palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Honolulu, 13 de Janeiro de 2018 (conto)

Naquela manhã de sábado, William e Lindsay ainda dormiam em seus respectivos quartos, quando George C. Morgado, o pai, lhes bateu violentamente à porta:

— Bill! Levanta! Rápido! — e enquanto esmurrava a porta da filha: — Acorda, Lin! Vamos!

O homem estava tão agitado e seus gritos foram tão estridentes que as crianças, muito assustadas, deixaram a cama de um pulo:

— Que foi, papai? O que está acontecendo?

— Venham! — disse, arrastando-os pelas mãos.

— Calma, pai! Tá me machucando… — resmungou a menina, que vestia apenas uma camiseta enorme que lhe atingia os joelhos.

O pai, de olhos esbugalhados, a respiração opressa, não lhes fez caso: limitou-se a conduzi-los escada abaixo até a sala. Na cozinha, Martha, a mãe, enchia um engradado plástico com várias garrafas de água mineral, sacolas de pão, caixas de cereal, embalagens de comida congelada e demais mantimentos a esse modo. William não gostou nada de ver aquela agitação:

— Ah, não! Eu não vou acampar hoje! Tenho aula de surfe à tarde.

A mãe virou-se instantaneamente para ele: seus movimentos e sua agitação eram de puro frenesi.

— Pro porão! Pro porão! — gritou ela, fitando-os com uma expressão perplexa, insana.

Lindsay começou a chorar:

— Não fui eu! Não fui eu! Foi o Bill — protestou, sem saber do que falava, mas já prenunciando um castigo inédito qualquer.

Comovida, a mãe largou o engradado sobre a mesa e a pegou no colo:

— Calma, meu bem! Nós vamos sobreviver — retrucou, sem ter apreendido senão o choro da menina.

— Rápido, Martha! — berrou o pai, colocando uma mochila às costas. — Leve-a para o porão! Eu pego o engradado.

William assistia a tudo boquiaberto:

— O que está acontecendo com vocês dois? Alguém por acaso vem prender a gente?

Não responderam. Sustentando a menina no braço direito, a mãe o segurou com a outra mão, correndo em seguida até a porta do porão, onde se meteu escada abaixo arrastando o menino pelos degraus.

— Ai, mãe!

O pai veio logo atrás com o engradado, fechando atrás de si a porta, que era de metal e tinha uma tranca quádrupla por dentro. Lindsay soluçava.

— Calma, meu bem. Nós vamos sobreviver.

Martha esticou um colchonete no piso e se sentou nele, agarrada à filha. O menino não quis acompanhá-las.

— Vocês não vão explicar nada?

Nervosíssimo, George caminhava de um lado para o outro do pequeno cômodo, o celular em punho, o rosto iluminado pela tela brilhante.

— George, o que eles dizem? — perguntou Martha.

O marido estacou:

— A mesma coisa: “não é um exercício”.

— For God’s sake! — exclamou o garoto. — Do que vocês estão falando?!

O pai o fitou intensamente e pareceu meditar por alguns segundos. Por fim, tomou-o pelo braço e o levou até o lado oposto do porão. Então abaixou-se, encarando o filho:

— Bill, você já é praticamente um rapaz, vai completar doze anos no próximo mês. Eu preciso que você tenha coragem, porque vou te contar o que é, ok?

— Ok.

— Precisa agir como um homem. Entende?

O menino gostou de ser chamado de homem:

— Claro, papai — respondeu, o peito estufado.

George engoliu em seco:

— Veja a mensagem que o governo do Estado do Havaí nos enviou — e lhe indicou a tela do celular: “AMEAÇA DE MÍSSIL BALÍSTICO CHEGA AO HAVAÍ. PROCURE ABRIGO IMEDIATO. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO”.

— Não entendo, papai — tornou o menino, franzindo o cenho. — O que isso significa?

— Um ataque… — começou o pai, quase gritando, mas refreou-se. E então, olhando a esposa e a filha de esguelha, sussurrou: — Um ataque nuclear. A Coréia do Norte disparou mísseis contra nós.

O menino arregalou os grandes olhos azuis, fitou o pai, ensaiou uma expressão heróica de adulto e, de lábios trêmulos, perguntou:

— Não é… um trote? Pode ser uma pegadinha.

— Não, Bill. Os canais de TV e o rádio confirmaram a informação.

Essa notícia foi grave demais para aquele adulto recente — e o menino, pois, caiu em prantos.

— Não! Não! Não quero morrer! — finalmente gritou e, ato seguido, correu na direção do colchonete, atirando-se nos braços da mãe.

— Minhas crianças! Minhas crianças! — choramingava ela, afagando-os.

O pai sacudiu a cabeça, arrependido, e logo retomou sua peregrinação pelo porão, o celular em punho, o rosto pálido e iluminado como o de um vampiro à luz do luar. No WhatsApp, os parentes e amigos trocavam mensagens desesperadas, indagando uns aos outros se já estavam todos prontos para o impacto. Michael, pai de George, enviara uma mensagem amorosa, despendido-se do filho e afirmando que havia sido uma honra ter tido uma família tão liberal, tão progressista, tão inteligente, tão unida em prol dos mesmos ideais. Seu irmão, Michael Junior, ainda conseguia ter algum senso de humor em meio ao pânico geral: “Pelo menos não encontraremos mais republicanos lá no céu — se é que existe um céu”.

— Imbecil — murmurou George para si mesmo.

Enquanto continuava lendo essas mensagens, a esposa e os filhos pranteavam a morte iminente. Fitando-os com ternura, George pensou que havia chegado a hora das despedidas: aquele porão não fora construído para resistir a uma desgraça dessa escala. Quando, a passos lentos, começava a se dirigir até eles, veio o estrondo:

— PAM! PAM! PAM! PAM!

Martha e as crianças, em uníssono, gritaram histericamente. George quase descomeu o coração de tanto susto. Alguém batia na porta metálica do porão:

— George! Você tá aí? George!

Acreditando tratar-se de um parente ou de um amigo a buscar abrigo, George galgou rapidamente a escada de dois em dois degraus. E abriu a porta: era Tom, o jardineiro.

— Oi, George. O que você está fazendo trancado aí dentro? Quer que eu volte depois?

Estranhando toda aquela calma, perguntou de rebate:

— Tom, você não está sabendo de nada?! O que veio fazer aqui? E sua família?

O velho sorriu:

— Eu vim pegar o cortador de grama. Hoje é dia, né.

— Mas… e sua família?

— Estão bem, graças a Deus. Obrigado por perguntar. Quer que eu volte depois?

— Tom, a Coréia do Norte está nos atacando! Um míssil nuclear pode nos atingir a qualquer instante. Venha pra dentro! — e tentou puxar o velho pelo braço.

Tom se desvencilhou:

— Calma, George. Não vai acontecer nada. É uma bobagem.

— Mas o governo emitiu o alerta! Não é brincadeira!

— Ah, o governo… — suspirou o outro. — E você ainda acredita no governo? — e deu uma risadinha. — Vocês democratas são engraçados: se o Trump faz alguma coisa boa real, de verdade, vocês não acreditam. Se o governador democrata do Havaí diz que estamos sendo atacados pelo… como chama? King Kong-un?

— Kim Jong-un.

— Mesma coisa — e pigarreou. — Enfim, só porque o governo daqui é democrata vocês dão crédito pra ele. Uma bobagem.

George mal podia acreditar no estado de negação em que se encontrava mergulhado o velho jardineiro: estaria caduco?

— Tom, fique aqui com a gente. Ou então corra pra casa. Esqueça nosso jardim.

O velho voltou a rir:

— Sabe, George. Eu sou casado com uma nativa havaiana. Mas já fui casado antes, lá no Texas. Um dia, descobri que essa minha primeira mulher tinha um caso com um safado que morava a uma milha da minha casa. Peguei meu Colt 1911 e fui atrás do sujeito. Ele vivia nas aforas da cidade, já no meio do mato. Quando eu já estava dando a volta na casa, para surpreendê-lo pelos fundos, ouvi disparos de fuzil. Quase me atirei ao chão de tanto susto.

— Mas o que isso tem a… — começou George, aflito.

— Calma — atalhou-o o velho jardineiro, sorrindo. — Enfim… quando eu já ia me jogar ao chão, vi o sujeitinho treinando tiro ao alvo no meio da mata que tinha atrás da casa dele. O desgraçado tinha um fuzil AR-15! Sabe o que eu fiz?

— Hum.

— Meti o rabo entre as pernas, pedi o divórcio e me mudei para o Havaí: para não passar vergonha. E aí tive a sorte de conhecer a Mary.

— Pelo amor de Deus, Tom! O que você tá tentando me dizer, homem?

— Você viu o que os jornais disseram sobre o Trump no dia 3 de Janeiro? Disseram que, na noite anterior, ele havia respondido às ameaças do King Kong na internet.

— Kim Jong!

— Então! Foi o que eu disse! — e sorriu, concordante. — Enfim, ele respondeu às ameaças do coreano na internet, dizendo que o botão dele, Trump, o botão de disparar as bombas atômicas, é muito maior que o botão do ditadorzinho comunista. E que além disso é um botão que funciona! — e colocou a mão no ombro do interlocutor. — Olha, George, quando eu morava no Texas, eu era um cara bem doido: mas não era idiota! Esses tiranos podem não acreditar na existência das almas, mas acreditam na existência dos corpos e na perpetuação da sua própria dinastia, da sua descendência. Um ataque americano transformaria a Coréia do Norte num deserto. Ficaria pior que Cartago, faltando apenas que alguém lhe despejasse toneladas de sal. É óbvio que o King Kong sabe disso tão bem quanto eu.

Martha surgiu no topo da escada bufando, o pesado cortador de grama entre os braços:

— Pode ir cortar, Tom — disse, entregando-lhe a geringonça.

— Ah, obriga….

Mas, sem terminar de ouvi-lo, Martha apenas o empurrou para fora, fechando com estrondo a porta do porão:

— Você está maluco, George?! — rosnou ela, o dedo indicador em riste. — Quer passar os últimos minutos de nossas vidas conversando com um republicano que votou no Trump? É por culpa dessa gente que estamos sendo atacados.

A família, pois, permaneceu trancada no porão por mais meia hora, ao fim da qual o governo local se pronunciou confessando que havia ocorrido um erro da parte de um funcionário da Agência de Gestão de Emergência do Havaí: não havia nenhuma ameaça real. Quando voltaram à cozinha, viram pela janela que Tom ainda cortava tranquilamente a grama do jardim traseiro, enquanto, em meio ao rugido da máquina, cantarolava uma incompreensível canção country de amor e morte.

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Na Wikipédia: 2018 Hawaii false missile alert.

O cartunista João Spacca comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Já que o João Spacca deve estar ocupado, desenhando um de seus cartuns, e já que ele comentou meu livro comigo apenas mediante um longo email pessoal — com questões e com uma abordagem que, em sua totalidade, não dizem respeito ao público em geral (sem falar nos spoilers) — selecionei apenas uns trechinhos para postar aqui:

“Não pensei que fosse capaz de dizer isto ao fim da leitura, mas “A Sábia Ingenuidade do Dr. Pinto Grande” [Editora Record] é um livro extraordinário.”

[…]

“O conto do velho veterano de guerra nos conduz a um extremo dramático constrangedor e quase insuportável. Até onde vai aquilo? O sadismo do outro velho provocando, o dr. Pinto Grande com seu método blasé de dar corda, o velho… não queria abrir o livro, mas ei-lo, Josif, o sérvio.”

[…]

Reli o caso d’A Menina Branca, paródia de O Gato Preto, com o mesmo prazer – eu havia esquecido o […]. Muito bom, o mais brasileiro de todos (por que escrevi isto?).

[…]

“O último é uma excelente aula sobre os bitcoins. […] Interessantíssimo o personagem, muito engenhoso o desfecho. A lógica do bitcoin, sua especificidade, relativa ao lugar único que ocupa no grande quebra-cabeça virtual, e a negação do papel do Estado em controlá-la – apoiada na pergunta “para que uma moeda precisa de um Estado? – parece irrefutável. Anotei em certo momento que os bitcoins pareciam as mônadas de Leibnitz, pensando que iria surpreender você com a metáfora, mas logo adiante o dr. Pinto Grande foi muito mais longe. Pinto Grande é foda.”

[…]

“No meio desse último conto é que a arquitetura do livro se cristalizou na minha cabeça, e então que a constatação de que estava lendo um livro extraordinário se fez presente com grande naturalidade. Então lembrei dos demais contos.”

[…]

“Dr. João Pinto Grande é um escada, aquele ator não muito expressivo que serve de apoio para outros, personalidades mais fortes ou engraçadas, fazerem o seu show (pronto, acabo de escrever didaticamente para o “grande público”). ”

[…]

“O professor Olavo sempre diz que criou o COF para formar pessoas com quem pudesse conversar. Talvez você escreva com uma finalidade semelhante. Nos seus contos vivem pessoas que, no meio de circunstâncias insólitas ou banais, são capazes de interpretar a experiência presente evocando grandes quadros conceituais que alargam o horizonte e apaziguam nossas angústias. Sem essa capacidade, nosso cotidiano se enche de preocupações de saúde, compras e receitas veganas – já que política em casa virou tabu. Termino o livro lamentando a falta de oportunidade desse tipo de conversações no dia-a-dia, com uma espécie de saudade desses encontros insólitos, como se uma fome diferente tivesse sido despertada para um alimento desconhecido e raro.
Adorei ter lido, Yuri […]”

Daniel Gil comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Resenha de Daniel Gil, poeta, ensaísta e secretário executivo da UFRJ, publicada pela Revista Amálgama:

A CONSCIÊNCIA DE YURI

É desconcertante solicitar ao funcionário da livraria um exemplar de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande (Editora Record). A experiência faceciosa já se inicia desde então, quando o próprio leitor se vê de repente partícipe do humor de Yuri Vieira.

O escritor — que também é cineasta premiado — apresenta nesse volume de contos uma expressiva evolução desde a sua estreia com A Tragicomédia Acadêmica: Contos Imediatos do Terceiro Grau. Suas sentenças concertam mais concisão e sonoridade; o arcabouço complexo de recursos literários, que desde sempre engendrou suas narrativas, agora alcança homogeneidade; seu humor e suas intenções, quando não propositalmente explícitos, submergem de maneira acabada e segura nas entrelinhas.

Conquanto seja uma coleção de contos — e eles subsistam independentemente —, perpassa, em quase todos, o personagem de nome risível que lhe oferece unidade e título: o advogado João Pinto Grande. Sua presença contínua, porém, nem sempre faz dele um protagonista nas urdiduras. O advogado é em certa medida um herói discreto e bonachão, caso venhamos a utilizar o conceito de herói no sentido romântico: aquele que demonstra como um homem poderia ser; no caso específico, um homem que não separa a sua inteligência de um rigoroso idealismo moral. A unidade entre as diferentes estórias, logo, dá-se também pelo coincidente recorte no tempo — condição importantíssima, devido à atualidade das questões e dos elementos envolvidos (do feminismo aos bitcoins).

Uma característica especialmente distintiva de A sábia ingenuidade…, para além do humor cômico, é a presença de personagens que carregam opiniões robustas a respeito de polêmicas nada aconselháveis, o que exige, ao mesmo tempo, uma demonstração de domínio técnico-literário na composição — bem sucedido, é preciso dizer — e um profundo interesse intelectual pelos problemas contemporâneos, incluindo a variedade de posicionamentos. A respeito das supostas opiniões do próprio Yuri, poderíamos assinalar a fala do Dr. Pinto Grande no conto “O pedinte do metrô”, ao divagar sobre Deus: “Por que um artista ou escritor pode se colocar dentro de sua obra, representando-se mediante um personagem-avatar, e Deus não o poderia?”. Algo semelhante já havia sido observado pelo personagem Paulo César, no conto “A teologia da maconha”.

No entanto, Yuri Vieira abala de maneira intermitente as impressões mais cômodas do leitor. No conto “Amarás ao teu vizinho”, por exemplo, o advogado de nome jocoso pensa consigo mesmo, ao se lembrar de uma conversa sobre Herman Hesse: “Ora, escritores de ficção são artistas, não necessariamente bons intelectuais, filósofos ou guias espirituais”. Ainda sobre essa consciente confusão de perspectivas, concebida com zelo em todo o livro, é necessário notar que o próprio contista é personagem no conto de abertura — por consequência, o único deles a ser narrado em primeira pessoa. Os pontos de vista, a despeito, são expostos ali de modo a largar o leitor no campo das incertezas, tanto mais quando de súbito rebentam elementos fantásticos em cena — mecanismo já consolidado no estilo de Yuri.

A palavra consciência pode ser talvez a que melhor se associe à feitura de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, uma vez que seja preciso uma percepção muito clara das próprias faculdades para realizar com arte esse trabalho. Sobretudo no risco, todo gesto mais ingênuo seria fatalmente salientado. Yuri Vieira parece então herdar instrumentos importantes de uma tradição de comicidade da literatura brasileira, seja na descrição de detalhes falsamente dispensáveis — que o aproxima de Nelson Rodrigues —, seja no confronto heteróclito e burlesco de figuras morais — ao estilo machadiano. Quando emprega novidade nesses pertences, ganha lugar entre os mais talentosos (e engraçados) prosadores da atualidade.

Luis Vilar comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Resenha de Luis Vilar, editor-geral do Grupo CadaMinuto:

DR. JOÃO PINTO GRANDE TEM ALGO A LHE DIZER…

O novo livro de Yuri Vieira é um primor. Com bom humor e coragem para adentrar em temas espinhosos, ainda que estes para muitos pareçam teoria da conspiração, Vieira traz uma coletânea de contos em A Sábia Ingenuidade de Dr. João Pinto Grand (Editora Record) que nos faz rir ao mesmo tempo em que tememos pelo futuro secularista onde vamos sendo jogados. Tudo isso em nome de um “mundo melhor” com tantos “progressismos”…

O conto de abertura, em que somos apresentados ao personagem Nathan, fala da face do mal e do quanto ele nos encanta com um inferno cheio de boas intenções. Bem como o quanto os engenheiros sociais se aproveitam de sentimentos ingênuos despertados por vocábulos soltos como “liberdade”, “opressão”, “justiça” etc.

É que estes podem ser subvertidos em determinados contextos, como já explicava George Orwell ao falar da “novilíngua”. Embasbacado, o outro personagem do diálogo — que leva o nome de Yuri — vai assistindo pasmo à explanação de idéias lógicas, mas inacreditáveis, diante da forma como aprendemos a absorver o secularismo e suas “conquistas”. Será que neste conto não estaria o alterego do autor ao ser despertado para o que antes não via?

As referências da obra também são riquíssimas, passando pela cultura pop e até citando livros como Submissão, de Michel Houellebecq, que fala de uma França já islamizada.

Vieira também trata — com humor — da instrumentalização das minorias, que era algo que já aparecia em sua primeira obra de contos publicada pela Vide Editorial: A Tragicomédia Acadêmica.

Neste segundo livro, assim como no primeiro, não há ponto sem nó. Tudo é devidamente encaixado para mexer com as sensações do leitor, como o susto cômico ao se deparar com Lúcifer tão cara-a-cara num diálogo festivo.

Por sinal, muitos dos diálogos construídos por Yuri Vieira lembram do processo da maiêutica socrática, só que ao invés da busca da verdade, temos a exposição da revelação maquiavélica das “engenharias sociais”, o que não deixa de ser uma VERDADE.

Os contos do autor me lembraram a máxima de Nietzsche de que a arte passa a existir para que a verdade tão nua e crua não nos destrua ou desespere.

Fico a imaginar o esforço do autor para dar humor a assuntos tão sérios e espinhosos de nosso tempo, como o conflito entre o cristianismo e o islamismo, analisando de maneira direta a essência de cada uma dessas crenças. Ele pontua as diferenças de uma forma que vivo tentando fazer, mas jamais consegui. E acreditem: isso é posto em dois parágrafos, salvo engano. Parágrafos cirúrgicos e irrefutáveis.

Por traz de cada conto há História, Geografia, Filosofia e Teologia. Há pontos que podem — posteriormente — ser esmiuçados pelo leitor em outras obras técnicas. Sem querer ou querendo (não sei a intenção do autor), o Dr. João Pinto Grande (com perdão do trocadilho) acaba sendo uma ferramenta de introdução (risos).

Se, no ano passado, Vieira foi o responsável pelo melhor livro de contos que li em 2016, agora em 2017, afirmo sem medo de errar: ele repete a dose. Como é bom dizer isso de brasileiros. Nos deixa a sensação de que a nossa alta cultura vai sendo recuperada por aí. Mais que isto: prova que alta cultura nada tem a ver com esnobismo, intelectualismos ou formas pedantes.

É tudo tão simples quanto entender a forma direta com a qual escreve Ortega y Gasset, por exemplo. Não há firulas no Logos.

Yuri Vieira nos traz uma literatura que não tem aquela face “engajada”, cheia de pretensões e interesses inconfessáveis. Ele simplesmente nos diz que a grama é verde, atendendo à profecia de Chesterton. Mas não deixa de ser profundo. Um conselho: ao terminar cada conto, busque refletir um pouco sobre as idéias principais contidas ali. Pesquise sobre os temas ali abordados e veja o quanto do humor de Vieira é revelador. Você sairá mais rico dessa obra.

Os meus dois contos preferidos do livro foram “O machista feminista” e “A teologia da maconha”. Como li a obra durante a madrugada dessa terça-feira, dia 31 de Outubro, em pleno Dia das Bruxas, ainda aprendi outra coisa com Yuri Vieira: a ter que gargalhar em silêncio para não acordar a minha esposa que dormia tranquilamente ao meu lado. Ao mesmo tempo que ria, também me desesperava um pouco com o oceano de loucuras por onde minha cama navegava.

Dilma e a Pastoral Americana

Durante os debates do Encontro de Escritores organizado pelo Olavo de Carvalho nos EUA, mencionei o romance Pastoral Americana, escrito por Philip Roth. Falávamos, se não me falha a memória, sobre como certos acontecimentos na vida social, política e cultural estão prefigurados na literatura. E então comentei sobre como, a meu ver, teria sido a vida de Dilma Rousseff caso ela tivesse nascido nos EUA: basta acompanhar a vida da personagem Merry no referido romance. Para quem estiver sem tempo — a tradução brasileira tem 478 páginas — sugiro o filme Pastoral Americana, de 2016, disponível na Netflix, cuja trama é bastante fiel à do livro. (Claro, o cinema, contrastado à literatura, dificilmente atinge a mesma profundidade de expressão, mas, para quem quiser ter um lampejo sobre o que eu quis dizer, já é um bom começo.)

O romance, obviamente, não retrata apenas um modelo americano da nossa ex-presidente: mostra principalmente a transformação “antes da Federal / depois da Federal”, por assim dizer, de boa parte dos jovens do Ocidente e seu corolário, isto é, a situação na qual terminam seus pais, uma situação muito mais grave do que um mero “choro de chuveiro”.

No Brasil as pessoas babam na gravata há tanto tempo que Merry chegou a ser eleita… presidentA.

Stárietz Zossima: o mundo superior

Muitas coisas deste mundo nos são dissimuladas, mas em compensação Deus nos concedeu a misteriosa sensação do laço vivo que nos une ao outro mundo, o mundo celeste, superior; e, aliás, as próprias raízes dos nossos pensamentos e dos nossos sentimentos não estão em nós, porém em outra parte. E é por isso que os filósofos dizem que não se pode conhecer na terra a essência das coisas. Deus tomou sementes que pertenciam a outros mundos, semeou-as nesta terra e cultivou o seu jardim. O que podia germinar cresceu, mas tudo que se podia desenvolver não viveu senão graças ao sentimento do seu contato com outros mundos misteriosos; se esse sentimento enfraquece ou desaparece da tua alma, tudo o que floriu dentro de ti morrerá.

Stárietz Zossima em Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski.

Eugene O’Neil: o papel do escritor

Cumpre ao dramaturgo, hoje em dia, cavar até às raízes do mal moderno tal como o sente – a morte do antigo Deus e o fracasso da ciência e do materialismo em apresentar um outro Deus que satisfaça ao primitivo instinto religioso sobrevivente, a fim de que nele o homem encontre um sentido para a vida, com o qual se conforte dos temores da morte. Qualquer pessoa que atualmente tente realizar uma grande obra, parece-me, deve ter este magno assunto por detrás de todos os pequenos assuntos de suas peças e novelas, ou estará simplesmente arranhando a superfície das coisas, não pertencendo senão à categoria dum proporcionador de divertimentos de salão.

Eugene O’Neil em carta dirigida a um amigo.

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