajuda. Pode ser um náufrago. Vamos lá.

O casal corrigiu a rota e rumou para o salvamento. Meia hora depois, ancoravam a uns cem metros da pequena praia. Na areia, distinguiram dois homens com longas barbas: um alto e loiro, e outro baixinho de cabelos castanhos. Apenas o mais alto pulava, gritando e agitando os braços, cheio de felicidade.

Vilfredo preparou o bote inflável e foi resgatá-los:

— O que aconteceu com vocês, meus amigos? — perguntou em inglês, assim que se encontraram.

— Nosso navio afundou anos atrás. Foi muito triste. Se não fosse pelo Júlio aqui, eu teria morrido.

Quando Vilfredo olhou para Júlio, notou que ele tinha a expressão mais triste deste mundo.

Fim.

Moral da história 1: Esposa, não encha tanto o saco do seu marido: num momento de crise, isso poderá até mesmo custar a sua vida.

Moral da história 2: Marido, por mais que ela o atormente, não seja desleal à sua esposa: do contrário, você poderá levar no rabo durante sete anos.

Moral da história 3: Travesti, nunca se esqueça de, numa viagem longa, levar um grande suprimento de hormônios femininos. Do contrário, caso você curta ser passivo, terá de se contentar em ser ativo: contra a vontade do outro parceiro…

As Musas Olavettes

Musas Olavettes

No Facebook, foi lançada este ano uma página chamada Musas Olavettes. Sim, há mulheres lindas ali. (Já imaginou? Mulheres lindas, inteligentes e imunes a idiotas úteis? Pois é.) Até possuo um caminhão para semelhantes areias, mas ele está sem óleo diesel e eu moro longe, o que me torna, em comparação com outros homens, praticamente um rato. E gatas não dão atenção a ratos. Por isso, a única coisa que eu poderia oferecer a uma daquelas musas seria uma cantada (quase) irresistível.

Imagine a cena:

Ela estará sentada no balcão de um bar de hotel cinco estrelas, compenetrada, tomando um cappuccino enquanto lê O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Embevecido, tímido, mas me fazendo de abestalhado, eu me aproximarei e direi:

— Oi, baby — e lhe darei uma piscadela bem cafajeste.

Ela, claro, levantará uma única sobrancelha e me disparará um olhar de direita, fatal e congelante, sem mover a cabeça e sem emitir qualquer palavra. Em seguida, dará um discreto e belo suspiro de indiferença, voltando a encarar o livro e prosseguindo com a leitura. Conhecedor do meu trunfo, puxarei um banquinho e então me sentarei ao lado dela, pedindo um uísque ao barman, que obviamente me entregará a bebida com um sorriso de piedade. Aquela beldade, acreditará ele, é muito livro para minha estante.

— ¿Você não é amiga da Carolina? — perguntarei, voltando à carga.

— Não — responderá ela, num murmúrio cheio de enfado.

Eu voltarei ao silêncio, contemplando o exterior do hotel, o lindo jardim, as árvores, as palmeiras dançantes, os hóspedes que se refrescam à beira da piscina. Não deixarei o mote passar em branco.

— Você já conheceu a piscina?

Ela permanecerá muda, talvez concentrada, talvez irritada, mas plenamente decidida a me ignorar e a tomar conhecimento de coisas muito mais importantes.

Eu insistirei em puxar assunto:

— O hotel é muito chique, né. ¿Mas você notou que não tinha manteiga no café da manhã?

E ela nada, nem tchuns.

— Os caras só me trouxeram margarina — prosseguirei, com um esgar de nojo. — ¿Você sabe quais são os ingredientes da margarina?

Incapaz de conter-se, e dando vazão a seu agastamento, ela me dirá:

— Acho que você ainda não notou, mas… ¿você sabia que está me incomodando?

Vitorioso, darei meu sorriso másculo e irônico de Jim Carrey cheirado, e retrucarei:

— ¿E você sabia que Olavo de Carvalho fala de mim à página 320 do livro que você está lendo?

Ela arregalará os olhos cheia de espanto.

— Sim — continuarei — e ele nem está me detonando: está me elogiando! Verdade. E isso significa que, para você não ser uma idiota, baby, além da Carolina, da piscina e da margarina — e começarei a cantarolar —, você também precisa saber de mim! Baaaby! Baaaaby! Eu sei que é assim!! Baaaby! Baaaby! Há quanto tempo!! — E para arrematar a cantada, direi: — Veja aí meu nome, baby: página 320! E depois me mande um recado pela portaria, isto é, caso queira jantar comigo esta noite…

E, triunfante, sairei do bar, sem atentar para o fato de que será assim que conseguirei uma namorada brasileira para o João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo, hospedado no mesmo hotel, e citado pelo Olavo no mesmo parágrafo do mesmíssimo artigo. E eu obviamente ficarei a ver navios… Mas, ora bolas, ¿que poderei fazer? Deus sabe que sou apenas um rato, um liteRato…

Direitomeu e Esquerdoleta

Enquanto isso, no centro acadêmico de História:
— Ei! Tira a mão de cima de mim, seu reaça!
— Calma, garota — e sorriu, confiante. — Sabia que eu tenho algo que é meio torto pra esquerda?
— Ah, é? E você sabia que eu sei dar um gancho de direita?
— Tá vendo? A política não é uma barreira. A gente também pode chegar a um consenso…
Minutos depois, no alojamento estudantil:
— E foi assim que eu consegui este olho roxo.
— Que maneiro — admirou-se o amigo.

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