palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Mujeres Page 2 of 13

Artista conservador procura

 — Eu sei que ela é linda e gente boa, não sou tapado. Quero saber é se você conhece a mãe dela.

— Ué. Por quê?

— Porque são as mães que sempre me fodem. Só por isso.

— Não sabe lidar com as distintas senhoras? Toda possível sogra é difícil mesmo.

— Não é isso, eu sempre levo numa boa: converso, sou agradável, educado e tal. As figuras é que, por mais que gostem de mim, não agüentam a pressão constante e irrefreável das mães: “Faz o quê? Artista plástico?! Tem quantos anos?!! Minha filha, tome juízo!”.

— Bom, a mãe dela é inteligente, super bacana.

— Sério?

— Sim, no bairro dela todos a adoram. Até a elegeram vereadora.

— Por qual partido?

— PSOL.

— Ih, fodeu já. Esqueceu que faço as capas daquela editora que só publica conservadores? E eu leio todo livro que lançam.

— Nossa, é mesmo.

— Por mais legal que eu seja, a mulher não vai me suportar. Já sei como é.

— Mas a garota…

— Esquece. É bom no começo, depois vem a sabotagem. Parece que há um complô entre as mães pequeno-burguesas e as mães socialistas contra os pretendentes artistas de suas filhas.

— Tá certo. Ce que sabe.

— E aquela? Eu a achei ótima também. Demos altas risadas. Conhece a mãe dela?

— Conheço. A mãe dela é surda-muda.

— Perfeito!

— Perfeito nada. Ao menos não para você.

— Por quê?

— Ela é jornalista da Carta Capital. A filha vive citando os artigos dela.

— Pô, velho. Que merda! Você me convida para cada festa! Você é esquerdista e não sabe. Ainda bem que tenho outros canais. Se eu dependesse só do seu papo de “vamos conhecer umas gatas”, eu não deixaria a ninguém o legado da minha existência.

— Ahahahahaha…

— Vamo beber! — grita. E a meia voz: — Só vai dar para fazer isso mesmo…

 

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Mais tarde, no Facebook…

FUCK YOU

— Yuri, você é melhor do que isso, precisa parar de escrever esses contos. Esse último que você escreveu é uma bobagem.

— Uê, meu último livro nem foi lançado ainda. Na verdade, estou terminando de revisar a revisão da editora. De qual conto você tá falando?

— Esse do artista conservador. Que besteira.

— Cara, se você nem sabe o que é um conto, por que está me criticando? Aquilo não é um conto, é um esquete de humor. E eu o escrevi de pé, numa fila de caixa eletrônico. Viu os travessões feitos com hífens duplos? Escrevi no celular, para passar o tempo.

— Mas quem te lê no Facebook…

— Quem me lê no Facebook ocasionalmente lerá inclusive peidos por escrito. Facebook não é a Paris Review.

 

A Síndrome do Salvador

Assim que o garçom se retirou, fitou o amigo nos olhos e lhe disse à queima roupa: — Conheci uma garota incrível! Tô apaixonado.

— Sério? Eu a conheço?

— Não, não. Não costuma freqüentar os mesmos lugares que a gente.

— E onde você a conheceu? Pelo Tinder?

— Quase. Foi pelo Happn.

— Nunca ouvi falar.

— É um aplicativo parecido. Mas não tem tantas barangas nele.

Os dois riram.

— E ela? — tornou o amigo. — Também gostou de você?

— Cara… A gente saiu, rolou o maior clima, ficamos…

— Porra, será que agora sai casório? A gente tá ficando velho, Marcelo. Eu pelo menos acabei de noivar. Você precisa ver como é bom ter alguém ao nosso lado.

O outro fez uma careta: — Calma, né. A gente acabou de se conhecer. Não quero assustar a figura. Ela só tem vinte e um anos.

— E daí? Minha mãe se casou com vinte e dois.

— Outra época, uê. Antigamente nego se casava porque, do contrário, só comeria putas. Se o Vinícius de Moraes fosse jovem hoje, não teria se casado tantas vezes.

— Sei. Antigamente na época dos nossos avós, você quer dizer. Nos anos setenta e oitenta já era quase como hoje. E, se o Vinícius estivesse na ativa hoje, seria como a gente: teria um monte de ex-namoradas e nenhuma estrutura, nenhum filho, necas de pitibiriba. Ele pelo menos, por se casar, se reproduzia. Mas é também por causa desse bando de pós-Vinícius que andam por aí que os islâmicos estão dominando tudo, multiplicando-se feito coelhos.

— Caraca! Suas conversas sempre terminam nos islâmicos! Quando a gente se conheceu, terminavam em Deus. Será que a gente pode voltar ao assunto?

— Ok, ok. Foi mal — e depois de tomar um gole da cerveja: — Então me fala da garota.

— Bom — e os olhos de Marcelo brilharam. — Ela é linda, inteligente, divertida, carinhosa, tem uma voz hipnotizante… e é gostosa, claro.

— Claro — e Tiago devolveu o sorriso.

— Só tem um problema…

— Ai ai… — fez o amigo, suspirando. — Lá vem: não me diga que se meteu de novo com outra garota de programa? Pelo amor de Deus, véio, você tem de parar com isso! Esse papo de salvar putas não dá certo não.

— Mas eu já convenci duas a largarem essa onda errada.

— Eu sei. Mas elas se casaram com você? Não, porque você foi apenas o… digamos assim, o terapeuta! Elas não iam querer ficar com um cara que conhecia o passado delas e que as atormentou tanto por conta disso. Ainda não entendeu? Vai repetir a dose?

— Mas eu não disse que essa figura de agora é garota de programa, cacete! E vê se fala baixo!

Tiago arqueou as sobrancelhas, curioso: — Ah, não? Qual é o problema então?

— Véio… — e fez um muxoxo. — Ela é uma esquerdista roxa! Adora a Dilma até hoje e acha que estão fazendo uma injustiça com o Lula…

O amigo abriu os abraços, rindo: — Uê! Mas você disse que ela era inteligente!

— Não começa, Tiago. Você sabe que não é uma questão de inteligência. É uma questão de valores! Ela submete a inteligência dela a valores equivocados, só isso.

— Ou seja, ela é burra.

— Puta merda! Por acaso o Graciliano Ramos era burro? O Jorge Amado era burro? O José Saramago era? Claro que não! Eles tinham era um problema de cognição, uma dificuldade de avaliar os fatos e reconhecer os verdadeiros valores, cada qual à sua escala, uns mais, outros menos. Isso nada tem a ver com inteligência. E a Andréia é super inteligente, tem um ótimo senso de humor… Ela logo logo vai entender que…

Tiago, sacudindo a cabeça, interrompeu-o: — Que bosta, véio! Você tá fodido.

— Ué, por quê?

— Agora tô achando que seria melhor mesmo você se apaixonar por uma puta de esquina.

— Ai, meu saco. Que papo é esse, Tiago? Deixe de ser radical!

— Não estou sendo radical: estou sendo é realista.

— Como assim?

— Marcelo, você não percebe que vai acontecer tudo de novo?

— Tudo o quê?

— Essa sua mania de salvar as garotas do mau caminho, velho! Vai ser como aconteceu com as duas garotas de programa: você vai torrar o saco da figura, vai falar um monte de coisas com as quais ela não concorda, vai desafiá-la, vai lhe provocar muitas dores de consciência, enfim, vai apenas deixá-la ferida e puta da vida. É como se você pegasse um pedaço de terra improdutiva, arrancasse suas ervas daninhas e suas pragas, a arasse, lhe revolvesse o solo e… seu talento principal… lhe jogasse as sementes. Só que você a machucará tanto nesse processo que ela não vai mais querer saber de você. O arado machuca, cara! Por orgulho, mesmo que mais tarde ela comece a mudar de valores, ela não aceitará permanecer com o sujeito que a fez cair das nuvens. Já disse, é como preparar a terra para o plantio: você poderá semeá-la, mas quem irá colher os frutos do seu labor não será você, mas, sim, um outro reaça dotado de uma colheitadeira. Você só tem as ferramentas de aragem e de semeadura. Se soubesse colher alguma coisa, não estaria nesse perene estado de busca. Eu pelo menos estou noivo da garota que namoro há três anos. Já você, fica pulando de galho em galho, preparando-os para outros passarinhos. Estou errado?

Marcelo ficou em silêncio, pensativo. Não queria dar o braço a torcer, mas tampouco sentiu que havia inverdades naquela observação. Voltou a bebericar da cerveja, o olhar distante.

— Bom, parece que você me entendeu, né — tornou Tiago, depois de um minuto. — Tome cuidado, hem.

— Cara… quer saber? Eu vou é arriscar!

— Porra, bicho! Não vacila!

— Bom, eu tenho um ótimo argumento. Quer ver?

— Ver? Eu quero é ouvir. Qual é o argumento?

Marcelo tomou o celular sobre a mesa, destravou-o e entrou na galeria de imagens. Por fim, estendeu o braço ao amigo: — Dá uma olhada na figura! Já pegou alguma garota assim na sua vida?

Tiago, de olhos esbugalhados, ia admirando as imagens que Marcelo lhe exibia: — Nã… não… — gaguejou.

Andréia era deslumbrante. Parecia uma super-modelo: esguia mas dotada das necessárias e imprescindíveis curvas, seio farto, a clavícula conspícua, os braços delgados e frágeis, a cabeça altiva, os cabelos longos, lisos e brilhantes, os olhos grandes de boneca, lábios deliciosos… e se vestia como uma princesa, extremamente feminina.

— Cara, você tem certeza que ela é petista? — indagou Tiago, muito impressionado.

— Ela tem uma foto abraçada com o Lula e outra com o José Dirceu no Facebook dela.

— Puts!… Queria ver isso. Qual o nome dela?

Marcelo lhe deu o nome completo.

— Vou pesquisar depois — tornou Tiago.

O outro sorriu, vitorioso: — Não disse que meu argumento era lacrador? Vai me dizer que não tenho razão em arriscar?

— Rapaz, eu acho que você deve ir com tudo! Faça a maior limpeza na cabeça dela! Eu sempre recomendo, antes de sugerir autores conservadores, que um esquerdista deve primeiro ler Krishnamurti, porque esse doido indiano é um ácido corrosivo que não deixa ilusão sobre ilusão na cabeça do sujeito. Depois literatura da boa: Dostoiévski, Wassermann, Bernanos, Chesterton… Só então você deve fazê-la ler o Olavo de Carvalho, o Mário Ferreira, o Scruton, o Voegelin… enfim, os de alto calibre filosófico. E aí… — e Tiago sorriu, maquiavélico.

— E aí o quê?

— Aí, daqui uns seis meses, depois que vocês terminarem, vou ficar espiando o Facebook dela. Vai levar um ou dois anos, imagino, para ela começar a frutificar e a postar umas coisas reaças. A essa altura, eu já terei rompido meu noivado e já terei comprado uma colheitadeira!

Marcelo deu um tapão na mesa: — Ah, véio, vá se foder!

Tiago deu uma gargalhada: — Vamo beber! Vamo beber!

Por falar em tortura…

Dez anos atrás, voltando de um evento qualquer, peguei uma carona com uma amiga advogada. Uma garota muito bonita a acompanhava — pensei que fosse modelo, mas descobri que se tratava de uma delegada. Conversa vai, conversa vem, eu quis saber como era a experiência de, em sendo uma mulher, lidar com uma cadeia cheia de delinqüentes embebidos em testosterona. Ela me disse que só houve dificuldades nos dois ou três primeiros meses. Depois tornou-se uma atividade razoavelmente tranqüila. Eu quis saber o que mudou.

— Quer mesmo saber?

— Claro.

— Cá entre nós?

— Sim. Boca de siri.

Ela suspirou, hesitou por alguns segundos e então abriu o jogo: — É que, depois de muita pressão, finalmente dei permissão aos carcereiros para darem umas porradas num ou noutro preso pelo menos uma vez ao dia. Aí os bandidos começaram a me respeitar.

Arregalei os olhos: — Sério? Você manda os caras baterem neles?

— Não! — indignou-se. — Não é desse jeito. Eu não mando nada. Apenas permiti que os carcereiros, caso se defrontem com uma situação difícil, façam o que achar conveniente. Eles já agiam assim antes de eu assumir a delegacia. Quando cheguei e proibi que fossem violentos, começaram as pequenas rebeliões. De três em três dias rolava alguma treta: colchões queimados, estupros, brigas terríveis, e coisas do tipo. Falavam o tempo inteiro em fugir, que minha delegacia era melzinho na chupeta, que por eu ser mulher podiam deitar e rolar. Eu ia lá atrás e os presos ficavam mexendo comigo, gritando palavrões, insultos, me ameaçando, me jogando comida, enfim, um desrespeito só.

— E você acha que não há outro jeito?

— Que jeito? O cárcere é provisório. É uma delegacia, não é uma prisão. Não dá para implantar um esquema que funcione a longo prazo. Você acha que aceitei isso de bom grado? Claro que não! Tive de conversar com vários delegados antes, tive de entender que o sistema é assim, que não há outro jeito.

— Toda delegacia é assim?

— Toda delegacia.

De vez em quando me lembro dessa conversa. Nesses momentos, vem a lembrança conjunta do conto “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, cujo livro homônimo fora proibido em 1974. Ora, para os censores da época, tal narrativa não era uma previsão, mas, sim, o resultado de uma imaginação degenerada, que poderia influenciar os leitores de modo negativo. Do que se trata? Fonseca descreve um assalto a uma mansão durante uma festa de réveillon grã-fina. Os bandidos agem com uma barbárie inaudita. Chegam a matar dois homens — um diante de uma parede, outro diante de uma porta de madeira — apenas para provar, numa mórbida aposta, que, com um tiro de 12, a vítima pode grudar em uma daquelas superfícies graças aos inúmeros projéteis de chumbo. Fonseca, que havia trabalhado por um par de anos como comissário de polícia, já havia pressentido aonde chegaria o grau de violência e de selvageria dos criminosos. E, hoje, nós sabemos que sua previsão estava correta. A sociedade parece não compreender que esse estado de coisas não é fruto senão da progressiva e generalizada decadência moral. Durante séculos, o povo teve sua orientação ética derivada de suas crenças religiosas. Com a mídia, os artistas, os intelectuais, as universidades e os políticos a pregar insistentemente um humanismo ateu — algo demasiado abstrato para mentalidades simplórias ou meramente ancoradas nas necessidades materiais — isso quando esses guias iluminados não se limitam à pregação ou do hedonismo mais descarado ou de ideologias alienantes, nada sobra para refrear, nessas mentalidades, os impulsos mais abjetos. Quando a força não é balizada por nenhum espírito, apenas outra força pode com ela.

Feliz aniversário, Hilda Hilst! La Blanca!

Se ainda estivesse neste mundo, Hilda Hilst completaria hoje 86 anos de idade. Em sua homenagem, seguem abaixo alguns links de relatos sobre a época em que dividimos o mesmo teto. (¿Por que “La Blanca”? Porque, no inverno, graças a meu longo gorro de lã, Hilda me chamava de Dunga e eu, em retribuição, a chamava de Blancanieves.) Espero que você tenha razão, Hilda, e que a transcomunicação seja uma realidade onde você está: vai que você tem acesso ao que escrevemos aqui… (Sugestão para o Zuckerberg: curtidas do Além.)

PRECISA-SE DE EMPREGADA FEIA. BEM FEIA.

HILDA HILST, O IPTU E A CHAVE DA CIDADE

HOMEM TAMBÉM TEM PÊLO

O EXORCISTA NA CASA DO SOL

HILDA HILST E O FEMINISMO

HILDA HILST E SEU RADAR MENTAL

A MELHOR DAS CASAS POSSÍVEIS

O MARCENEIRO E O POETA

O IPTUZÃO DE HILDA HILST

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A ruína da intuição feminina

Em seu livro Psicologia, escreve o filósofo Mário Ferreira dos Santos:

“…a consciência é gradativa; apresenta uma infinidade de graus.

“Acentuava William James que as naturezas geralmente emotivas, muito acessíveis aos movimentos afetivos, podem caracterizar-se, em linhas gerais, por um mais alto grau e por um campo mais estreito de consciência, que os não-emotivos.

“Reduzindo a extensidade, aumenta-se a intensidade, eis uma lei que registramos em todo o existir tempo-espacial.

“O fato de sempre necessitar o homem um campo mais amplo de atividade, levou-o a dispersar mais a sua consciência atencional.

“A mulher sempre esteve mais ligada à moradia. Enquanto o homem tinha maior campo de ação e por isso generalizava mais, a mulher, por estar mais perto da singularidade dos fatos, captou melhor o heterogêneo. Por isso, é ela mais intuitiva que o homem, sendo este mais racional.”

Psicologia, Mário Ferreira dos Santos, Editora Logos, 5ª edição, 1963.

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Agora que a mulher leva uma vida semelhante à do homem, não se espante por vê-la sempre a meter-se em enrascadas sentimentais — culpando um suposto “dedo podre” — e a vê-la, tal como um homem, incapaz de notar que a amiga tem um corte novo de cabelo ou que o cônjuge tem mais problemas do que se imagina. A “caracterologia” e a atenção em profundidade, tão dependentes da intuição intensista, já não são dons femininos — por outro lado, se ainda são dons naturais, estão reprimidos.

Antes de alguém vir criticar o texto acima, lembre-se de que Mário Ferreira dos Santos certamente tinha uma compreensão mais profunda dos conceitos de “extensidade”, “intensidade”, “generalização”, “razão”, “singularização”, “intuição”, “homogêneo”, “heterogêneo”, e assim por diante, do que julga a vã filosofia de quem nunca levou a sério a filosofia.

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Publicado no Facebook.

O machista feminista

Tempos atrás participei de um encontro literário na Casa Mário de Andrade, em São Paulo, onde, ao longo de uma semana, debati com outros autores as perspectivas da literatura brasileira neste novo milênio. Foi lá que, entre outros, conheci pessoalmente Elisa Andrade Buzzo, Luis Eduardo Matta, Miguel Sanches Neto, André de Leones, Fabrício Carpinejar e Antonio Prata, com quem, na última noite, dividi uma carona oferecida pela esposa de Julio Daio Borges, organizador do evento. Embora o encontro tenha sido muito interessante — principalmente porque pela primeira vez eu participava de algo do gênero enquanto escritor convidado, e não como leitor —, este relato nada tem a ver com o evento em si, com os demais colegas ali presentes ou sequer com literatura — ao menos não diretamente. O fato é que, justamente no dia em que Daniela Rede, minha bela e auto-proclamada assessora de imprensa, não pôde comparecer, fui abordado ao final do debate daquela noite por um sujeito de ar simultaneamente astuto e simpático.

— Li seu livro — revelou ele, após apertar-me a mão e me cumprimentar pelas intervenções daquela noite.

— ¿Foste tu? — repliquei, sorrindo.

Ele riu: — Escritores brasileiros estão sempre achando que não são lidos.

— Deve ser por causa do xerox das faculdades e dos ebooks piratas — retruquei. — O que o bolso não vê, o coração não sente.

Alto, metido num elegante paletó escuro feito sob medida, em lustrosos sapatos Oxford, exibindo um reluzente Cartier dourado no pulso, óculos de Clark Kent, o cachecol posto à la “forca”, tal como agora se usa — em vez de à la “estrangulamento”, se é que me entendem —, esse cara bem vestido parecia um desses freqüentadores de vernissages que vemos em filmes alemães ou franceses. Com isso, quero dizer que se tratava de alguém que, a despeito de sua aparência de intelectual, também tinha um quê de empresário de sucesso, e nitidamente atraía a atenção feminina circundante. No fundo, ele parecia alguém montado para a ocasião — ou seja, se aquela fosse uma reunião de navegadores, ele teria aparecido em trajes de marinheiro de revista de moda.

— Também acompanho seu blog — tornou ele.

— ¿Você? Pensei que apenas um punhado de universitários lia meu blog.

— Bom, fiquei sabendo desses debates por causa dele.

O sujeito, que se apresentou como Nathan, após tratar por alto de alguns temas sobre os quais eu havia escrito naquela semana, talvez para me provar que realmente era meu leitor, ofereceu-me uma carona até a Vila Madalena, onde residia o amigo com quem eu estava hospedado, e também me perguntou se eu não queria aproveitar os bares da região para beber alguma coisa. ¿Carona e drinques ofertados por alguém que comprou meu livro? Claro que aceitei.

— ¿Sua mulher não veio com você hoje? — perguntou quando nos dirigimos à porta da frente.

— Não, não veio. E ela, infelizmente, não é minha mulher.

— Uma linda garota. Eu a vi aqui ontem à noite.

Saímos da Casa. Ele tinha um desses Jeeps Cherokee blindados, uma mania entre os endinheirados paranóicos de São Paulo, pois, apesar de pesados e de beberem feito loucos, em nosso restrito mercado eram os mais indicados para sobreviver à guerrilha urbana de todos os dias. Lá dentro, no banco de trás, muitos livros empilhados.

— Você por acaso não é um editor… ¿ou é?

— Não, não. — E vendo meu desapontamento involuntário: — Não precisa fazer essa cara. Você logo logo terá um bom editor. Basta esquecer um pouco os contos e escrever um romance.

— Ou arranjar um agente literário — acrescentei.

— Um agente, não! Uma agente — e Nathan sorriu.

Quando ainda percorríamos a avenida Pacaembu, ele começou a entrar no assunto que realmente lhe interessava:
— ¿Yuri, você já trabalhou como ghost-writer?

— Não e, sinceramente, nunca tive interesse. Gosto de assumir o que escrevo. Prefiro publicar algo ruim com meu nome do que publicar uma obra prima anonimamente. Coisas do ego.

— Entendo. Mas você não se importaria de aconselhar quem nunca escreveu um livro, ¿não é?

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ATENÇÃO: O conto, que me parece muito longo para o blog, continua aqui.

Amor e tempo


Carl Sagan e Ann Druyan

Aos dezesseis anos de idade, li maravilhado o livro “Cosmos”, do astrofísico Carl Sagan. Apesar de realmente ter assimilado todas aquelas informações científicas — eu era um nerd que tirava dez sobre dez nas provas de física — um dos trechos que mais me impressionaram, e de que jamais me esqueci, foi a dedicatória à sua esposa: “Para Ann Druyan — Diante da vastidão do espaço e da imensidade do tempo, é uma alegria compartilhar um planeta e uma época com Annie”. Um cientista romântico!, pensei então. Quantas vezes ouvimos no colégio que um cientista também pode ser um romântico? E quantos cientistas usam e abusam de epígrafes retiradas de livros sagrados ou de relatos mitológicos? Carl Sagan, com seu tom agnóstico e sentimental, conquistou minha simpatia e minha admiração naquela época. E também me lembro de que, enquanto lia seu livro, imaginava a voz de seu dublador brasileiro da série Cosmos a falar em minha cabeça. E essa imagem, de amar uma determinada mulher em meio ao sem-fim de mulheres possíveis, colou-se na minha imaginação: seria realmente possível? Como o tempo e o espaço condicionariam um tal amor?

Dez ou doze anos mais tarde, vencido pela insistência de alguns amigos, li “Paulo e Estevão”, uma biografia romanceada de São Paulo cujo verdadeiro autor não me interessa: Chico Xavier? Seu mentor Emmanuel? E daí? O livro é excelente e, centrado na trama e nos personagens, não se perde em doutrinação ou apologia espíritas. A despeito de possíveis incongruências históricas, trata-se duma obra literária honesta, ponto. Ninguém seria capaz de desmerecer as tragédias e dramas históricos de Shakespeare por conta de seus remendos. A falta de dados e a necessária consistência estética assim o exigem! Ninguém, em sã consciência, tampouco acusaria Shakespeare de apologia ao espiritismo por conta do fantasma do pai de Hamlet. Enfim, a que pese a moral e os costumes judáicos, a maneira como o romance de Chico Xavier justifica a postura pessoal de Paulo diante da castidade, defendida por ele em suas epístolas, é artisticamente verossímil. Saulo (Paulo) teria ficado noivo de Abigail, irmã de Jesiel — mais tarde batizado por São Pedro como Estevão —, sem conhecer essa ligação familiar. A própria Abigail só teria reconhecido o irmão, supostamente prisioneiro das galés no Mediterrâneo, no rosto do grande inimigo de seu noivo caçador de cristãos no dia da execução de Estevão. Quando Saulo se dá conta de que havia condenado à morte o irmão da mulher amada, o mesmo homem que a ela o futuro apóstolo jurara resgatar nos confins do mundo, cai numa tremenda crise. Incapaz de encarar a noiva, afasta-se. Nesse ínterim, ela adoece e morre. Quando Saulo decide que ainda a quer, é tarde demais, o tempo o venceu. Ele, que já odiava os cristãos por serem uma ameaça ao judaísmo, passa a odiá-los como aqueles que também arruinaram sua vida pessoal. O resto é história.

Nas epístolas — perdão, não sou desses que memorizam capítulos e versículos —, Paulo discorre sobre a castidade como sendo análoga à espera tranqüilamente suportada pelo noivo e pelo viúvo. Ambos se guardam enquanto o tempo os afasta do anelado reencontro. Já o hermetista cristão Valentin Tomberg ressalta que a castidade não é uma fuga ao sexo ou ao matrimônio: é, sim, vencer em seu próprio interior a “pulsão de caça ao outro” e, por isso, mesmo uma pessoa casada e sexualmente ativa deve ser casta. A castidade é, pois, paciência, aceitação e amor. A castidade é inimiga da pressa e não deve se deixar enganar pelo tempo.

O dado mais interessante da vida no espaço-tempo é que, conforme essa vida transcorre, o tempo se contrai. Na infância, o tempo tem a dimensão da eternidade, amplo como o mundo. Mesmo um homem de 90 anos de idade confirmará que seus doze primeiros anos correspondem, no fundo, à metade da sua vida. Para uma criança, a espera de um mês é uma longa espera. E tal impressão não se desvanece de uma hora para outra. Aqueles primeiros anos de eternidade relativa permanecem na mente de todo adulto. Uma paixonite infantil pode condicionar, em geral de modo inconsciente, centenas de paixões da maturidade: uma mulher com o mesmo olhar daquela coleguinha de escola, o mesmo sorriso, os mesmos lábios fartos constantemente entreabertos… Enfim, conforme os anos passam, contraem-se, e um ano torna-se uma medida diferente para quem tem quarenta anos de idade e para quem tem vinte. Se uma pessoa de quarenta anos permanece cinco anos sem falar com alguém, é como se tivessem conversado ontem. Para alguém de vinte e poucos anos, ficar sem contato com alguém por cinco anos é como ter permanecido distante por uma eternidade, afinal, cinco anos correspondem a 25% do seu tempo de vida. (E, por isso, homens maduros, se vocês prometerem a uma moça que irão lhe telefonar, telefonem em até duas semanas e não depois de seis meses!)

O tempo, portanto, pode ser um vilão para pessoas apressadas que, apesar da grande diferença de idade, apaixonam-se uma pela outra. Outro dia, meu pai me mostrou no YouTube uma música que, enterrada no subsolo da minha mente, causou-me comoção: “Non ho l’età”, interpretada por Gigliola Cinquetti. A melodia me trouxe aquela dura nostalgia da infância. Foi como me ver novamente aos pés da minha mãe enquanto ela ouvia ao rádio e trabalhava ou na cozinha ou em seus quadros. Mas da letra da música, em italiano, eu não sabia absolutamente nada, não fazia idéia… E essa letra me trouxe outra dura nostalgia, outra mais recente, mais vívida. E o choque entre ambas as nostalgias me abalou a alma, como se eu tivesse finalmente desvendado um vaticínio que me chegara cedo demais, já que, em criança, eu não possuía ferramentas para penetrar sua criptografia. E isso, claro, também me lembra outro caso da Hilda Hilst.

Quando Hilda tinha 69 anos de idade, recebeu a notícia — ao menos me lembro do ocorrido desta maneira — da morte da mulher de um antigo namorado, Paes Barreto, o mesmo homem que inspirou seus poemas do livro “Trovas de muito amor para um amado senhor” (1960). Quando se conheceram nos anos 1950, Paes Barreto era cerca de vinte anos mais velho e já era casado. Ainda assim, eles se apaixonaram e viajaram juntos. Hilda me disse que Paes Barreto pretendia separar-se da esposa para se casar com ela, mas Hilda, apesar de tentada, pois realmente o amava, não queria o carma de ser a destruidora de uma família — e então o rejeitou, afinal, ainda havia todo o tempo do mundo. Ela me confessou que se arrependeu diversas vezes dessa decisão ao longo da vida, pois, além de Paes Barreto, nenhum outro homem a tratou com tanto respeito, carinho e paixão, nenhum outro homem a compreendeu tão bem. Rindo, ela me dizia que a esposa de Paes Barreto, nos anos seguintes, já ciente daquele caso findado, sempre rasgava os jornais quando saía alguma notícia sobre Hilda e seus livros. Ao menos era o que lhe segredavam amigas comuns. E, na ocasião daquele falecimento, ciente de que já não havia um casamento a atrapalhar, Hilda me pediu para encontrar o telefone de Paes Barreto, com quem já não conversava havia mais de vinte anos. Descobri o número e, sabendo que Hilda não se incomodava nem um pouco em dividir sua intimidade comigo, permaneci no escritório enquanto conversavam. Na verdade, eu fiz a ligação e o avisei: “Senhor Paes Barreto? Um telefonema da parte de Hilda Hilst” e passei o aparelho para a poeta.

— Barreto? É Hilda! (Pausa.) Sim, meu querido, eu sei, eu sinto muito. (Pausa.) É verdade, me desculpa. (Pausa.) Eu também tenho muitas, muitas saudades… Não chora.

Nesse momento, Hilda começou a chorar compulsivamente, causando-me grande constrangimento. Não queria incomodá-los, senti que era um momento muito importante, íntimo, e me levantei, dirigindo-me à porta do escritório, de onde ainda a ouvi dizer:

— Eu também, Barreto, eu também. Eu te amo muito, meu querido!

Paes Barreto, salvo engano, faleceu dois anos depois. Não chegaram a se reencontrar. Não na Terra, pois Hilda faleceu seis anos depois. Neste mundo, o tempo se contrai e, se para a jovem Hilda aquele homem mais velho era muito mais velho, agora estavam ambos igualados pela morte. Nem todo mundo tem a sorte que Carl Sagan teve de — além de encontrar numa mesma pessoa um grande amor e uma alma afim — compartilhar com ela uma época e um planeta como um casal.


Marina Di Vicenzi, Hilda Hilst e Paes Barreto, 1959.

UM POEMA DE HILDA HILST PARA SEU AMADO SENHOR:

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

E além de vós

Não desejo nada.

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