Categoria: Literatura Page 5 of 37
Assim que o garçom se retirou, fitou o amigo nos olhos e lhe disse à queima roupa: — Conheci uma garota incrível! Tô apaixonado.
— Sério? Eu a conheço?
— Não, não. Não costuma freqüentar os mesmos lugares que a gente.
— E onde você a conheceu? Pelo Tinder?
— Quase. Foi pelo Happn.
— Nunca ouvi falar.
— É um aplicativo parecido. Mas não tem tantas barangas nele.
Os dois riram.
— E ela? — tornou o amigo. — Também gostou de você?
— Cara… A gente saiu, rolou o maior clima, ficamos…
— Porra, será que agora sai casório? A gente tá ficando velho, Marcelo. Eu pelo menos acabei de noivar. Você precisa ver como é bom ter alguém ao nosso lado.
O outro fez uma careta: — Calma, né. A gente acabou de se conhecer. Não quero assustar a figura. Ela só tem vinte e um anos.
— E daí? Minha mãe se casou com vinte e dois.
— Outra época, uê. Antigamente nego se casava porque, do contrário, só comeria putas. Se o Vinícius de Moraes fosse jovem hoje, não teria se casado tantas vezes.
— Sei. Antigamente na época dos nossos avós, você quer dizer. Nos anos setenta e oitenta já era quase como hoje. E, se o Vinícius estivesse na ativa hoje, seria como a gente: teria um monte de ex-namoradas e nenhuma estrutura, nenhum filho, necas de pitibiriba. Ele pelo menos, por se casar, se reproduzia. Mas é também por causa desse bando de pós-Vinícius que andam por aí que os islâmicos estão dominando tudo, multiplicando-se feito coelhos.
— Caraca! Suas conversas sempre terminam nos islâmicos! Quando a gente se conheceu, terminavam em Deus. Será que a gente pode voltar ao assunto?
— Ok, ok. Foi mal — e depois de tomar um gole da cerveja: — Então me fala da garota.
— Bom — e os olhos de Marcelo brilharam. — Ela é linda, inteligente, divertida, carinhosa, tem uma voz hipnotizante… e é gostosa, claro.
— Claro — e Tiago devolveu o sorriso.
— Só tem um problema…
— Ai ai… — fez o amigo, suspirando. — Lá vem: não me diga que se meteu de novo com outra garota de programa? Pelo amor de Deus, véio, você tem de parar com isso! Esse papo de salvar putas não dá certo não.
— Mas eu já convenci duas a largarem essa onda errada.
— Eu sei. Mas elas se casaram com você? Não, porque você foi apenas o… digamos assim, o terapeuta! Elas não iam querer ficar com um cara que conhecia o passado delas e que as atormentou tanto por conta disso. Ainda não entendeu? Vai repetir a dose?
— Mas eu não disse que essa figura de agora é garota de programa, cacete! E vê se fala baixo!
Tiago arqueou as sobrancelhas, curioso: — Ah, não? Qual é o problema então?
— Véio… — e fez um muxoxo. — Ela é uma esquerdista roxa! Adora a Dilma até hoje e acha que estão fazendo uma injustiça com o Lula…
O amigo abriu os abraços, rindo: — Uê! Mas você disse que ela era inteligente!
— Não começa, Tiago. Você sabe que não é uma questão de inteligência. É uma questão de valores! Ela submete a inteligência dela a valores equivocados, só isso.
— Ou seja, ela é burra.
— Puta merda! Por acaso o Graciliano Ramos era burro? O Jorge Amado era burro? O José Saramago era? Claro que não! Eles tinham era um problema de cognição, uma dificuldade de avaliar os fatos e reconhecer os verdadeiros valores, cada qual à sua escala, uns mais, outros menos. Isso nada tem a ver com inteligência. E a Andréia é super inteligente, tem um ótimo senso de humor… Ela logo logo vai entender que…
Tiago, sacudindo a cabeça, interrompeu-o: — Que bosta, véio! Você tá fodido.
— Ué, por quê?
— Agora tô achando que seria melhor mesmo você se apaixonar por uma puta de esquina.
— Ai, meu saco. Que papo é esse, Tiago? Deixe de ser radical!
— Não estou sendo radical: estou sendo é realista.
— Como assim?
— Marcelo, você não percebe que vai acontecer tudo de novo?
— Tudo o quê?
— Essa sua mania de salvar as garotas do mau caminho, velho! Vai ser como aconteceu com as duas garotas de programa: você vai torrar o saco da figura, vai falar um monte de coisas com as quais ela não concorda, vai desafiá-la, vai lhe provocar muitas dores de consciência, enfim, vai apenas deixá-la ferida e puta da vida. É como se você pegasse um pedaço de terra improdutiva, arrancasse suas ervas daninhas e suas pragas, a arasse, lhe revolvesse o solo e… seu talento principal… lhe jogasse as sementes. Só que você a machucará tanto nesse processo que ela não vai mais querer saber de você. O arado machuca, cara! Por orgulho, mesmo que mais tarde ela comece a mudar de valores, ela não aceitará permanecer com o sujeito que a fez cair das nuvens. Já disse, é como preparar a terra para o plantio: você poderá semeá-la, mas quem irá colher os frutos do seu labor não será você, mas, sim, um outro reaça dotado de uma colheitadeira. Você só tem as ferramentas de aragem e de semeadura. Se soubesse colher alguma coisa, não estaria nesse perene estado de busca. Eu pelo menos estou noivo da garota que namoro há três anos. Já você, fica pulando de galho em galho, preparando-os para outros passarinhos. Estou errado?
Marcelo ficou em silêncio, pensativo. Não queria dar o braço a torcer, mas tampouco sentiu que havia inverdades naquela observação. Voltou a bebericar da cerveja, o olhar distante.
— Bom, parece que você me entendeu, né — tornou Tiago, depois de um minuto. — Tome cuidado, hem.
— Cara… quer saber? Eu vou é arriscar!
— Porra, bicho! Não vacila!
— Bom, eu tenho um ótimo argumento. Quer ver?
— Ver? Eu quero é ouvir. Qual é o argumento?
Marcelo tomou o celular sobre a mesa, destravou-o e entrou na galeria de imagens. Por fim, estendeu o braço ao amigo: — Dá uma olhada na figura! Já pegou alguma garota assim na sua vida?
Tiago, de olhos esbugalhados, ia admirando as imagens que Marcelo lhe exibia: — Nã… não… — gaguejou.
Andréia era deslumbrante. Parecia uma super-modelo: esguia mas dotada das necessárias e imprescindíveis curvas, seio farto, a clavícula conspícua, os braços delgados e frágeis, a cabeça altiva, os cabelos longos, lisos e brilhantes, os olhos grandes de boneca, lábios deliciosos… e se vestia como uma princesa, extremamente feminina.
— Cara, você tem certeza que ela é petista? — indagou Tiago, muito impressionado.
— Ela tem uma foto abraçada com o Lula e outra com o José Dirceu no Facebook dela.
— Puts!… Queria ver isso. Qual o nome dela?
Marcelo lhe deu o nome completo.
— Vou pesquisar depois — tornou Tiago.
O outro sorriu, vitorioso: — Não disse que meu argumento era lacrador? Vai me dizer que não tenho razão em arriscar?
— Rapaz, eu acho que você deve ir com tudo! Faça a maior limpeza na cabeça dela! Eu sempre recomendo, antes de sugerir autores conservadores, que um esquerdista deve primeiro ler Krishnamurti, porque esse doido indiano é um ácido corrosivo que não deixa ilusão sobre ilusão na cabeça do sujeito. Depois literatura da boa: Dostoiévski, Wassermann, Bernanos, Chesterton… Só então você deve fazê-la ler o Olavo de Carvalho, o Mário Ferreira, o Scruton, o Voegelin… enfim, os de alto calibre filosófico. E aí… — e Tiago sorriu, maquiavélico.
— E aí o quê?
— Aí, daqui uns seis meses, depois que vocês terminarem, vou ficar espiando o Facebook dela. Vai levar um ou dois anos, imagino, para ela começar a frutificar e a postar umas coisas reaças. A essa altura, eu já terei rompido meu noivado e já terei comprado uma colheitadeira!
Marcelo deu um tapão na mesa: — Ah, véio, vá se foder!
Tiago deu uma gargalhada: — Vamo beber! Vamo beber!
Conforme escrevi n’O Garganta de Fogo em 2003, devido às “fofocas literárias” que eu andava postando, um amigo falecido em 2009, o escritor José Luis Mora Fuentes, me disse ao telefone que eu estava parecendo “a Hebe Camargo da literatura”. Bem, um dos temas de conversação mais apreciados pela Hilda Hilst — mediante a qual conheci Mora Fuentes — era justamente os detalhes bizarros e picantes da vida de autores consagrados já falecidos. Sim, é óbvio que essas informações não levam a nada, são futilidades e de nada ajudam na compreensão das respectivas obras, que muitas vezes permanecem além da compreensão do próprio autor. Contudo, se essas conversas não elevavam nossas almas, ao menos nos faziam dar muitas risadas. E todo esse preâmbulo é apenas para explicar por que, a certa altura da estada de Bruno Tolentino na Casa do Sol — residência de Hilda —, ela começou a se chatear com a presença dele.
Os amigos esquerdistas dela podem jurar de pés juntos que foi por causa da ligação dele com Olavo de Carvalho, ou porque ele, sozinho, já era muito reaça, ou então porque Bruno gostava de discorrer interminavelmente sobre o cânone literário e sobre o verdadeiro significado de cada escritor na história da literatura, coisa que, em seus últimos anos, aborrecia Hilda grandemente. Enfim, eu estava lá e não foi nada disso. O fato é que toda noite Hilda se punha diante da TV para assistir às suas novelas e, ainda de ir dormir, a um filme qualquer. Antes da chegada de Bruno, de modo geral, apenas eu e Hilda participávamos dessas sessões cinéfilas, recorrendo a um velho aparelho VHS. Noutras ocasiões, estavam também presentes o próprio Mora Fuentes, Edson Costa Duarte (amigo dela, mais conhecido pelo apelido de “Vivo”) e Chico, o caseiro. Hilda tinha grande intimidade conosco e se comportava como bem queria, sentada na sua poltrona, bebericando o seu uísque ou o seu vinho, entre os dedos o cigarro Chanceller (“o fino que satisfaz”) e assim por diante. E é nesse “assim por diante” que estava o busílis…
Uma noite, durante um dos muitos filmes a que assistíamos juntos, já acompanhados por Bruno Tolentino e por Antônio Ramos, seu secretário ex-morador de rua, Hilda permaneceu num silêncio constrangedor, evitando responder às perguntas e aos comentários feitos por Bruno ou por qualquer um de nós, tanto ao longo quanto ao final do filme.
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ATENÇÃO: Devido a contrato assinado com a Editora José Olympio (Grupo Editorial Record), este relato não está mais disponível online. Você poderá lê-lo no livro O Exorcista na Casa do Sol, a ser lançado em Julho de 2018.
Dez anos atrás, voltando de um evento qualquer, peguei uma carona com uma amiga advogada. Uma garota muito bonita a acompanhava — pensei que fosse modelo, mas descobri que se tratava de uma delegada. Conversa vai, conversa vem, eu quis saber como era a experiência de, em sendo uma mulher, lidar com uma cadeia cheia de delinqüentes embebidos em testosterona. Ela me disse que só houve dificuldades nos dois ou três primeiros meses. Depois tornou-se uma atividade razoavelmente tranqüila. Eu quis saber o que mudou.
— Quer mesmo saber?
— Claro.
— Cá entre nós?
— Sim. Boca de siri.
Ela suspirou, hesitou por alguns segundos e então abriu o jogo: — É que, depois de muita pressão, finalmente dei permissão aos carcereiros para darem umas porradas num ou noutro preso pelo menos uma vez ao dia. Aí os bandidos começaram a me respeitar.
Arregalei os olhos: — Sério? Você manda os caras baterem neles?
— Não! — indignou-se. — Não é desse jeito. Eu não mando nada. Apenas permiti que os carcereiros, caso se defrontem com uma situação difícil, façam o que achar conveniente. Eles já agiam assim antes de eu assumir a delegacia. Quando cheguei e proibi que fossem violentos, começaram as pequenas rebeliões. De três em três dias rolava alguma treta: colchões queimados, estupros, brigas terríveis, e coisas do tipo. Falavam o tempo inteiro em fugir, que minha delegacia era melzinho na chupeta, que por eu ser mulher podiam deitar e rolar. Eu ia lá atrás e os presos ficavam mexendo comigo, gritando palavrões, insultos, me ameaçando, me jogando comida, enfim, um desrespeito só.
— E você acha que não há outro jeito?
— Que jeito? O cárcere é provisório. É uma delegacia, não é uma prisão. Não dá para implantar um esquema que funcione a longo prazo. Você acha que aceitei isso de bom grado? Claro que não! Tive de conversar com vários delegados antes, tive de entender que o sistema é assim, que não há outro jeito.
— Toda delegacia é assim?
— Toda delegacia.
De vez em quando me lembro dessa conversa. Nesses momentos, vem a lembrança conjunta do conto “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, cujo livro homônimo fora proibido em 1974. Ora, para os censores da época, tal narrativa não era uma previsão, mas, sim, o resultado de uma imaginação degenerada, que poderia influenciar os leitores de modo negativo. Do que se trata? Fonseca descreve um assalto a uma mansão durante uma festa de réveillon grã-fina. Os bandidos agem com uma barbárie inaudita. Chegam a matar dois homens — um diante de uma parede, outro diante de uma porta de madeira — apenas para provar, numa mórbida aposta, que, com um tiro de 12, a vítima pode grudar em uma daquelas superfícies graças aos inúmeros projéteis de chumbo. Fonseca, que havia trabalhado por um par de anos como comissário de polícia, já havia pressentido aonde chegaria o grau de violência e de selvageria dos criminosos. E, hoje, nós sabemos que sua previsão estava correta. A sociedade parece não compreender que esse estado de coisas não é fruto senão da progressiva e generalizada decadência moral. Durante séculos, o povo teve sua orientação ética derivada de suas crenças religiosas. Com a mídia, os artistas, os intelectuais, as universidades e os políticos a pregar insistentemente um humanismo ateu — algo demasiado abstrato para mentalidades simplórias ou meramente ancoradas nas necessidades materiais — isso quando esses guias iluminados não se limitam à pregação ou do hedonismo mais descarado ou de ideologias alienantes, nada sobra para refrear, nessas mentalidades, os impulsos mais abjetos. Quando a força não é balizada por nenhum espírito, apenas outra força pode com ela.
Mal entrou no X Club, badalada casa noturna da Eleventh Street, em Miami, André Jorge, o mais novo galã das novelas globais, dirigiu-se ao balcão e pediu um uísque com energético. Feliz com sua nova aquisição, só pensava em comemorar. Chegara naquela tarde de Orlando, onde assinara o contrato de sua nova propriedade: uma mansão de quatro suítes e três pisos no condomínio Magic Village Resort. Após quase quatro horas de viagem num carro alugado, ali estava ele, cartão magnético do hotel no bolso, pronto para a caça. Cansado do assédio constante que sofria no Brasil — em geral, um assédio promovido por quem não lhe interessava —, na Flórida poderia se desvencilhar facilmente das raras brasileiras que por ventura lhe cruzassem o caminho, o que, para um pretenso alívio da sua vaidade, o faria sentir-se novamente uma pessoa normal. Sim, ele também sentia muita falta da difícil arte da sedução, aquela arte à qual, ‘confidenciava’ nas entrevistas, tanto se dedicara antes do estrelato. Mulher fácil, repetia aos colegas do Projac, não era com ele.
— It’s today! — gritou ele, copo na mão, traduzindo ao inglês uma expressão idiomática brasileira que não fez o menor sentido para quem estava à sua volta.
André Jorge era um homem bonito, másculo, simpático e seu olhar sedutor, do alto de seus trinta e dois anos, fazia as fãs brasileiras se atirarem aos seus pés. Tendo tantas vantagens naturais, colocou seus atributos masculinos em ação. Infelizmente, após meia-dúzia de tentativas frustradas, percebeu que, nos Estados Unidos, seu parco domínio do inglês tornara-se um súbito entrave aos seus planos. Ora, flertar em inglês não era tão fácil quanto pedir um prato num restaurante ou um quarto num hotel! Por mais que preferisse trabalhar arduamente para levar uma mulher para a cama, nada conseguiria se continuasse tartamudeando feito um inseguro nerd. Sem dizer que aquelas mulheres do club, pelo jeito, não eram dotadas de nenhum espírito de baile funk, no qual uma mera encoxada já fazia as vezes de uma conversa envolvente. Decidiu, pois, que teria mais sucesso abordando mulheres latinas com seu portunhol recentemente desenvolvido em Madrid. Sim, desenvolvido tal como apregoou, embora o famoso ator o tenha negado, o site O Fuxico: mediante a assistência de prostitutas hispano-americanas residentes na Espanha… Durante as gravações naquela capital dos capítulos iniciais de sua última novela, adotou, sem o saber, a técnica de aprendizado de idiomas do explorador inglês Sir Richard Francis Burton: um mês utilizando a língua num bordel.
— Hola! — disse ele para uma linda morena, metida num vestido colante revelador, que acabara de pedir um Apple martini. — Hablas español?
Ela o olhou de cima a baixo, e então sorriu: — Sí, claro.
— Puedes decirme cuales son los mejores drinks acá?
— Pero si ya estás bebiendo! — contestou a gata de olhos grandes e lábios fartos.
De fato, ele já estava bebendo. Mas dissera a primeira coisa que lhe viera à mente. Riu meio sem jeito e foi direto ao ponto: — Queres bailar conmigo un rato?
— Qué pasa, cariño? Ese huevón te está molestando? — disse um sujeito enorme, surgido repentinamente do meio da multidão, que se achegou à linda garota e a abraçou pela cintura.
Ela riu: — No. Solo me preguntaba sobre los drinks.
O homem se inclinou na direção do ator global e rosnou: — Oiga! No moleste mi novia solo porque ella es famosa! Queremos privacidad!
André Jorge já ia dizendo que também era uma celebridade, ao menos no Brasil, mas o casal, de mãos dadas, desapareceu em meio à efervescência da pista de dança. Aquilo o irritou profundamente… Virou pois o copo, tragando a bebida num único gole, e decidiu que o melhor a fazer era mesmo dançar. Dirigiu-se, pois, à pista de dança e tentou, em meio à espremeção geral, dar vazão à sua dança do acasalamento versão “música eletrônica”. Claro, sendo apenas “mais um entre muitos”, permaneceu no seu papel de incógnito solitário a atrair, no máximo, sorrisos de desdém ou até mesmo de escárnio, afinal, danças ridículas só fazem sucesso entre amigos e fãs. Mas ele, álcool na cachola, persistiu e, a certa altura, avistou outra bela morena, olhos amendoados, seios enormes, longas pernas, a qual, com um olhar estranhamente acanhado, vinha abrindo passo em meio à algazarra. Ele se deixou enfeitiçar por aquela beldade e, sem se dar conta, estacou enquanto ela cruzava sua frente. Então, de repente, alguém se chocou contra suas costas e o empurrou na direção da moça, que, de olhos arregalados, tentou recuar: tarde demais. O encontrão foi tão violento que ele quase a derrubou! Segurando-a pelos braços, pediu desculpas em espanhol, mas ela retrucou, enfastiada: “I’m don’t speak spanish, asshole! I speak only a little english”. E, aparentemente ofendida por ser confundida com uma latina, se desvencilhou dele, tencionando seguir seu caminho. Nesse momento, ele não pôde evitar uma espiada naqueles incríveis seios, mas o que viu o assustou: havia agora uma pequena mancha de sangue na parte inferior do seio direito. O vestido branco, extremamente colado, não deixava dúvidas: ele a havia ferido. Quis avisá-la, mas ela não lhe fez caso e prosseguiu seu caminho até o outro lado da pista. Talvez fosse brasileira, já que não falava espanhol, senão apenas “um pouco de inglês”. Brasileiras… Que se dane, pensou. André Jorge logo decidiu que era hora de voltar ao hotel. Estava cansado daquilo, não era um lobo solitário e já começava a sentir saudade de algo indefinível. Sorridente, fez então um selfie — precisava informar a seus seguidores do Instagram que sua vida era uma maravilha — e se dirigiu à saída. Antes de lá chegar, porém, ao passar novamente pelo balcão do bar, deparou-se com a loira mais deslumbrante que jamais vira na vida: e ela lhe sorriu! Num impulso, o ator soltou um tímido “hi”.
— Hola! — disse ela, o sorriso mais belo do mundo. — Eres brasileño, no es cierto?
— Sí — respondeu ele, surpreso.
— Creo que te he visto en una novela cuando estuve en Rio.
Salvo pela fama, cheio de alívio, entabulou uma agradável conversa na qual descobriu que aquela linda mulher era a mais famosa apresentadora de TV da Colômbia. Ela inclusive já havia entrevistado, em seu talk show, a atriz global que interpretara, na novela de estréia de André Jorge, o seu par romântico. E a colombiana começou a lhe apontar diversas outras celebridades latinas ali presentes: uma atriz mexicana, um âncora de telejornal argentino, uma cantora equatoriana, uma socialite chilena, dois atores venezuelanos e assim por diante. A linda garota, a quem havia abordado minutos antes, aquela do namorado brutamontes, não era senão a mais nova cantora celebridade do México, a qual, agora, iniciava uma promissora carreira de atriz nos Estados Unidos.
— Increíble — repetia ele.
E a apresentadora colombiana o convenceu a acompanhá-la até sua mesa, onde André Jorge conheceu mais meia-dúzia de famosos hispano-americanos. A conversa teve como mote, de início, esse irônico fato de haver tantas celebridades presentes que mal conheciam umas às outras. “E que os americanos não fazem a menor idéia de que sejam famosos em seus países”, acrescentou alguém. Depois falaram de suas casas na Flórida, de como era mil vezes melhor morar num país onde havia liberdade de ir e vir sem serem atormentados constantemente pelos fãs, e assim por diante. Uma atriz equatoriana, ademais, era vizinha do Sílvio Santos em Orlando e, apesar de saber que se tratava de um brasileiro rico e famoso, não tinha a menor idéia de quem ele era ou o que fazia.
— Que verga! — exclamou ela. — Una celebridad desde los años 1960!
Em seguida, falaram de como era muito mais seguro viver nos Estados Unidos, longe dos crimes horríveis e da eterna corrupção que assolam a América Latina. Dois dos presentes logo narraram os episódios em que, cada qual em seu país, haviam sido sequestrados, permanecendo em cativeiro vários dias, até que, num caso, o resgate foi pago e, no outro, os bandidos foram mortos pela polícia. O próprio André Jorge já havia sido vítima de um sequestro relâmpago no Rio de Janeiro, mas nada comentou a respeito porque, não apenas sua aventura havia sido inferior àquelas duas narradas, mas também nem sequer era famoso na época do ocorrido. A conclusão daquele assunto, enfim, era a verdade pungente de que a América Latina continuava desgovernada e cruel, e de que não havia melhor saída do que a clássica saída do aeroporto.
— Me voy una vez cada semana para mi país y despues vuelvo corriendo! — finalizou um ator colombiano, ao que lhe replicou um venezuelano que, no seu caso, nem sequer voltava mais para a Venezuela, afinal, seu país era agora um país socialista mergulhado no caos e todos os cidadãos que tinham condições e meios já se haviam exilado.
— Que buena nota es Estados Unidos, no? Todavía somos libres acá — comentou a equatoriana, toda sorridente.
Depois de algumas enfáticas concordâncias, a bela apresentadora colombiana, com ar sombrio, disse: — Sí, pero los americanos son estúpidos! Eligieron Trump!
E então iniciou-se uma série de longas asserções onde cada qual, inclusive o ator brasileiro, expressou seu espanto diante do resultado das eleições americanas e sua incapacidade de compreender como um povo tão próspero era capaz de eleger um louco como Donald Trump.
— Luego ya no podremos vivir acá! Trump odia a los inmigrantes.
E esse tema se prolongou tanto — recheado de tantas previsões de catástrofes que o novo presidente americano certamente causaria — que André Jorge, que falava apenas portunhol, começou a perder o fio da meada, já que todos, eufóricos de tanta indignação, passaram a falar o espanhol demasiado rápido para seus ouvidos brasileiros. E ele se distraiu. E, distraído, deixou o olhar vagar pelo club. Observou as pessoas na pista, dançando ao ritmo da música eletrônica, as pessoas mais ao longe, no balcão do bar, aqueles que, como ele e seus colegas famosos, estavam sentados nas mesas dos camarotes e então… Sim, cruzou olhares com a beldade, a mesma que se irritou ao ser confundida com uma latino-americana! Que linda ela era! E estava sentada apenas três mesas adiante acompanhada por outra garota tão bonita quanto ela. Curiosamente, pareciam tensas, irritadas, deslocadas. Talvez já tivessem se dado conta de que ele a machucara. Era bem provável que, tal como acontecera meses atrás com uma colega do Projac — uma atriz recém saída da adolescência — ele, ao chocar-se contra ela, tenha rompido os pontos de uma cirurgia para implantes de silicone mal feita. Sentindo-se culpado, decidiu ir pedir-lhe desculpas e, talvez, caso ela necessitasse, oferecer a devida reparação financeira. Vai que realmente se tratava de uma brasileira, pensou. Pediu, pois, licença aos novos amigos — já tinha o WhatsApp de todos (fariam muitas festas em Orlando) — e se dirigiu à mesa da morena, que, ao notar sua aproximação, pareceu ficar ainda mais aflita. Quando ele já estava abrindo a boca para lhe dirigir a palavra, ela sussurrou qualquer coisa para a amiga e, numa pressa nervosa, levantou-se e se retirou, metendo-se rapidamente entre os dançantes da pista. A moça que permaneceu na mesa o encarou, muito séria, e retirou um celular da bolsa. Ele a ignorou e saiu no encalço da primeira, a qual, provavelmente por acreditar ser ele um tipo qualquer de stalker, devia estar à procura de um segurança. André Jorge, porém, sentido-se seguro de si — afinal encontrara “sua turma” e voltara a ter consciência de quem ele era — não se fez de rogado e a perseguiu até o meio da pista, quando ela então estacou de costas para ele.
— Excuse me, miss — disse ele amavelmente, tocando-a de leve no braço.
Ela se virou, brusca, os olhos arregalados, uma expressão ao mesmo tempo decidida e cheia de espanto: encarando-o, ela ergueu o celular na mão direita. Ao mesmo tempo, André Jorge ouviu um grito vindo da mesa que acabara de deixar: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! A garota que ele seguia repetiu o grito: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! — e imediatamente apertou uma tecla do celular: as duas enormes explosões foram praticamente simultâneas. Havia trezentas e vinte e duas pessoas naquele club de Miami. Sessenta e três morreram instantaneamente. Outras sete morreram mais tarde no hospital ou a caminho dele. Setenta ficaram feridas. De fato, soube-se mais tarde, quando o vídeo das duas terroristas tornou-se público, que André Jorge tinha razão: não apenas a primeira, mas ambas haviam feito cirurgias para aumentar os seios. Contudo, em vez de silicone, haviam implantado o famigerado explosivo C-4, o qual fora detonado via bluetooth mediante um singelo aplicativo de celular. O próximo papel de André Jorge, na Globo, teria sido o de Riobaldo, numa nova adaptação do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Foi por isso que a revista Época, em sua capa, na qual falava desse atentado e da morte do ator, usara como manchete a frase do mais famoso jagunço da literatura brasileira: “Viver é muito perigoso”.
Em fins de 1999, numa tarde, Hilda Hilst me chamou ao seu escritório e, lá, sem meias palavras, com ar sombrio, me expulsou de sua casa. Disse que eu deveria arrumar minhas coisas e sair na manhã seguinte. Eu quis saber por que, já que sempre nos déramos tão bem, sem esquecer de acrescentar que meu trabalho no site dela ainda permanecia inconcluso. Não quis me esclarecer nada, nem ouvir qualquer argumento, disse apenas que eu já não era bem-vindo.
— Tudo bem, Hilda — respondi, calmo na superfície mas sentindo a adrenalina no sangue. — Vou apenas telefonar a São Paulo e ver se posso voltar a morar com meus amigos.
— Faça isso.
Voltei ao meu quarto, que também era a biblioteca, e comecei a empacotar as coisas. Havia sido um ano e tanto.
À noite, apesar de manter-se cortês, ela mal me dirigiu a palavra. Chico, o caseiro, foi solícito comigo e externou sua decepção.
— Vamo sentir sua falta. Isso é armação desses cabra.
— Agora já não interessa, Chico. ¿Fazer o quê?
Às seis da manhã do dia seguinte, eu ainda ressonava quando o ramal do meu quarto tocou. Acordei e o atendi: era Hilda.
— Yuri, querido — disse, a voz embargada. — Me encontra lá no escritório. Aconteceu uma coisa incrível!
Eu me vesti rapidamente, coloquei meu robe alemão — eu adorava meu robe de chambre alemão — e corri para o escritório. “O que será agora?”, pensava enquanto atravessava o átrio.
— Yuri! — disse ela, ainda descabelada, assim que entrei. — Você não vai embora. Você vai ficar aqui.
— Ué, Hilda. ¿Por que mudou de idéia?
Ela arregalou os olhos, comovida: — Eu acabo de ter um sonho vivíssimo! Uma coisa deslumbrante! Eu estava sentada na sala e alguém, um homem lindíssimo, me dizia que eu estava cometendo uma injustiça, um erro horrível. E eu perguntava “¿que erro? ¿que erro?”. E ele então me disse que você devia ficar na casa, que você é de confiança. E disse outras coisas que agora não consigo me lembrar, mas que me deixaram besta na hora.
Fiquei encarando-a, mudo, meio desconfiado, sem saber se aquilo não seria apenas uma maneira de — sem a necessidade de justificativas concretas — voltar atrás na decisão. Mas então acrescentou, sôfrega:
— ¿Você está com aquele seu livro sobre escritores e experiências extra-sensoriais?
— ¿Escritores e Fantasmas? Não, deixei em São Paulo.
Ela começou a olhar em torno, procurando por outros livros relevantes:
— Fazia muito tempo que eu não sonhava assim. ¿Cadê aquele livro do Cowper Powys? Ele fala muito de sonhos. Bossa louco mesmo… Parece que até se masturbava para ter sonhos e sair do corpo — e Hilda deu uma risada. — Eu não fiz nada disso ontem…
Eu a interrompi: — Hilda, ¿por que você queria que eu fosse embora?
Ela caiu das nuvens e me encarou, um olhar dolorido: — Desculpa, Yuri. Às vezes a gente se deixa levar pelas besteiras que dizem. Não pensa mais nisso.
E não pensei. Contudo, meses depois, a própria Hilda, sem dar por isso, e como se eu já estivesse inteirado do assunto, tratou do ocorrido. Um velho amigo dela, sabedor de que eu estava preparando seu site, lhe telefonara naquela mesma tarde e lhe dissera que eu era um hacker, que havia invadido a conta de email dele e deletado todas as mensagens referentes a ela, pois eu certamente pretendia ser seu único porta-voz na internet! Claro que Hilda, que desconhecia tudo de computadores, e ciente das várias vezes em que a apunhalaram pelas costas, preferiu acreditar num amigo de décadas a acreditar noutro que conhecia havia pouco mais de um ano. Ao ouvir o relato, ri comigo mesmo: eu — que estava apanhando da linguagem HTML enquanto fazia seu site — um hacker! E a verdade é que a descoberta do autor da intriga não me causou estranheza: ¿quantas vezes, num dia em que nos encontráramos meses antes, ele não insistira na mesma tecla? Dois amigos dele, jornalistas do Estadão, lhe tinham dito que Olavo de Carvalho representava o “mal absoluto” e que eu devia parar de ler o site dele. Como eu sempre comentava os artigos do Olavo com Hilda, ela certamente havia tocado no assunto com esse amigo. Hilda nada tinha contra essas leituras, afinal, anos antes, ela mesma havia conhecido Olavo numa livraria de propriedade dele em São Paulo, tendo-o convidado ao seu apartamento no qual, juntamente com outro amigo, passaram toda uma tarde rindo e conversando. Hilda, enfim, tinha uma boa lembrança do Olavo. Aliás, durante o aniversário de 70 anos dela, no ano 2000, ouvi a mesmíssima coisa dos tais jornalistas, petistas de carteirinha: “Olavo de Carvalho representa o mal absoluto”. Mal absoluto! Meu saquito… (Claro, para a doença o remédio é sempre um mal.)
Eu ainda me ria internamente da acusação quando Hilda, sem perceber, apresentou um argumento contrário àquela possível causa da intriga:
— Ele fuma maconha demais. Vai ver ele mesmo perdeu os emails.
Até hoje não sei qual das duas paranóias tinha relevância no caso: se a minha, ao associar esse “anti-olavismo” à intriga, ou a do tal amigo, a qual, ocasionada pelo uso crônico de maconha, poderia tê-lo levado a se confundir com seus emails e a imaginar que o webmaster de Hilda Hilst não era senão um hacker. Se a magia, tal como afirma o hermetista cristão Valentin Tomberg, é uma técnica de ação cujo veículo é a palavra, a fofoca e a maledicência serão sempre as formas mais difundidas de magia negra…
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Este relato constará do livro “O Exorcista na Casa do sol”, ainda em produção.
Se ainda estivesse neste mundo, Hilda Hilst completaria hoje 86 anos de idade. Em sua homenagem, seguem abaixo alguns links de relatos sobre a época em que dividimos o mesmo teto. (¿Por que “La Blanca”? Porque, no inverno, graças a meu longo gorro de lã, Hilda me chamava de Dunga e eu, em retribuição, a chamava de Blancanieves.) Espero que você tenha razão, Hilda, e que a transcomunicação seja uma realidade onde você está: vai que você tem acesso ao que escrevemos aqui… (Sugestão para o Zuckerberg: curtidas do Além.)
PRECISA-SE DE EMPREGADA FEIA. BEM FEIA.
HILDA HILST, O IPTU E A CHAVE DA CIDADE
HILDA HILST E SEU RADAR MENTAL
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