palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Cotas, cocotas e sem cotas

Catastrophical failure

— O senhor é negro; é anão…

— Sim.

— É cadeirante.

— Isso.

— É gay?

— Sim. E mulher.

— Como?

— Mudança de sexo.

— Ah, ok. Interessante isso.

— Pois é.

— Bom, pelo acúmulo de cotas… já é juiz federal! Nem precisa prestar o concurso.

— Que ótimo! Obrigado. Digo, obrigada.

— É só assinar aqui.

— Ih.

— O que foi?

— Também sou analfabeta. Não sei nem ler, nem escrever.

— Ah, que sorte!

— Por quê?

— Nem precisa fazer carreira. Há uma nova lei de cotas para isso: você já vai direto para o STF. E olha que um ministro acaba de se aposentar.

— Ai, que felicidade! É tão bom viver num país que nos dá condições de melhorar de vida!

Neste momento, as paredes são derrubadas e uma horda de estranhos seres invade o recinto e come todos os presentes. O sistema estava tão lento e tão cheio de falhas que alguém resolveu formatar o disco. Ninguém sobreviveu.

Cai o pano. Fim.

(Ninguém aplaude.)

Eugen Rosenstock-Huessy: o desempregado e a linguagem

Eugen Rosenstock-Huessy

« […] Já somos capazes, a esta altura, de determinar uma quarta doença da linguagem comunitária. […] Para melhor descrevermos tal situação, podemos empregar as palavras crise e anarquia. Quando um desempregado bate à minha porta e eu digo “não há trabalho para ti”, isso parece não implicar nenhum problema linguístico. Mas implica, sim. O desempregado que pede “trabalho” está na verdade pedindo que lhe digam o que fazer. Tendo a pensar que nossos economistas não percebem, além da dificuldade financeira que há em tal reivindicação, a reivindicação de que falem com ele! Queremos que nos digam o que fazer na sociedade. A crise interna de uma sociedade em desintegração resulta de que ninguém diz a muitas pessoas dessa sociedade o que elas devem fazer.

« Para muitos, hoje em dia, é difícil entender que isso seja uma doença da linguagem. Estão acostumados a pensar na linguagem como exteriorização de pensamentos ou ideias. Assim, quando um comerciante em dificuldades tenta obter algum fornecimento, ou quando um trabalhador desempregado sonha com algum trabalho, a conexão entre essa necessidade e a linguagem passa despercebida. No entanto, a linguagem é antes de tudo dar ordens. Quando os pais se recusam a dar ordens aos filhos, a família deixa de ser família. Torna-se um bando de indivíduos mal instalados. Ordens são as sentenças de que toda ordem se compõe. O uso abstrato da palavra “ordem” fez-nos esquecer que “lei e ordem” é o somatório de todos os imperativos e ordens dadas por longo período de tempo.

« Um desempregado é alguém que procura ordens e não encontra ninguém que lhas dê. Por que as procura? Porque ordens cumpridas dão direitos. Se faço por conta própria uma imagem de barro, não posso exigir que me dêem dinheiro por isso. Mas, quando recebo ordens para fazer imagens de barro, estabeleço uma reivindicação. As respostas às ordens dadas fundam direitos. Os milhões de desempregados dos anos 30 esperavam alguém que lhes dissesse o que fazer.[…]»

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Trecho do capítulo 2 do livro “A Origem da Linguagem“, de Eugen Rosenstock-Huessy.

A Revolução Russa de 1905 e os protestos de 2013: coincidências?

Revolução Russa de 1905

A Revolução Russa de 1905 foi um movimento espontâneo, antigovernamental, que se espalhou por todo o Império Russo, aparentemente sem liderança, direção, controle ou objetivos muito precisos. [Já viu algo assim antes? E depois?] Geralmente é considerada como o marco inicial das mudanças sociais que culminaram com a Revolução de 1917.

Já antes de 1905, o Império Russo passava por uma grave política. (…)

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Leia mais na Wikipédia: A Revolução Russa de 1905.

P.S.: Esta é uma questão de canetão, não vale simplesmente dizer que sim ou que não, tem de justificar. =B^)

Hilda Hilst, o IPTU e a Chave da Cidade

Chave da Cidade

Quando Hilda Hilst faleceu, em 4 de Fevereiro de 2004, devia cerca de 800 mil reais de IPTU. Dois anos antes, a dívida era de 500 mil reais. Quando morei com ela, a dívida já era altíssima, salvo engano, aí pelos 300 mil reais. Mas, pouco antes de conhecê-la, quando a dívida já a assustava — ela caíra na armadilha de transformar uma área rural em loteamento, o que alterou o imposto de rural para urbano —, a Câmara de Vereadores de Campinas (SP) quis homenageá-la e, após votação, decidiu entregar-lhe a Chave da Cidade. Hilda foi então convidada para ir até a Câmara, mas deu de ombros: “Homenagem? Não quero homenagem, quero que revejam esse valor absurdo do meu IPTU”. Ela ganhava apenas 2000 reais por mês…

Os vereadores a esperaram em vão. No entanto, como a coisa já estava feita, decidiram enviar um representante à Casa do Sol, residência da autora, onde ele, um vereador (se não me falha a memória, o presidente da câmara), chegou todo sorridente com aquela Chave enorme nas mãos. O porteiro do condomínio anunciou a visita do sujeito, deixando Hilda irritada.

“Que petulância!”

Ela então, como costumava fazer em momentos assim, preparou sua performance: foi até o quarto e se “disfarçou” de velhinha. Sim, à época Hilda já tinha quase 70 anos de idade, mas seu espírito jamais faria alguém confundi-la com uma “velhinha”. Por isso, pegou duma bengala, jogou um xale sobre os ombros, encurvou-se e saiu caminhando como velhinha caquética até a entrada da casa, onde o vereador a esperava.

“Dona Hilda!”, começou ele, efusivo. “Vim lhe entregar a Chave da…”

“E o meu IPTU?”, cortou ela, seca.

Ele, pego de surpresa, gaguejou: “Mas, dona Hilda, nós… eu não tenho poder para isso… Vim apenas porque a Câmara resolveu lhe prestar uma homena…”

“O senhor por acaso já leu meus livros?”

Agora sim ele ficou branco. Engoliu em seco: “Não, senhora, nunca li nenhum dos seus livros”.

“Então, ponha-se daqui para fora. Meus leitores já me homenageiam quando lêem meus livros.”

O vereador ofendeu-se:

“Vim até aqui de boa vontade lhe prestar uma homenagem, lhe fazer um favor, e a senhora…”

“Favor o senhor faria se me chupasse a cona”, berrou ela, brandindo a bengala.

O vereador ficou roxo, não sabia onde enfiar a cara.

“Por favor, retire-se da minha casa”, tornou ela, com dignidade. “Vocês querem que eu pague uma fortuna para morar na minha própria casa e ainda acham que vão me comprar com uma chave idiota que não abre porta alguma? Pois diga a seus pares que os mandei enfiar, um de cada vez, a chave em seus respectivos cus. O senhor faça o mesmo.”

E então, desfazendo a corcunda, deu as costas ao homem e, pisando firme, imponente, caminhou para dentro de casa.

Até hoje ninguém sabe em qual excelentíssimo fiofó foi parar a chave.

Ngozi Okonjo-Iweala: “Quer ajudar a África? Faça negócios aqui”.

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Trecho: « (…) As pessoas na Africa não estão mais dispostas a tolerar líderes corruptos. (…) Iniciamos um programa que retirava o estado das empresas nas quais não tinham função alguma — que não eram de sua competência. O estado não deve se envolver com os negócios de produção de bens e serviços porque é ineficiente e incompetente. Assim decidimos privatizar várias de nossas empresas. (…) Os africanos, depois — estão cansados, estamos cansados de ser objeto de caridade e ajuda de todo mundo. Somos gratos, mas sabemos que podemos tomar conta de nosso próprio destino se tivermos a determinação de reformar. O que está acontecendo em muitos países africanos é que entendem que ninguém pode fazer nada por nós. Somos nós que temos que agir. Podemos convidar sócios que nos apoiem, mas nós temos que começar. (…) A melhor maneira de ajudar os africanos nos dias de hoje é os ajudar a se tornarem independentes. E a melhor maneira de fazer isso é ajudar a criar empregos. Não vejo problema em querer combater a malária e doar dinheiro para salvar vidas de crianças. Não é isso que estou dizendo. Isso é bom. Mas imaginem o impacto em uma família, se os pais puderem trabalhar e assegurar que seus filhos irão para a escola, que eles mesmos podem comprar remédios para combater as doenças. Se pudermos investir em lugares onde pode-se ganhar dinheiro enquanto criamos empregos e ajudamos as pessoas a serem independentes, não é isso uma oportunidade maravilhosa? Não é essa a trilha a percorrer? E gostaria de dizer que algumas das melhores pessoas para se investir no continente são as mulheres. (…) Porém, muitos deles estão sem capital para expandir, porque ninguém tem fé em outros países que podemos fazer o que for preciso. Ninguém pensa em termos de mercado. Ninguém pensa que as oportunidades existem. Mas aqui estou eu, alertando a todos, se perderem a barca agora, perderão para sempre.(…)»
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Ngozi Okonjo-Iweala é uma economista nigeriana que serviu como Ministra de Finanças da Nigéria por dois mandatos.

Outro post no mesmo espírito: James Shikwati: “Pelo amor de Deus, parem de ajudar a África!”.

Agenda: Grinding America Down (2010) – documentário legendado

Leia sobre o filme no IMDB. (O vídeo postado originalmente foi deletado, só encontrei este outro.)

Schopenhauer fala sobre a honra

Arthur Schopenhauer

Agora que nós, brasileiros, temos um “deputado presidiário” — o execrando senhor Natan Donadon (ex-PMDB-RO) — vale a pena reler Schopenhauer e entender em que grau esse criminoso, com o auxílio de seus pares (nos dois sentidos), e com o pretexto absurdo de defender a própria honra, afronta a honra do cargo que ocupa.

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[…] O assunto deste capítulo, que é aquilo que representamos no mundo, isto é, o que somos aos olhos dos demais, pode ser dividido, como temos dito, em honra, posição e glória.

Para nossos propósitos, a posição pode ser lançada por terra em poucas palavras, por importante que pareça aos olhos da multidão e dos filisteus, e por grande que possa ser sua utilidade como engrenagem da máquina do Estado. É um valor convencionado ou, mais precisamente, um valor fingido; sua ação tem por resultado uma consideração dissimulada, e a coisa toda é uma farsa para a multidão. As condecorações são letras de câmbio tiradas da opinião pública; seu valor se funda no crédito do girador. Entretanto, e sem falar de todo o dinheiro que poupam ao Estado como um substituto para as recompensas pecuniárias, não deixam de ser uma instituição das mais felizes, supondo que sua distribuição seja feita com discernimento e justiça. Com efeito, a multidão tem olhos e ouvidos, mas pouco além disso, muito pouco juízo, e sua própria memória é limitada. Muitos méritos estão fora da esfera de sua compreensão; outros são compreendidos e aclama-se a sua aparição, mas são prontamente esquecidos. Sendo assim, julgo muito conveniente que uma cruz ou uma estrela proclamem à multidão, em qualquer lugar e sempre: Este homem não é vosso semelhante; tem méritos! Entretanto, as condecorações perdem seu valor quando são distribuídas de forma injusta, irracional ou excessiva. Assim, um príncipe deveria ter tanta cautela em concedê-las como um comerciante em firmar letras de câmbio. A inscrição pour le mérite [pelo mérito] em uma condecoração é um pleonasmo; toda condecoração deveria ser pour le mérite, ça va sans dire [pelo mérito, supõe-se].

A questão da honra é muito mais difícil e ampla que a da posição. Primeiramente temos de defini-la. Se a esse propósito dissesse que a honra é a consciência exterior e a consciência é a honra interior, talvez essa definição pudesse agradar alguns; mas seria uma explicação mais pomposa que clara e fundamentada. Portanto, afirmo que, objetivamente, a honra é a opinião que os demais têm sobre nosso valor e, subjetivamente, o respeito que temos por essa opinião. Segundo essa visão, ser um homem de honra exerce uma influência muito salutar sobre o indivíduo, mas de modo algum puramente moral.

A raiz e a origem do sentimento de honra e de vergonha, inerente a todo homem que não esteja completamente corrompido, e o grande valor atribuído ao primeiro, serão expostas nas considerações seguintes. O homem, por si só, pode muito pouco, como um Robinson Crusoé numa ilha deserta; unicamente em sociedade com os outros é e pode muito. Torna-se ciente dessa condição assim que sua consciência, ainda que pouco, começa a desenvolver-se e desperta nele o desejo de ser considerado como um membro útil da sociedade, capaz de exercer seu papel como homem, pro parte virili, e que tem direito assim a participar das vantagens da sociedade humana. Consegue ser um membro útil da sociedade executando, primeiro, aquilo que se exige e espera de qualquer homem em qualquer posição, e depois aquilo que se exige e espera dele na posição particular que ocupa. Entretanto, percebe rapidamente que o importante não é ser um homem útil em sua própria opinião, mas na dos demais. Essa é a origem do ardor com que mendiga a opinião favorável dos outros e do valor elevado que lhe atribui. Ambas as tendências se manifestam com a espontaneidade de um sentimento inato, que se denomina o sentimento de honra e, em certas circunstâncias, o sentimento de pudor (verecundia). Esse é o sentimento que faz o indivíduo corar ante o pensamento de perder na opinião dos demais, ainda que seja inocente, e ainda quando a falta revelada não seja mais que uma infração relativa, isto é, assumida arbitrariamente. Por outro lado, nada fortalece mais sua coragem e sua determinação que a certeza adquirida ou renovada da boa opinião dos homens, porque lhe assegura a proteção e o socorro das forças reunidas do conjunto, que constitui um baluarte infinitamente mais poderoso contra os males da vida que suas forças sozinhas.

A variedade de relações nas quais um homem pode se situar ante os demais de modo a obter sua confiança, isto é, uma boa opinião, origina muitas espécies de honra. Essas relações são principalmente o meum e o tuum, depois o cumprimento das obrigações e, por último, a relação sexual. A essas correspondem a honra burguesa, a honra do cargo e a honra sexual, cada uma das quais apresentando ainda subdivisões.

A honra burguesa possui a esfera mais extensa; consiste na pressuposição de que respeitaremos absolutamente os direitos de cada um, e que, por conseguinte, nunca empregaremos em nosso proveito meios injustos ou ilícitos. É a condição para a nossa participação em todas as relações pacíficas com os homens. Basta, para perdê-la, uma só ação que seja enérgica e manifestamente contrária a essas relações pacíficas, algo que acarrete punições legais, com a condição de que o castigo tenha sido justo. Entretanto, em última análise, a honra repousa sempre sobre a convicção da imutabilidade do caráter moral, em virtude do qual uma só má ação é um indicador seguro da mesma natureza moral de todas as ações subsequentes, desde que se apresentem circunstâncias semelhantes. É o que indica também a expressão inglesa character, que significa renome, reputação, honra. Por isso, a perda da honra é irreparável, a menos que se deva a uma calúnia ou a falsas aparências. Assim, pois, há leis contra a calúnia, contra a difamação e contra as injúrias; porque a injúria, o simples insulto, é uma calúnia sumária, sem indicação de motivos. Em grego, se poderia muito bem reproduzir desta forma: ἔστι ἡ λοιδορία διαβολὴ σύντομος [a injúria é uma calúnia abreviada], máxima que não se encontra, todavia, expressa em nenhuma outra parte. É evidente que aquele que insulta não tem nada de real nem verdadeiro a produzir contra o outro, do contrário o enunciaria na forma de premissas e deixaria tranquilamente aos que lhe escutam o cuidado de tirar a conclusão; em vez disso, apresenta a conclusão e omite as premissas. Conta com a suposição de que procede assim somente em favor da brevidade. A honra burguesa toma seu nome, é verdade, da classe burguesa, porém sua autoridade se estende a todas as classes indistintamente, sem excetuar sequer as mais elevadas. Ninguém pode prescindir dela, sendo uma questão das mais sérias que merece a precaução de não ser considerada superficialmente. Todo aquele que viola a fé e a lei será, para sempre, um homem sem fé e sem lei, haja o que houver, seja o que for, os frutos amargos que essa perda traz consigo não tardarão em produzir-se.

A honra tem, em certo sentido, um caráter negativo, por oposição à glória, cujo caráter é positivo. Porque a honra não é a opinião que se enuncia sobre certas qualidades especiais, pertencentes a um só indivíduo, mas a que se enuncia sobre qualidades comumente pressupostas, que esse indivíduo se vê obrigado a possuir igualmente. A honra afirma apenas que esse sujeito não é uma exceção, enquanto que a glória afirma que é uma. A glória deve, pois, ser adquirida; a honra, pelo contrário, só necessita não ser perdida. Por conseguinte, ausência de glória é obscuridade, algo negativo; ausência de honra é vergonha, algo positivo. Porém, não devemos confundir essa condição negativa com a passividade; pelo contrário, a honra tem um caráter puramente ativo. Com efeito, procede unicamente de seu sujeito; está fundada em suas ações, e não em ações de outros ou em fatos exteriores; é, portanto, parte daquilo que depende de nós. Essa é, como veremos a seguir, a marca distintiva entre a verdadeira honra e a honra cavalheiresca ou falsa honra. A honra não pode ser atacada exteriormente senão pela calúnia, e o único meio de defesa é uma refutação acompanhada da publicidade necessária para desmascarar o caluniador.

O respeito que se atribui à idade parece fundamentar-se em que a honra dos jovens, ainda que admitida por suposição, não tenha sido posta à prova; por conseguinte, não existe, propriamente falando, mais que o crédito. Porém, homens de mais idade puderam comprová-la no curso da vida, se por sua conduta souberam conservar sua honra. Porque nem os anos em si, visto que os animais chegam também a uma idade avançada e às vezes mais avançada que a do homem, nem tampouco a experiência como simples conhecimento mais íntimo da marcha do mundo, justificam o respeito dos mais jovens pelos mais velhos, algo que se exige universalmente. A simples debilidade senil daria mais direito ao desdém que à consideração. É notável, todavia, que haja no homem certo respeito inato, realmente instintivo, pelos cabelos brancos. As rugas, sinal muito mais infalível da velhice, não inspiram esse respeito. Nunca se fez menção às rugas respeitáveis, mas sempre aos veneráveis cabelos brancos.

O valor da honra é apenas indireto; porque, como se explicou no começo deste capítulo, a opinião dos demais a nosso respeito não pode ter valor para nós senão na medida em que determina, ou pode eventualmente determinar, sua conduta para conosco. Ainda assim, isso se aplica apenas enquanto estivermos entre os homens. Isso porque, como no estado de civilização devemos inteiramente à sociedade nossa segurança e nossa propriedade, como ademais necessitamos dos outros em qualquer empreendimento, e como devemos conquistar sua confiança para que entrem em relação conosco, sua opinião será de grande valor aos nossos olhos, mesmo que esse valor seja sempre indireto – e não vejo como poderia ser direto. Nesse sentido, disse também Cícero: De bona autem fama Chrysippus quiden et Diogenes, detracta utilitate, ne digitum quidem, ejus causa, porrigendum esse dicebant. Quibus ego vehementer assentior [Crisipo e Diógenes diziam que uma boa reputação, fora sua utilidade, não merecia que se levantasse um dedo por ela. Concordo inteiramente com eles. (De finibus, III, 17.)]. Do mesmo modo, Helvécio desenvolve extensamente essa idéia em sua obra capital De l’esprit (discurso III, capítulo XIII) e chega a esta conclusão: Nous n’aimons pas l’estime pour l’estime, mais uniquement pour les avantages qu’elle procure [não amamos o apreço pelo apreço, senão unicamente pelas vantagens que proporciona]. Como os meios não podem ter mais valor que o fim, a máxima a honra é mais importante que a vida, como temos dito, é um exagero.

Isso no que diz respeito à honra burguesa. A honra do cargo é a opinião geral de que um homem incumbido de um emprego possui efetivamente todas as qualidades exigidas e cumpre estritamente as obrigações de seu cargo. Quanto mais importante e ampla é a esfera de influência de um homem no Estado, mais elevado e influente é o posto que ocupa e mais elevada deve ser também a opinião que se tem das qualidades intelectuais e morais que o fazem digno desse posto. Por conseguinte, possui um grau de honra correspondentemente superior, como evidenciado pelos seus títulos, condecorações etc., e também pelo comportamento diferenciado dos demais para com ele. Em mesma escala, a posição de um homem é a que determina o grau particular de honra que se lhe deve, mesmo que esse grau possa modificar-se em função da capacidade das massas em compreender a importância dessa posição. Mas sempre se atribuirá mais honra ao que tem obrigações especiais a cumprir que ao simples burguês, cuja honra se funda principalmente em qualidades negativas.

A honra do cargo exige, ademais, que aquele que ocupa um posto faça respeito à causa de seus colegas e de seus sucessores. Isso é realizado através do rígido cumprimento de seus deveres e também pelo fato de nunca deixar impune nenhum ataque contra o posto ou contra si mesmo, enquanto funcionário; em outras palavras, não permitindo que se chegue a dizer que não cumpre meticulosamente os deveres de seu cargo ou que esse não tem qualquer utilidade para o país. Pelo contrário, deve provar através de punições legais que tais ataques eram injustos.

Como subdivisões dessa honra, encontraremos a do empregado, do médico, do advogado, de todo professor público, de todo graduado, em suma, de todo aquele que foi publicamente declarado capaz de realizar algum trabalho intelectual, tendo, desse modo, se comprometido a executá-lo; em uma palavra, a honra de todos os que se comprometeram publicamente com alguma tarefa. Nesta categoria deve incluir- se também a verdadeira honra militar; esta consiste no fato de que todo homem que se comprometeu a defender sua pátria possui realmente as qualidades necessárias para tal, principalmente o valor, a bravura e a força, e que está realmente disposto a defendê-la até a morte e a não abandonar a bandeira, à qual prestou juramento. É dada aqui à honra do cargo uma significação muito mais ampla que a normal, em que designa o respeito devido pelos cidadãos ao próprio cargo.[…]

Fonte: Aforismos para a Sabedoria de Vida, por Arthur Schopenhauer.

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