palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Meus contos Page 6 of 7

Ex-namoradas e desarmamento civil

 

"Ei, sua ex-namorada tá morando no mesmo prédio que eu."

"Ah, é?"

"É. E continua muito gata, a gente sempre se encontra no elevador."

"Sei."

Silêncio.

"Que cara é essa?"

"Minha cara, uê."

"Tá com ciúme, é? Pensei que você é que tinha terminado com ela."

"E foi mesmo."

"Então não pode ter ciúmes, poxa. Aliás, você nunca teve ciúme de ex-namorada…"

"A gente muda. Aprende a se deixar envolver de verdade…"

"Eu ia chamar ela pra sair. Você ficaria grilado?"

O outro vacila alguns segundos. Por fim, indaga: "Você ainda é defensor do desarmamento civil?"

"Que que isso tem a ver?"

"Responde primeiro."

"Sou a favor, sim."

"E por que é a favor?"

"Caralho, a gente já discutiu isso mil vezes…"

"Refresca minha memória, vai."

"Tá bom. Caramba… É o seguinte: eu acho que, em casos extremos, a pessoa que tem uma arma pode perder o controle emocional e fazer besteira."

"Sei. Você acha que o autodomínio é uma utopia então…"

"O completo autodomínio é."

"Você se lembra do que eu acho disso, né."

"Ah, lá vem você com aquele papo de que fez CPOR, de que é tenente da reserva, que tem arma e que sabe usar…"

"E não só."

"Ah, claro: você também se acha supercontrolado, vive repetindo que atiraria apenas na coxa ou no ombro de um assaltante e que nem uma briga de trânsito com um completo babaca iria te tirar do sério…"

"E você duvida disso."

"Duvido! Duvido meeeesmo. Acho que todo mundo tem seu limite."

"Acha mesmo?"

"Acho."

"A gente pode fazer um teste."

"Que teste?"

"Sai com minha ex-namorada e fica com ela. Juro que tentarei me controlar. Vamos ver quem tem razão."

"Por acaso isto é uma ameaça, é?"

"Claro que não — é uma experiência. Você parece acreditar muito na sua tese. Eu, por exemplo, acredito apenas que essa garota foi, ou é, sei lá… enfim, que ela foi importante pra mim."

"Hum."

"E então? Topa ver qual de nós tem razão sobre o autodomínio?"

O outro deu um sorriso amarelo. No dia seguinte, mal cumprimentou a garota ao vê-la na portaria do prédio…

Um papo estranho

 

"Meus velhos amigos estão no Facebook, mas nunca conversam comigo."

"Os meus tampouco, na verdade, nem respondem minhas mensagens diretas."

"Os meus respondem no máximo com um ‘sim’, um ‘não’ ou um ‘talvez’."

"Por que será?"

"Ah, deve ser por causa de política ou de religião. Com o tempo as pessoas vão notando as diferenças de opinião e vão se afastando. Cada macaco no seu galho."

"Muito chato isso."

"Nem me fala."

"Mas acho que comigo isso acontece por outras razões…"

"Por exemplo?"

"Ah, a maioria parou de falar comigo depois que entrei numa festa armado, atirando em todo mundo."

"Como é?!"

"Sério, mas não matei ninguém não. Era um revólver de espoleta."

"Ah, bom…"

"Mas ninguém achou graça. Com a paranóia geral, ficaram foi putos, pensando que era de verdade. Teve gente que se jogou debaixo da mesa; muito engraçado. A namorada de um amigo meu me xingou pra caramba, aí chamei ela de puta e tal."

"Credo."

"Ah, mas era uma vagabundinha mesmo. Já tinha dado pra todo mundo, só ele não sabia. Até aquele momento, claro. E sobrou pra mim: o cara me encheu de porrada."

"Puts…"

"Pelo menos não foi como numa outra festa, onde servi um space cake pra galera."

"Que que é isso?"

"Um bolo feito de maconha, porra."

"Ah, tá…"

"Aí sim quiseram me matar… Todo mundo alucinando e tal. Chamaram a polícia, imagine. Esse pessoal careta, quando finalmente fica louco, perde as estribeiras…"

"Você parece ser meio psico, né."

"Psico? Só eu?"

"Bom, eu nunca fiz esse tipo de coisa. No máximo declaro abertamente minhas posições sobre política, religião…"

"E só eu sou psicótico?"

"E o que há de psicótico em assumir minhas idéias numa rede social?"

"Bom, nisso não há nada de psicótico, mas, se você já se esqueceu, estamos ambos com o pau de fora conversando no Chatroulette.com…"

"Hum, é verdade. Já tinha até abstraído. Mas é que, caramba, só tem pau de fora aqui e as garotas nunca conversam com a gente."

"Tá, mas é injusto, numa situação como essa, eu ser o único psicótico…"

"Ok, ok, me desculpa."

"Pelo menos a gente consegue conversar, ao contrário do que ocorre com nossos antigos amigos."

"Isso é verdade."

"A gente podia se adicionar no Facebook…"

"Tá louco, meu! Você acha que vou adicionar um cara de quem só vi o pau! Tá achando que sou bicha? Vai se ferrar, cara!"

"Ah, vai você, seu idiota!"

E então ambos apertaram no "Next".

Márcia e o desconhecido do MSN

 

 

Márcia iniciou o MSN e a janela com o convite se abriu: um certo Alessandro queria adicioná-la. Era bonito na foto e, no texto do convite — “Oi, te achei interessante. Posso te adicionar?”—, havia o endereço do perfil dele no Facebook. Decidiu, pois, dar uma checada antes. Viu que ele tinha apenas uns quarenta amigos — o que lhe pareceu pouco, talvez estivesse há pouco tempo naquela rede social —, notou que ele morava e trabalhava na mesma cidade, que tinham muitos interesses em comum e o principal: pelas demais fotos via-se que era realmente um homem muito bonito, um sujeito a exalar um ar de confiança dos mais impressionantes. Claro, um piloto de helicóptero — uau! — não podia ser alguém sem auto-estima. O aparelho pode até preferir o combustível, mas os passageiros querem mesmo é alguém que lhes transmita segurança.

“Ok”, pensou ela, “vou dar uma chance pra esse cara”, e aprovou o convite. Ele, que já estava online, iniciou o contato imediatamente.

“Oi, tudo bem?”

“Tudo, e com você?”, devolveu ela.

E iniciaram um longo diálogo que durou mais de três horas. Descobriram gostos em comum, falaram de livros, filmes, viagens, esportes radicais, gastronomia e até de astrologia tradicional, que a ela nunca interessou muito, mas que, em vista das descrições que ele lhe fazia com base apenas na data de nascimento dela, muito a tocou. Não era um homem qualquer. Via-se que conhecia os mais diversos temas. E como escrevia bem! Transmitia maturidade. Muito diferente de outros homens a quem ela dera uma brecha pela internet e que apenas a deixaram constrangida e irritada.

“Acho que estou prestes a cometer uma loucura”, escreveu ela, por fim.

“E que loucura seria essa?”

“Acho que vou aceitar seu convite para esse passeio de helicóptero.”

“Mesmo?”

“Mesmo.”

“Isso não é tão louco assim. Eu piloto muito bem. Estará em boas mãos.”

Ela hesitou alguns instantes. Mas preferiu abrir o jogo: “O problema é que sou casada”.

“Hum, entendo. Mas não se preocupe, vou respeitar você.”

“Rsrsrsrsrsrs”, digitou ela. “Mas é que estou pensando em me separar do meu marido. A loucura que estou falando é a seguinte: você consegue pilotar enquanto uma mulher chupa seu pau?”

Ele demorou segundos demais para responder. Ela quase se arrependeu da ousadia. Então ela viu que ele digitava algo. E leu: “Bom, como profissional, acho que seria uma péssima idéia e realmente não deixaria você fazer isso comigo em pleno vôo. Mas podemos, antes ou depois do passeio — você escolhe a ordem — podemos passar uma tarde num motel”.

“Perfeito!”, disse ela. “Quando?”

Marcaram o encontro. E desconectaram. Ela estava decidida a ter essa aventura. Estava cansada da distância que o marido deixara crescer entre eles, cansada da sua falta de iniciativa, do seu desânimo, das suas reclamações e de sua eterna depressão. Ele vivia colocando a culpa dessa vida atolada no governo, nos ex-sócios, na falta de visão do brasileiro comum, enfim, a culpa era sempre de um outro, ele jamais assumia sua falta de atitude. Ele, que fora um homem cheio de sonhos e planos, uma pessoa criativa e muito inteligente, depois que se tornara Fiscal Federal na fronteira, costumava agora passar metade do mês noutra cidade, sempre se comunicando de uma forma amargurada, seca, como se não gostasse mais da vida ou, quem sabe, como se não gostasse mais dela. Já Rafael, o marido, não sabia o que pensar. Para não perder sua esposa, que tanto amava, de fato trocara seus sonhos por um emprego estável que pagava bem. Quantas vezes ouvira os amigos a lhe dizer que precisava deixar de viver no mundo da Lua? Quantas vezes lhe disseram que uma família precisa de segurança material e não de viagens na maionese artística? Mas agora estava fora de si. Não sabia se matava a si próprio, se matava Márcia, ou se as duas coisas. Desde o casamento, quatro anos antes, ele vivia criando perfis e contas de MSN falsos para testar a fidelidade da esposa. Mas essa estranha mania se acentuara com esse novo emprego, que o mantinha longe, numa cidade aborrecida, cultivando meramente os ciúmes e a preocupação. Sua imaginação não o abandonava, vivia martirizando-o. Imaginava a esposa sozinha, ainda jovem, bonita, sem filhos, sem ter o que fazer na capital… Entrava então no Flickr, copiava mil fotos de diversos estranhos, ficava dias preparando um perfil no Facebook, convidando pessoas aleatoriamente para dar uma certa credibilidade àquela vida falsa sem amigos reais, e até aquele momento, por mais que tivesse tentado, na pele de um outro, seduzi-la com palavras, promessas, lascívia e até dinheiro, a esposa sempre se esquivara, alegando amar o marido e afirmando enfaticamente que havia aceitado o convite apenas por achar que se tratava de algum contato profissional. Desta vez, porém, ela não passou no seu teste.

O amigo do escritor

 

Ui, ele é escritor!

"E aí? Leu o livro que lhe dediquei?"

"Ué, você me dedicou um livro?"

"Puts, quantas vezes terei de repetir que dediquei? Umas mil, setecentas e vinte e três vezes? Caralho, e olha que já faz dois anos que o publiquei!"

"Cadê o livro?"

"Na loja, claro. No site. Você nem comprou, né."

"E ainda preciso comprar?"

"Como é?! É óbvio que precisa!! Eu lhe dediquei um livro e ainda espera ganhá-lo de graça?! Quer comer minha bunda também? A da minha namorada? Que figura… Cobra caro cada segundo do trabalho que faz mas quer meu trabalho de graça… Depois ainda tem coragem de me dizer que escolhi uma carreira que não dá dinheiro…"

"Se você me dedicou, devia me dar o livro."

"Não acredito que você falou isso… Não acredito… Eu NÃO TENHO o livro! Eu apenas o escrevi. Não tenho dinheiro sobrando pra ficar comprando meu próprio livro só para dá-lo aos amigos."

"Credo, que mau humor…"

"Mau humor vírgula. Quer saber? Não dedico livro pra mais ninguém. Gente mais indiferente, credo."

"Se você não tem dinheiro pra me dar o livro, o problema não é meu…"

"A questão não é essa. Meu dinheiro é para outras coisas mais urgentes. Não é pra dar livro pra quem não o quer ler. Aliás, já coloquei a versão em ebook no seu iPad mil anos atrás. E de graça! Não é possível que não o viu no iBooks. Ou agora vai dizer que só lê livro de papel?"

"Não. Na verdade, não gosto de literatura nacional…"

"Certo, certo. Vai se ferrar então. Vai ver o BBB. Cada uma que a gente tem de ouvir…"

Enquanto o escritor sai, pisando duro, o outro, um enorme sorriso no rosto, volta a abrir o livro do amigo. De papel. Já está na página 77…

(Publicado no Digestivo Cultural.)

Faça gratuitamente o download dos meus ebooks nos formatos PDF, EPUB (Sony Reader, iPad, Positivo Alfa, etc.) e MOBI (Kindle, iPhone, Android, Blackberry)

A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau

Um livro de contos que satiriza todos os âmbitos da vida universitária.

A Bacante da Boca do Lixo e Outros Escritos da Virada do Milênio

Coletânea de contos, crônicas e um ensaio escritos entre 1993 e 2008. Todos os textos trazem – seja de modo explícito ou implícito – um pouco do clima apocalíptico que contagiou aqueles anos.

Caso você possua um iPad e prefira ler o livro em PDF, use este aplicativo de leitura gratuito.

______
Atualização de Julho de 2012: Devido a acordos com editoras, esses livros não estão mais disponíveis de graça. Visite a página de livros para saber com mais detalhes onde adquiri-los. (Incluindo as versões impressas.)

Novo livro: A Bacante da Boca do Lixo

A Bacante da Boca do Lixo

Quero anunciar o lançamento do meu livro A Bacante da Boca do Lixo e Outros Escritos da Virada do Milênio. Trata-se de uma coletânea de contos, crônicas e um ensaio escritos entre 1993 e 2008. Todos os textos trazem – seja de modo explícito ou implícito – um pouco do clima apocalíptico que contagiou aqueles anos. (Em breve lançarei outro volume, no mesmo tom, de título O Exorcista na Casa do Sol e Outros Escritos da Virada do Milênio.)

O livro impresso e o ebook no formato EPUB podem ser adquiridos aqui ou aqui.

O ebook também está à venda na Amazon e na Kobo Books.

Reedição do livro “A Tragicomédia Acadêmica” (download gratuito)

Gostaria de avisar aos leitores deste blog que meu livro “A Tragicomédia Acadêmica — Contos Imediatos do Terceiro Grau”, cuja primeira edição data de 1998, foi reeditado por intermédio do Clube de Autores, o primeiro serviço que alia a impressão sob demanda à venda online na internet brasileira.

Para adquirir meu livro impresso, clique aqui ou aqui.

Caso queira baixar o ebook (PDF) gratuitamente e ler algumas opiniões a respeito dele, clique aqui.

Se Deus quiser — e eu tomar vergonha na cara — irei publicar outros dois até o final do ano.

Page 6 of 7

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén