palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Swedenborg fala sobre o amor conjugal e os casamentos no céu

 Emanuel Swedenborg

« 366. Como o céu é composto do gênero humano e, conseqüentemente, os anjos lá são de um e outro sexo; e como, por criação, a mulher é para o homem e o homem para a mulher, assim um pertence ao outro; e como este amor é inato em um e outro, segue-se que há casamentos nos céus como nas terras. Mas os casamentos nos céus diferem muito dos casamentos nas terras; por isso, vai-se dizer agora em que consistem os casamentos nos céus, em que eles diferem dos das terras e em que eles são semelhantes.

« 367. O casamento nos céus é a conjunção de dois em uma mente única. Direi primeiramente qual é essa conjunção. A mente consiste em duas partes, das quais uma se chama entendimento e a outra vontade. Quando estas duas partes fazem um, diz-se então que elas são uma mente única. O marido faz a parte denominada entendimento, e a esposa a que se chama vontade. Quando essa conjunção, que pertence aos interiores, desce nos inferiores que pertencem ao seu corpo, ela é então percebida e sentida como amor; este amor é o amor conjugal. É, pois, evidente que o amor conjugal deriva a sua origem da conjunção de dois em uma só mente. É isto que no céu se chama coabitação, e daí é que se diz que eles são não dois, mas um, e por isso dois esposos no céu são chamados não dois anjos, mas um anjo.

« 368. Se há também tal conjunção do marido e da esposa nos íntimos que pertencem às mentes é porque isso procede da criação mesma. Com efeito, o homem nasce para ser intelectual, e assim para pensar pelo entendimento, e a mulher nasce para ser voluntária, e assim para pensar pela vontade. Mesmo o que se vê claramente pela índole ou inclinação inata de um e de outro, como também por sua forma. Pela índole, porque o homem age pela razão, e a mulher pela afeição; pela forma, porque o homem tem a face mais rude e menos bela, a palavra mais grave, o corpo mais duro; e a mulher, a face mais delicada e mais bela, a palavra mais tema e o corpo mais macio. Semelhante diferença há entre o entendimento e a vontade, ou entre o pensamento e a afeição. Semelhante diferença há também entre a verdade e o bem, e semelhante diferença entre a fé e o amor; porque a verdade e a fé pertencem ao entendimento, e o bem e o amor pertencem à vontade. É daí que, na Palavra, pelo "jovem" e o "varão" no sentido espiritual se entende o entendimento da verdade, e pela "virgem" e a "mulher" se entende a afeição do bem. É também por isso que a igreja, segundo a afeição do bem e da verdade, se chama "mulher" e também "virgem", e todos os que estão na afeição do bem se chamam "virgens" (como no Apocalipse 14:4) (‘).

« 369. Cada um, seja homem ou mulher, possui um entendimento e uma vontade, mas no homem predomina o entendimento e na mulher predomina a vontade; e o ser humano é um ou o outro, conforme o que predomina. Mas nos céus não há predomínio algum nos casamentos, porque a vontade da esposa é também a do marido, e o entendimento do marido é também o da esposa, pois um ama querer e pensar como o outro, assim mutuamente e reciprocamente; daí a sua conjunção em um. Esta conjunção é uma conjunção real, pois a vontade da esposa entra no entendimento do marido, e o entendimento do marido na vontade da esposa, principalmente quando eles se olham face a face, porque há, como já se disse acima muitas vezes, comunicação dos pensamentos e das afeições nos céus, mormente entre esposos, porque eles se amam mutuamente. Assim, é evidente que a conjunção das mentes faz o casamento e produz o amor conjugal nos céus, a saber, que ela consiste em que um quer que tudo que lhe pertence pertença ao outro, e assim reciprocamente.

« 370. Os anjos disseram-me que, quanto mais dois esposos estão em uma tal conjunção, mais eles estão no amor conjugal, e ao mesmo tempo na inteligência, sabedoria e felicidade. Assim é, porque a Divina verdade e o Divino bem, dos quais procedem toda inteligência, toda sabedoria e toda felicidade, influem principalmente no amor conjugal. Conseqüentemente, o amor conjugal é o plano mesmo do influxo Divino, porque é ao mesmo tempo o casamento da verdade e do bem, pois do mesmo modo que há conjunção do entendimento e da vontade, assim também há conjunção da verdade e do bem. Porque o entendimento recebe a Divina verdade e até é formado pelas verdades, e a vontade recebe o Divino bem e também é formada pelos bens, visto que o que o homem quer isto é para ele um bem, e o que ele compreende é para ele uma verdade. Daí resulta que é a mesma coisa dizer conjunção do entendimento e da vontade, ou dizer conjunção da verdade e do bem. A conjunção da verdade e do bem faz o anjo e faz também a inteligência, a sabedoria e a felicidade do anjo. Pois o anjo é anjo na relação em que o bem foi nele conjunto à verdade e a verdade ao bem, ou, o que é a mesma coisa, ele é anjo na relação em que nele o amor foi conjunto à fé e a fé ao amor.

« 371. Se o Divino que procede do Senhor influi principalmente no amor conjugal, é porque o amor conjugal descende da conjunção do bem e da verdade, porquanto, como se disse acima, quer se diga conjunção do entendimento e da vontade, ou conjunção do bem e da verdade, é a mesma coisa. A conjunção do bem e da verdade tem sua origem do Divino amor do Senhor para com todos os que estão nos céus e nas terras. Do Divino amor procede o Divino bem, e o Divino bem é recebido, pelos anjos e pelos homens, nas Divinas verdades. O único receptáculo do bem é a verdade. É por isso que todo aquele que não está nas verdades nada pode receber do Senhor, nem do céu. Quanto mais, pois, as verdades no homem foram conjuntas ao bem, mais o homem foi unido ao Senhor e ao céu. Daí é que vem a origem mesma do amor conjugal. Por isso este amor é o plano mesmo do influxo Divino. Daí é que a conjunção do bem e da verdade nos céus se chama casamento celeste, e o céu, na Palavra, é comparado a um casamento e também chamado casamento; e o Senhor é chamado "Noivo" e "Marido", e o céu com a igreja, "noiva" e também "esposa".

« 372. O bem e a verdade conjuntos no anjo e no homem não são dois, mas um, porque então o bem pertence à verdade e a verdade ao bem. Esta conjunção pode assemelhar-se ao que se dá no homem, quando ele pensa o que quer e quer o que pensa, pois então o pensamento e a vontade fazem um, assim uma mente única, porque o pensamento forma ou apresenta em uma forma o que a vontade quer, e a vontade lhe dá o deleite. Daí vem também que dois cônjuges no céu se chamam não dois anjos mas um anjo. É também o que se entende por estas palavras do Senhor: "Não lestes que Aquele que [os] fez desde o princípio, macho e fêmea os fez, e disse: Por isso deixará o homem pai e mãe, e se unirá à sua esposa e serão dois numa só carne? porque não mais são dois, mas uma carne. Aquilo que assim Deus conjungiu, o homem não separe… Nem todos compreendem tal palavra mas aqueles aos quais foi dado" (Mat. 19:4 a 6, 11; Mc. 10:6 a 9; Gên. 2:24). Aqui se descreve o casamento celeste em que estão os anjos, e ao mesmo tempo o casamento do bem e da verdade. E por estas palavras "que o homem não separe o que Deus conjungiu", se entende que o bem não deve ser separado da verdade.

« 373. Pelo que precede, pode-se ver agora de onde provém o amor verdadeiramente conjugal, a saber: é primeiro formado nas mentes dos que estão no casamento, e depois desce e é conduzido no corpo, e aí é percebido e sentido como amor, porque tudo que é sentido e percebido no corpo tira a sua origem de seu espiritual, pois tira-a do entendimento e da vontade; o entendimento e a vontade constituem o homem espiritual. Tudo que desce do homem espiritual no corpo, nele se apresenta sob uma outra aparência; contudo, é semelhante e unânime, como a alma e o corpo e como a causa e o efeito, como se pode ver pelo que se disse e se mostrou nos dois artigos sobre as correspondências.

« 374. Ouvi um anjo descrever o amor verdadeiramente conjugal e seus prazeres celestes, declarando que é o Divino do Senhor nos céus, isto é, o Divino bem e a Divina verdade unidos em dois entes, ao ponto de serem não dois, mas um. Ele dizia que dois cônjuges no céu estão nesse amor porque cada um é seu bem e sua verdade, não só quanto à mente, mas também quanto ao corpo; porque o corpo é a efígie da mente, pois foi formado à sua semelhança. Daí, ele induzia que o Divino está em efígie em dois esposos que estão no amor verdadeiramente conjugal; e que o Divino estando assim retratado, o céu também o está, porque o céu inteiro é o Divino bem e a Divina verdade que procedem do Senhor. E daí vem que nesse amor foram inscritas todas as coisas do céu, e tantas bem-aventuranças e delícias, que elas excedem um número que ele exprimia por uma palavra compreendendo miríades de miríades. Ele se admirava de que o homem da igreja nada soubesse a respeito, quando, entretanto, a igreja é o céu do Senhor nas terras, e o céu é o casamento do bem e da verdade. Ele dizia que ficava estupefato pensando que é dentro da igreja, mais do que fora dela, que se cometem e que também se confirmam adultérios, cujo prazer em si não é, no sentido espiritual e por conseguinte no mundo espiritual, mais do que um prazer do amor do falso conjunto ao mal, prazer que é prazer infernal, porque é inteiramente oposto ao prazer do céu, que é o prazer do amor da verdade conjunta ao bem.

« 375. Sabe-se que dois cônjuges que se amam são unidos mais interiormente, e que o essencial do casamento é a união dos espíritos ou das mentes. Daí também pode-se saber que, quais são em si os espíritos ou as mentes, tal é a união, e também tal é entre eles o amor. A mente é unicamente formada de verdades e de bens, porque tudo que existe no universo se refere ao bem e à verdade e também à sua conjunção; por isso a união das mentes é absolutamente tal quais são as verdades e os bens de que elas foram formadas. Donde resulta que a união das mentes que foram formadas de verdades e de bens genuínos é a mais perfeita. Deve-se saber que nada se ama mutuamente mais do que a verdade e o bem; por isso, é desse amor que descende o amor verdadeiramente conjugal. O falso e o mal também se amam, mas este amor se converte depois em inferno.

« 376. Pelo que acaba de ser dito sobre a origem do amor conjugal, pode-se concluir quais os que estão no amor conjugal e quais os que não estão. No amor conjugal estão os que pelas Divinas verdades estão no Divino bem; e quanto mais as verdades que estão conjuntas ao bem são reais, mais o amor conjugal é real. E como todo bem que é conjunto às verdades vem do Senhor, segue-se que ninguém pode estar no amor verdadeiramente conjugal exceto se reconhecer o Senhor e Seu Divino, porque sem este reconhecimento o Senhor não pode influir nem ser unido às verdades que estão no homem.

« 377. Assim, é evidente que não estão no amor conjugal os que estão nos falsos, nem com mais forte razão os que estão nos falsos do mal. Nos que estão no mal e por conseguinte nos falso, os interiores que pertencem à mente também foram fechados. Por isso, não pode existir aí origem alguma do amor conjugal; mas, por baixo dos interiores, no homem externo ou natural separado do homem interno, há uma conjunção do falso e do mal, conjunção denominada casamento infernal. Foi-me permitido ver qual é o casamento entre os que estão nos falsos do mal, casamento que é chamado infernal: há entre eles conversas e conjunções lascivas, mas interiormente eles ardem um contra o outro em um ódio mortal que é tão grande, que não pode ser descrito.

« 378. Não há também amor conjugal entre duas pessoas que são de religiões diferentes, porque a verdade de uma não concorda com o bem da outra, e duas coisas dessemelhantes e discordantes não podem de duas mentes fazer uma só; por isso, a origem de seu amor nada tira do espiritual. Se coabitam e concordam, é somente por causas naturais. É por esta razão que os casamentos nos céus se contratam com pessoas que pertencem à mesma sociedade – porque elas estão em um semelhante bem e em uma semelhante verdade – e não com as que são de fora dessa sociedade. Que todos os que estão em uma mesma sociedade se acham em um semelhante bem e em uma semelhante verdade, e diferem dos que estão fora dessa sociedade, é o que se vê acima (n.º 41 e seguinte). É também o que foi representado na nação israelita, pelo fato de os casamentos serem contratados dentro das tribos e particularmente dentro das famílias, e não fora delas.

« 379. O amor verdadeiramente conjugal não pode existir entre um marido e muitas esposas, porque isso aniquila a sua origem espiritual, que consiste em que de suas mentes seja formada uma só. Por conseguinte, isso aniquila a conjunção interior, isto é, a do bem e da verdade, da qual provém a essência mesma desse amor. O casamento com mais de uma esposa é como um entendimento dividido entre muitas vontades, e como um homem ligado não a uma só igreja mas a muitas, porque assim a sua fé é dividida de modo a se tornar nula. Os anjos dizem que é absolutamente contra a ordem Divina ter muitas esposas; e que eles sabem isso por muitas causas, e também por isto: desde que pensam a respeito do casamento com muitas, eles são privados da bem-aventurança interna e da felicidade celeste, e então ficam como ébrios, porque o bem neles é separado de sua verdade. E como os interiores pertencentes à sua mente entram em um tal estado simplesmente pelo pensamento unido com alguma intenção, eles percebem claramente que o casamento com mais de uma esposa fecha o seu interno e faz que, em vez do amor conjugal, se introduza um amor lascivo que desvia do amor do céu. Eles dizem, além disso, que o homem dificilmente compreende isto, porque há poucas pessoas que estejam no amor conjugal genuíno, e que aqueles que não estão nele nada sabem absolutamente do prazer interior que reside nesse amor, pois só conhecem um prazer lascivo que se muda em tédio depois de uma curta coabitação, enquanto o prazer do amor verdadeiramente conjugal não só dura até a velhice no mundo, mas ainda se torna um prazer do céu depois da morte, e então, interiormente, um prazer que é aperfeiçoado durante a eternidade. Eles até me disseram que as bem-aventuranças do amor verdadeiramente conjugal podem se contar por vários milhares, e que não há uma só delas que seja conhecida do homem, nem que possa ser percebida pelo entendimento de quem não estiver pelo Senhor no casamento do bem e da verdade.

« 380. O amor da dominação de um dos cônjuges sobre o outro dissipa inteiramente o amor conjugal e seu prazer celeste. Isso porque, como já se disse, o amor conjugal e seu prazer consistem em que a vontade de um seja a do outro e vice-versa. O amor de dominar destrói isso no casamento, porque aquele que domina quer unicamente que sua vontade esteja no outro e, por outro lado, que a vontade do outro nele seja nula, de onde resulta que não há coisa alguma de mútuo, por conseguinte comunicação alguma de amor e de prazer desse amor com o outro. Entretanto, essa comunicação e, por conseguinte, conjunção constituem no casamento o prazer interior mesmo, que se chama bem-aventurança. O amor da dominação extingue inteiramente essa bem-aventurança e com ela extingue o celeste e todo o espiritual do amor conjugal, a tal ponto que não se sabe se ele existe. E, se falasse a respeito dessa bem-aventurança, ela seria considerada com tanto desprezo que sua menção seria motivo de riso ou de enfurecimento. Quando um quer o que a outra quer, ou quando uma quer o que o outro quer, há liberdade para ambos, porque toda liberdade pertence ao amor. Mas não há liberdade para qualquer deles quando há dominação: um é escravo e o que domina também é escravo, porque ele é dominado pela cobiça de dominar. Mas isto não é compreendido por quem não sabe o que é a liberdade do amor celeste. Entretanto, a verdade é que, sendo o amor conjugal inteiramente livre, quanto mais a dominação entrar, mais as mentes são divididas. A dominação subjuga e a mente subjugada ou não tem vontade ou é de vontade oposta; se não tem vontade, também não tem amor; se é de vontade oposta, o ódio toma o lugar do amor. Os interiores dos que vivem em um tal casamento estão em colisão entre si como estão ordinariamente dois opostos, ainda que externamente sejam refreados… A colisão e o combate de seus interiores se manifestam depois da morte. Eles geralmente se encontram e, então, combatem entre si como inimigos e se dilaceram mutuamente, porque então agem segundo o estado de seus interiores. Foi-me permitido ver, algumas vezes, seus combates e dilaceramentos, e alguns deles estavam cheios de vingança e de crueldade. Com efeito, na outra vida os interiores de cada um são postos em liberdade e não mais são retidos pelos externos como eram neste mundo por diferentes causas, porque então cada um é tal qual é interiormente.

« 381. Em alguns (casais) existe uma aparência de amor conjugal, mas a verdade é que, se eles não estão no amor do bem e da verdade, não estão no verdadeiro amor conjugal. Permanecem em tal amor aparente, a fim de serem servidos no lar, sentirem-se sossegados, tranqüilos ou ociosos, protegidos nas doenças ou velhice, ou tendo em vista o interesse comum pelos filhos… O amor conjugal difere também nos esposos: em um pode haver mais ou menos, em outro pouco ou nenhum; em face dessa diferença, pode ser o céu para um deles e o inferno para o outro.

« 382. (Primeiro). O amor conjugal genuíno está no céu íntimo, porque lá os anjos estão no casamento do bem e da verdade, e também na inocência. Os anjos dos céus inferiores também estão no amor conjugal, mas na proporção em que estão na inocência, porque o amor conjugal, considerado em si mesmo, é um estado de inocência. Por isso, entre cônjuges que estão no amor conjugal, há prazeres celestes que, diante de suas almas, são brinquedos inocentes quais e semelhantes aos das crianças, porque tudo é prazer para sua alegria em pois o céu influi com sua alegria em cada coisa de sua vida. É por isso que o amor conjugal é representado no céu pelas formas mais belas. Vi esse amor representado por uma virgem de beleza inexprimível, envolta em uma nuvem de alvura brilhante. Disseram-me que os anjos no céu tiram toda a sua beleza do amor conjugal. As afeições e os pensamentos provenientes desse amor são representados por auras diamantinas que cintilam como carbúnculos e rubis, e isso com deleites que afetam os interiores das mentes. Em uma palavra, o céu integra o amor conjugal, porque o céu nos anjos é a conjunção do bem e da verdade e esta conjunção faz o amor conjugal.

« 382. (Segundo). Os casamentos nos céus diferem dos casamentos nas terras, porque os casamentos nas terras são também para a procriação de filhos, o que não sucede nos céus. Em vez dessa procriação há nos céus uma procriação do bem e da verdade. Essa procriação substitui a outra, porque procede do casamento do bem e da verdade, como acima se mostrou, e porque neste casamento ama-se, acima de tudo, o bem e a verdade e sua conjunção. Assim, pois, os bens e verdades são propagados pelos casamentos nos céus. É dai que, pelas "natividades" e "gerações", na Palavra, são significadas as natividades e as gerações espirituais, que são as do bem e da verdade; por "mãe" e "pai", a verdade conjunta ao bem que procria; pelos "filhos" e "filhas", as verdades e os bens que são procriados; pelos "genros" e "noras", as conjunções dessas verdades e desses bens, e assim por diante. Daí vem que os casamentos nos céus não são como os casamentos nas terras; nos céus há núpcias espirituais que não devem ser chamadas núpcias, mas conjunções das mentes pelo casamento do bem e da verdade. Nas terras, porém, há núpcias, porque elas dizem respeito não somente ao espírito mas também à carne; e, como não núpcias nos céus, cônjuges ali não tem o nome de marido e esposa, mas cada um dos cônjuges, pela idéia Angélica da conjunção de duas mentes em uma só, e chamado por um nome que significa o mútuo do outro e, assim, reciprocamente. Desse modo, se pode saber como devem ser entendidas as palavras do Senhor sobre as núpcias (Lucas 20:35 e 36).

« 383. Foi-me permitido ver também como os casamentos se contraem nos céus. Em toda a parte no céu, os que são semelhantes são consociados, e os que são dessemelhantes são separados; por isso, cada sociedade do céu se compõe de anjos que se assemelham. Os semelhantes vão ter com os semelhantes, não por si próprios, mas pelo Senhor (ver números 41, 43 e 44). Dá-se o mesmo com o esposo e a esposa, cujas mentes podem ser conjuntas em uma só. Por isso, logo que se vêem, eles se amam intimamente, sentem-se como esposo e esposa e entram em casamento; daí é que todos os casamentos no céu vêm do Senhor. Também celebram-se festas, o que é realizado em uma reunião numerosa; as festividades diferem segundo as sociedades.

« 384. Os casamentos na terra, sendo as sementeiras do gênero humano, e os casamentos dos anjos do céu (…) sendo de origem espiritual, isto é, casamentos do bem e da verdade sob a influência do Divino do Senhor, disso resulta que, aos olhos dos anjos do céu, eles são santíssimos. E, em ordem inversa, os adultérios, sendo contrários ao amor conjugal, são considerados pelos anjos como profanos. Pois do mesmo modo que, nos casamentos, os anjos consideram o casamento do bem e da verdade, que é o céu; do mesmo modo, nos adultérios, eles consideram um casamento do falso e do mal, que é, portanto, o inferno. Por isso, quando ouvem pronunciar a palavra adultério, eles se afastam. É também por isso que o céu é fechado ao homem quando ele comete um adultério por prazer; e, quando o céu lhe é fechado, o homem não mais reconhece o Divino nem coisa alguma da fé da igreja. Que todos os que estão no inferno sejam contra o amor conjugal é o que me foi permitido perceber pela esfera que dali se exalava, e que era como um perpétuo esforço para dissolver e violar os casamentos. Por essa esfera pude convencer-me de que o prazer que reina no inferno é o prazer do adultério, e que o prazer do adultério é também o prazer de destruir a conjunção do bem e da verdade, conjunção que faz o céu. Daí resulta que o prazer do adultério é o prazer infernal, diametralmente oposto ao prazer do casamento, que é o prazer celeste.

« 385. Havia certos espíritos que, por um hábito contraído na vida do corpo, infestavam-me com uma habilidade particular, que senti como um influxo brando semelhante ao influxo dos espíritos probos. Mas percebi que havia neles astúcias e outras coisas semelhantes, com o fim de seduzir e enganar. Dirigi a palavra a um deles que havia sido comandante de exército segundo me disseram quando vivia neste mundo. E, como percebi que havia lascívia nas idéias de seu pensamento, conversei com ele a respeito do casamento em uma linguagem espiritual com representativos que exprimiam plenamente os sentimentos… Disse-me ele que, na vida do corpo, tinha considerado os adultérios como coisa nenhuma. Foi-me permitido responder-lhe que os adultérios são abomináveis, ainda que, aos olhos dos que os cometem, pareçam por causa do prazer que eles encontram que não são tais, e até que são lícitos. Eu lhe disse ainda que ele devia também saber que os casamentos são as sementeiras do gênero humano e, por isso mesmo, as sementeiras do reino celeste, não devendo, portanto ser violados, mas sim encarados como santos. Ademais, ele devia saber, por se achar na outra vida e em estado de percepção, que o amor conjugal desce do Senhor pelo céu, e que deste amor, como de um pai, deriva o amor mútuo, que é o fundamento do céu, e, ainda mais, que os adúlteros, por pouco que se aproximem das sociedades celestes, percebem o cheiro infecto que está neles, e se precipitam dali para o inferno. Continuei, dizendo-lhe que, pelo menos, ele teria podido saber que violar os casamentos é agir contra as leis Divinas, contra as leis civis de todos os países e contra a luz real da razão, pois é agir não somente contra a ordem Divina, mas também contra a ordem humana; e outras coisas mais. Ele respondeu-me, porém, que não tinha tido tais pensamentos na vida (…).

« 386. Foi-me mostrado como os prazeres do amor conjugal progridem na ascensão ao céu e como os prazeres do adultério progridem na descida ao inferno. A progressão do amor conjugal para o céu consiste em bem-aventuranças e felicidades continuamente, cada vez mais numerosas, até se tornarem inúmeras e inefáveis. Percebi que eram tanto mais numerosas e inefáveis quanto mais a progressão era interior, de tal sorte que elas alcançavam as bem-aventuranças e as felicidades mesmas do céu interno, ou céu da inocência, em plena liberdade… Mas a progressão do adultério na descida ao inferno se processava por graus até ao inferno mais profundo, onde só havia crueldade e horror. Tal é a sorte que espera os adúlteros depois de sua vida no mundo. Por adúlteros se entendem aqueles que sentem prazer nos adultérios e não encontram prazer algum nos casamentos

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O Céu (e as suas Maravilhas) e o Inferno (Segundo o que foi Ouvido e Visto), de Emanuel Swedenborg.

Para saber mais sobre Emanuel Swedenborg, leia a conferência escrita por Jorge Luis Borges (com notas de minha autoria). Conheça também o depoimento de Immanuel Kant.

Henry Miller fala sobre a verdadeira vitalidade

Henry Miller

« UMA DAS coisas que mais impressionam na América, nesta minha viagem, é que os homens promissores, os homens de alegre sabedoria, os homens que inspiram esperança neste período tão desanimador de nossa história, são ou meninos mal saídos da adolescência ou meninos de setenta anos ou mais.

« Na França, os velhos, principalmente os de origem camponesa, são uma alegria e uma inspiração a se imitar. São como grandes árvores que nenhuma tempestade consegue derrubar; irradiam paz, serenidade e sabedoria. Na América, os velhos são, em geral, uma tristeza, principalmente os bem-sucedidos que prolongam sua existência muito além dos termos naturais por meio de respiração artificial, por assim dizer. São horríveis exemplos vivos da arte do embalsamador, cadáveres semoventes manipulados por um séquito de atendentes muito bem pagos que são uma vergonha para a sua profissão.

« As exceções à regra — e o contraste é abismal — são os artistas, e por artistas quero dizer os criadores, independentemente do seu campo de operação. A maioria deles começou a desenvolver, a revelar sua individualidade depois dos quarenta e cinco anos, idade que a maior parte das empresas industriais deste país fixou como o fim da linha. Deve-se admitir, incidentalmente, claro, que o trabalhador médio, que atuou desde a adolescência como um robô, está pronto para a lixeira nessa idade. E aquilo que é verdadeiro para o robô comum é, em grande parte, verdadeiro para o robô mestre, o chamado capitão da indústria. Só sua riqueza permite que ele alimente e mantenha uma débil e oscilante chama. No que diz respeito à verdadeira vitalidade, depois dos quarenta e cinco anos somos uma nação de destruídos.

« Mas existe uma classe de homens resistentes, antiquados o suficiente para se terem mantido asperamente individuais, abertamente desdenhosos da moda, apaixonadamente dedicados a seu trabalho, imunes ao suborno e à sedução, que trabalham longas horas, muitas vezes sem recompensa ou fama, que são motivados por um impulso comum: a alegria de fazer o que bem entendem. Em algum momento ao longo do trajeto eles se destacaram dos outros. Os homens de que estou falando são identificáveis a um mero olhar: seu rosto registra algo muito mais vital, muito mais eficiente, do que a sede de poder. Eles não procuram dominar, mas realizar-se. Operam a partir de um centro que está em repouso. Evoluem, crescem, alimentam só por serem o que são.

« Essa questão, a relação entre sabedoria e vitalidade, me interessa porque, ao contrário da opinião geral, nunca fui capaz de olhar a América como jovem e vital, mas sim como prematuramente envelhecida, como uma fruta que apodreceu antes de ter a chance de amadurecer. A palavra-chave para descrever o vício nacional é desperdício.
E as pessoas que são esbanjadoras não são sábias nem conseguem se manter jovens e vigorosas. Para transmutar energia a níveis superiores e mais sutis é preciso conservar a energia. O pródigo logo fica esgotado, vítima das próprias forças com as quais brincou tão tola e descuidadamente.

« Até mesmo as máquinas têm de ser manuseadas com perícia para se obter delas o máximo resultado. A menos, como é o caso da América, que sejam produzidas em tais quantidades que possamos jogá-las fora antes que fiquem velhas e inúteis. Mas, quando se trata de jogar fora seres humanos, a história é outra. Seres humanos não podem ser desligados como máquinas. Existe uma curiosa correlação entre fecundidade e lixo. O desejo de procriar parece morrer quando o período de utilidade é fixado na prematura idade de quarenta e cinco anos.

« Poucos são os que conseguem escapar do rolo compressor. Sobreviver apenas, apesar das condições, não confere mérito nenhum. Animais e insetos sobrevivem quando tipos superiores são ameaçados de extinção. Para viver além do declínio, para trabalhar pelo prazer de trabalhar, para envelhecer com graça conservando todas as faculdades, entusiasmos e auto-respeito, é preciso estabelecer valores diferentes daqueles adotados pela massa. É preciso um artista para abrir essa brecha na muralha. Um artista é primordialmente alguém que acredita em si mesmo. Ele não reage aos estímulos normais: não é nem um burro de carga nem um parasita. Vive para se expressar e ao fazê-lo enriquece o mundo.

« O homem em quem estou pensando neste momento, o doutor Marion Souchon, de Nova Orleans, não é nada típico. É, de fato, uma curiosa anomalia e por essa razão muito mais interessante para mim. Hoje um homem de 70 anos, cirurgião famoso e bem-sucedido, começou a pintar seriamente com a idade de 60 anos. E não abandonou a prática médica ao fazê-lo. Cinqüenta anos atrás, quando começou a estudar medicina, seguindo os passos do pai, ele instaurou para si mesmo um regime espartano ao qual se manteve fiel desde então.

« Um regime que, devo dizer, lhe permite fazer o trabalho de três ou quatro homens e continuar cheio de vitalidade e otimismo. É seu costume levantar-se às cinco da manhã, tomar um desjejum leve e ir para a sala de operação, depois para o consultório, onde desenvolve seus deveres de funcionário de uma companhia de seguros, responde à correspondência, atende pacientes, visita hospitais e assim por diante. Na hora do almoço, já realizou o trabalho duro de um dia inteiro. Durante os últimos dez anos tem conseguido encontrar todos os dias um tempinho para dedicar à pintura, para ver a obra de outros pintores, conversar com eles, estudar o seu métier como se fosse um jovem de 2 anos que apenas começou carreira. Ele não sai do consultório para um estúdio — pinta no próprio consultório. No canto de uma salinha forrada de livros e estátuas fica um objeto que parece um instrumento musical coberto. No momento em que se vê sozinho, vai até esse objeto, abre-o, e se põe a trabalhar. Toda a sua parafernália de pintura está contida nessa caixa musical negra de aspecto misterioso.

« Quando a luz enfraquece, ele continua com luz artificial. Às vezes, tem uma hora para passar assim, às vezes quatro ou cinco. É capaz de, sem aviso prévio, sair do cavalete e realizar uma delicada operação cirúrgica. O que não é pouco e, no caso de um artista, um procedimento, no mínimo bastante não-ortodoxo.

« Quando perguntei a ele se não pensava fazer da pintura sua única atividade, sobretudo agora que lhe restavam poucos anos pela frente, ele disse que havia rejeitado a idéia porque "Tenho de ter uma outra ocupação para ser variado o grande prazer de trabalhar sem nunca me cansar." Depois de várias visitas, tive a audácia de reformular a questão. Não me parecia possível que um homem tão apaixonado por sua pintura como ele e que, além disso, estava evidentemente tentando concentrar o trabalho de vinte anos em quatro ou cinco, que um homem assim pudesse não enfrentar algum tipo de problema com essa vida dupla ou múltipla. Se fosse um mau pintor, ou um mau cirurgião. Se fosse um mestre numa coisa e um diletante na outra, eu não teria me dado ao trabalho de continuar com o assunto. Mas ele é, reconhecidamente, um dos grandes cirurgiões do seu tempo e, quanto a sua pintura, não há dúvidas, principalmente na opinião de outros artistas consideráveis, de que se trata de um artista sério cuja obra está se tornando dia a dia mais importante, crescendo a uma velocidade assustadora. Ele acabou me confessando que estava começando a se dar conta de que "essa coisa chamada pintar é algo que agita a alma, mexe com a cabeça, absorve tempo, é absolutamente exigente e monopoliza todo o ser da pessoa e acaba por transcender quaisquer outros interesses." "É", acrescentou reflexivo, "tenho de admitir que isso perturbou o ritmo de minha vida, lançou-me em uma jornada inteiramente nova."

« Era o que eu queria ouvir. Se ele não tivesse admitido isso, eu teria formado uma opinião muito diferente dele. Quanto às razões para continuar com sua outra vida, sinto que não tenho nada a ver com isso.

« "Se tivesse a chance de recomeçar sua vida toda de novo," perguntei, "essa vida seria muito diferente da que conhecemos? Você teria digamos, colocado a arte na frente da medicina?"
"Eu teria feito exatamente a mesma coisa de novo," respondeu sem hesitar nem um momento. "A cirurgia era o meu destino. Meu pai foi um cirurgião notável e um exemplo maravilhoso de sua profissão A cirurgia é ciência e arte combinadas e por essa razão, por ora, satisfaz a minha necessidade de arte."

« Fiquei curioso para saber se a preocupação com a pintura havia aguçado o seu interesse pelos aspectos metafísicos da vida. "Vou responder da seguinte maneira," disse ele. "Uma vez que a vida em todos os seus aspectos humanos foi o trabalho de minha vida, pintar veio a ser apenas uma ampliação dessa esfera. O sucesso que eu possa ter tido como médico, atribuo a meu conhecimento da natureza humana. Tratei a mente das pessoas tanto quanto seus corpos. A pintura, sabe, é muito semelhante à prática da medicina. Embora ambas tratem do físico, a sua maior influência e força é, sem nenhuma dúvida, psíquica. A palavra significa para o paciente a mesma coisa que a linha e a forma para o pintor. É quase incrível como uma mera palavra, um ponto ou uma linha podem moldar e influenciar a vida de um indivíduo. Não é assim?"

« No curso de nossa discussão, fiz uma outra descoberta que confirmou minhas intuições e que foi a seguinte: que desde a infância ele tivera o desejo de pintar e desenhar. Quando tinha seus 21 anos, divertia-se fazendo aquarelas. Depois de um lapso de quase trinta anos, passou a esculpir figuras em barro e madeira. Exemplos dessa última direção estavam espalhados por seu minúsculo escritório, todas de figuras históricas pelas quais havia se fascinado no curso de sua vasta leitura. Era uma outra ilustração de sua paixão e dedicação. Como preparação para um giro pelo mundo ele começara a ler história e biografias. Circunstâncias além do seu controle fizeram com que a viagem fosse abortada, mas os livros nas estantes da parede, que ele leu com ardor e empenho, testemunhavam a paixão com que se atira a tudo.

« Homens assim, pensei comigo, ao sair de seu consultório essa noite, são o que há de mais próximo a sábios e santos no mundo profano. Como esses, eles praticam concentração, meditação e devoção. São absolutamente obsessivos ao se consagrar a uma tarefa; seu trabalho, que é puro e descompromissado, é uma prece, uma oferenda que fazem cada dia ao Criador.

«Só no reino ou no domínio em que operam é que diferem das grandes figuras religiosas.»

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Trecho do livro Pesadelo Refrigerado, de Henry Miller.

Fernão Mendes Pinto conta por que fugiu do Reino de Quedá

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Do que passei até chegar ao reino de Quedá, na costa da terra firme de Malaca, e do que aí me aconteceu

Ao outro dia seguinte pela manhã nos partimos deste ilhéu de Fingau, e corremos a costa do mar Oceano em distância de vinte e seis léguas, até abocar o estreito de Minhagaruu, por onde tínhamos entrado, e passados à contracosta destoutro mar mediterrâneo, seguimos nossa derrota ao longo dela até junto de Pullo Bugay, donde atravessamos a terra firme, e aferrando o porto de Junçalão, corremos com ventos bonanças dois dias e meio, e fomos surgir no rio de Parlés do reino de Quedá, no qual estivemos cinco dias surtos, por nos não servir o vento, e neles o Mouro e eu, por conselho de alguns mercadores da terra fomos ver o Rei, com uma adiá ou presente (como lhe nos cá chamamos) de algumas peças suficientes a nosso propósito, o qual nos recebeu com mostras de bom gasalhado. Neste tempo que aqui chegamos estava el-Rey celebrando com grande aparato e pompa fúnebre de tangeres, bailes, gritas, e de muitos pobres a que dava de comer, as exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com sua mãe, que estava já prenhe dele, e por cuidar as murmurações que sobre este horrendo e nefandissíssimo caso havia no povo, mandou lançar pregão, que sob pena de gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito, por razão do qual, nos disseram aí, que por outro novo modo de tirania tinha já mortos os principais senhores do reino, e outra grande soma de mercadores, cujas fazendas mandou que fossem tomadas para o fisco, o que lhe importou mais de dois contos d’ouro, e com isto era já neste tempo que aqui cheguei, tamanho o medo em todo o povo, que não havia pessoa que ousasse soltar palavra pela boca. E porque este mouro Coja Ale que vinha comigo, era de sua natureza solto da língua, e muito atrevido em falar o que lhe vinha à vontade, parecendo-lhe que por ser estrangeiro, e com nome de feitor do Capitão de Malaca, poderia ter mais liberdade para isto que os naturais, e que o Rei lho não acoimaria a ele como fazia aos seus, sendo um dia convidado doutro Mouro que se dava por seu parente, mercador estrangeiro natural de Patane, parece ser segundo me depois contaram que estando eles no meio do banquete, já bem fartos, vieram os convidados a falar neste feito tão publicamente, que ao Rei, pelas muitas escutas que nisto trazia, lhe deram logo rebate, o qual sabendo o que passava, mandou cercar a casa dos convidados, e tomando-os a todos, que eram dezessete, lhos trouxeram atados. Ele em os vendo, sem lhes guardar mais ordem de justiça, nem os querer ouvir de sua boa ou má razão, os mandou matar a todos com uma morte cruelíssima, a que eles chamam de gregoge, que foi serrarem-os vivos pelos pés, e pelas mãos, e pelos pescoços, e por derradeiro pelos peitos até o fio do lombo, como os eu vi depois a todos. E temendo-se el-Rey que pudesse o Capitão tomar mal mandar-lhe ele matar o seu feitor na volta dos condenados, e que por isso lhe mandasse lançar mão por alguma fazenda sua que lá tinha em Malaca, me mandou logo naquela noite seguinte chamar ao jurupango onde então estava dormindo, sem até aquela hora eu saber alguma coisa do que passava. E chegando eu já depois da meia-noite ao primeiro terreiro das casas, vi nele muita gente armada com terçados, e cofos, e lanças, a qual vista sendo para mim coisa assaz nova, me pôs em muito grande confusão, e suspeitando eu que poderia ser alguma traição das que já em outros tempos nesta terra houve, me quisera logo tornar, o que os que me levavam não consentiram dizendo, que não houvesse medo de coisa que visse, porque aquilo era gente que el-Rey mandava para fora a prender um ladrão, da qual reposta confesso que não fiquei satisfeito, e começando eu já neste tempo a tartamelear, sem poder quase pronunciar palavra que se me entendesse, lhes pedi assim como pude, que me deixassem tornar ao jurupango em busca de umas chaves que me lá ficaram por esquecimento, e que lhes daria por isso quarenta cruzados logo em ouro, a que eles todos sete responderam, nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos, nos mandará el-Rey cortar as cabeças. Neste tempo me cercaram já outros quinze ou vinte daqueles armados, e me tiveram todos fechado no meio: até que a manhã começou a esclarecer, que fizeram saber a el-Rey que estava eu ali, o qual me mandou logo entrar, e só Deus sabe como o pobre de mim então ia, que era mais morto que vivo. E chegando ao outro terreiro de dentro, o achei em cima de um elefante, acompanhado de mais de cem homens, afora a gente da guarda, que era em muito mor quantidade, o qual quando me viu da maneira que vinha, me disse por duas vezes, jangão tacor, não tenhas medo, vem para cá, e saberás o para quê te mandei chamar, e acenando com a mão fez afastar dez ou doze daqueles que ali estavam, e a mim me acenou que olhasse para ali, eu então olhando para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos, todos metidos num charco de sangue, um dos quais conheci que era o mouro Coja Ale feitor do Capitão que eu trouxera comigo, da qual vista fiquei tão pasmado e confuso, que como homem desatinado me arremessei aos pés do elefante em que el-Rey estava, e lhe disse chorando, peço-te senhor que antes me tomes por teu cativo, que mandares-me matar como a esses que aí jazem, porque te juro à lei de Cristão que o não mereço, e lembro-te que sou sobrinho do Capitão de Malaca, que te dará por mim quanto dinheiro quiseres, e aí tens o jurupango com muita fazenda, que também podes tomar se fores servido; a que ele respondeu, valha-me Deus, como? tão mau homem sou eu que isso faça? não hajas medo de coisa nenhuma, assenta-te e descansarás, que bem vejo que estás afrontado, e depois que estiveres mais em ti te direi o porquê mandei matar esse mouro que trouxeste contigo, porque se fora Português, ou Cristão, eu te juro em minha lei que o não fizera, inda que me matara um filho; então me mandou trazer uma panela com água, de que bebi uma grande quantidade, e me mandou também abanar com um abano, em que se gastou mais de uma grande hora. E conhecendo ele então que estava eu já fora do sobressalto, e que podia responder a propósito, me disse, muito bem sei Português que já te diriam como os dias passados matara eu meu pai, o qual fiz porque sabia que me queria ele matar a mim, por mexericos que homens maus lhe fizeram, certificando-lhe que minha mãe era prenhe de mim, coisa que eu nunca imaginei, mas já que com tanta sem razão ele tinha crido isto, e por isso tinha determinado de me dar a morte, quis-lha eu dar primeiro a ele, e sabe Deus quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fui muito bom filho, em tanto, que por minha mãe não ficar como ficam outras muitas viúvas, pobres e desamparadas, a tomei por mulher, e enjeitei outras muitas com que dantes fui cometido, assim em Patane, como em Berdio, Tanauçarim, Siaca, Iambé, e Andraguiré, irmãs e filhas de Reis, com que me puderam dar muito dote. E por cuidar murmurações de maldizentes que falam sem medo quanto lhe vem à boca, mandei lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. E porque esse teu mouro que aí jaz, ontem estando bêbado, em companhia de outros cães tais como ele, disse de mim tantos males que tenho vergonha de tos dizer, dizendo publicamente em altas vozes, que eu era porco, e pior que porco, e minha mãe cadela saída, me foi forçado por minha honra mandar fazer justiça dele, e de estoutros perros tão maus como ele. Pelo que te rogo muito como amigo, que te não pareça mal isto que fiz, porque te afirmo que me magoarás muito nisto, e se por ventura cuidas que o fiz para tomar a fazenda do Capitão de Malaca, crê de mim que nunca tal imaginei, e assim lho podes certificar com verdade, porque assim te juro em minha lei, porque sempre fui muito amigo de Portugueses, e assim o serei enquanto viver. Eu então ficando algum tanto mais desassombrado, conquanto não estava ainda de todo em mim, lhe respondi que sua alteza em mandar matar aquele mouro, fizera muito grande amizade ao Capitão de Malaca seu irmão, porque lhe tinha roubado toda sua fazenda, e a mim por isso já por duas vezes me quisera matar com peçonha, só por lhe eu não poder dizer as embrulhadas que tinha feitas, porque era tão mau perro que continuamente andava bêbado, falando quanto lhe vinha à vontade, como cão que ladrava a quantos via passar pela rua. Desta minha resposta, assim tosca, e sem saber o que dizia, ficou el-Rey tão satisfeito e contente, que chamando-me para junto de si me disse, certo que nessa tua resposta conheço eu seres muito bom homem, e muito meu amigo, porque de o seres te vem não te parecerem mal as minhas coisas, como a esses perros cães que aí jazem, e tirando da cinta um cris que trazia guarnecido douro, mo deu, e uma carta para Pero de Faria de muito ruins desculpas do que tinha feito. E despedindo-me então dele pelo melhor modo que pude, e com lhe dizer que havia ainda ali de estar dez ou doze dias, me vim logo embarcar, e tanto que fui dentro no jurupango, sem esperar mais um momento, larguei a amarra por mão, e me fiz à vela muito depressa, parecendo-me ainda que vinha toda a terra após mim, pelo grande medo, e risco da morte em que me vira havia tão poucas horas.

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Este é o Capítulo XIX do livro Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. (Ortografia atualizada por Yuri Vieira.)

Este texto daria um ótimo filme, ¿não? Como se nota aí acima, o argumento já está prontinho. Aliás, os dois volumes da Peregrinação dariam vários filmes… (Leia mais sobre o livro aqui.)

O socorrista J.-J. Mollaret fala sobre viver e morrer na montanha

Yuri Vieira e Fernando Espinoza no vulcão Cotopaxi, de 5890 metros

« A montanha oferece ao homem uma riqueza inesgotável, desde suas vertentes povoadas de bosques até suas cimeiras nuas.

« Quando subimos pelas duras encostas cheias de árvores até alcançar as primeiras áreas nevadas e as primeiras pedreiras, o ruído do mundo vai se atenuando até desaparecer por completo. Então podemos saborear a primeira satisfação – hoje já rara – do silêncio e da solidão. É um silêncio transbordante de vida; é o ritmo surdo, lento e calmo da terra: a gralha imóvel que se deixa levar pelas correntes de ar, a genciana grande e azul que treme ao solo sob o menor sopro de brisa, a pegada de qualquer animalzinho da montanha impressa na neve recente. É a vida tensa e discreta que se oferece ao olhar admirado pelo preço único de se ter subido ali em cima. Outro prazer é o ato de fé que deixa ver a pegada de Deus na imensidade da criação tal como foi concebida.

« Alguns têm o doloroso privilégio de ser os atores do drama da vida e da morte, de encontrar-se durante uns curtos instantes ou ao longo de várias horas ou de dias intermináveis nesse justo limite extremo, fronteira desconhecida, inalcançável e talvez inexistente. De começar a compreender, tragicamente, o porquê da vida que escapa, de lutar desesperadamente para manter essa chama que vacila, que diminui, que quer se elevar de novo para logo apagar-se. A morte não golpeia somente pelo esgotamento, pelo frio ou pelo traumatismo: alguns morrem, já salvos, apenas por lhes faltar a fé, a esperança, a razão de viver. É nestes que de fato ocorrem o drama e a grande impotência dos salvadores.

« Para as cordadas de resgate são muito escassos os cumes que não possuem recordações trágicas. Quantas penas, quantos riscos para arrancar à montanha um ferido, um montanhista em apuros!

« E quando se arranca com sucesso essa presa da montanha, a alegria já não tem medida: uma vida não tem preço. Na maioria das vezes serão desconhecidos, estrangeiros salvos das garras da morte, que, uma vez deste lado da vida, já não verão mais a seus salvadores; alguns deles voltarão para agradecer com um abraço ou com um aperto de mãos a quem lhes devolveu a vida, mas outros não voltarão. No entanto, a alegria pela vitória sobre a morte não está nesse agradecimento, já que ela é interior, incomunicável até aos mais íntimos. É impossível narrar com toda sua expressão a experiência de vida adquirida ao longo de operações e operações de salvamento e de dramas e de dramas na montanha.»

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Cordadas de Alerta (Au-delà des cimes), de Jean-Jacques Mollaret.

(Traduzido ao português por Yuri Vieira.)

 

Esse era um dos meus livros de cabeceira quando morei no Equador.

Na foto acima, eu e meu amigo, o guia de montanha Fernando Espinoza (ao fundo), durante a escalada do vulcão Cotopaxi (5890 metros), em meio a uma tempestade de neve que nos surpreendeu no descenso.

Sim, eu sei que preciso escrever sobre as montanhas. Mas não tenha pressa. Algumas idéias são exatamente como as montanhas. Embora não as consigamos escalar em determinado momento, por mal tempo ou por outra razão qualquer, não há por que desesperar: elas não sairão do lugar, estarão sempre à espera.

Claude Lévi-Strauss habla de Goiânia y de otras ciudades brasileñas

Claude Lévi-Strauss

« En esas ciudades de síntesis del Brasil meridional, la voluntad secreta y testaruda que se revela en el emplazamiento de las casas, en la especialización de las arterias, en el estilo naciente de los barrios, parecía tanto más significativa cuanto que, contrariándolo, prolongaba el capricho que había dado origen a la empresa. Londrina, Nova-Dantzig, Rolandia y Arapongas — nacidas de la decisión de un equipo de ingenieros y financieros — volvían suavemente a la concreta diversidad de un orden verdadero, como un siglo antes lo había hecho Curitiba, y como quizás hoy lo hace Goiánia.

« Curitiba, capital del Estado de Paraná, apareció en el mapa el día en que el gobierno decidió hacer una ciudad: la tierra que se adquirió a un propietario fue cedida en lotes lo suficientemente baratos como para crear una afluencia de población. El mismo sistema se aplicó más tarde para dotar de una capital — Belo Horizonte — al Estado de Minas. Con Goiánia se arriesgaron aún más, pues el primer objetivo había sido el de fabricar la capital federal del Brasil a partir de la nada.

« Aproximadamente a un tercio de la distancia que separa, a vuelo de pájaro, la costa meridional del curso del Amazonas, se extienden vastas mesetas olvidadas por el hombre desde hace dos siglos. En la época de las caravanas y de la navegación fluvial podían atravesarse en unas semanas para remontarse desde las minas hacia el norte; así se llegaba a la ribera del Araguaia, y por él se bajaba en barca hasta Belém. Único testigo de esta antigua vida provinciana, la pequeña capital del Estado de Goiás, que le dio su nombre, dormía a 1000 kilómetros del litoral, del que se encontraba prácticamente incomunicada. En un paraje rozagante, dominado por la silueta caprichosa de los morros empenachados de palmas, calles de casas bajas descendían por las cuchillas, entre los jardines y las plazas donde los caballos transitaban ante las iglesias de ventanas adornadas, mitad hórreos, mitad casas con campanarios. Columnatas, estucos, frontones recién castigados por la brocha con un baño espumoso como clara de huevo y teñido de crema, de ocre, de azul o de rosa, evocaban el estilo barroco de las pastorales ibéricas. Un río se deslizaba entre malecones musgosos, a veces hundidos bajo el peso de las lianas, de los bananeros y de las palmeras que habían invadido las residencias abandonadas; éstas no parecían marcadas con el signo de la decrepitud; esa vegetación suntuosa agregaba una dignidad callada a sus fachadas deterioradas.

« No sé si hay que deplorar o regocijarse con lo absurdo: la administración había decidido olvidar Goiás, su campiña, sus cuestas y su gracia pasada de moda. Todo ello era demasiado pequeño, demasiado viejo. Se necesitaba una tabla rasa para fundar la gigantesca empresa con la que soñaban. Se la encontró a 100 kilómetros hacia el este, en la forma de una meseta abierta sólo por pasto duro y zarzales espinosos, como azotada por una plaga que hubiera destruido toda fauna y toda vegetación. Ningún ferrocarril, ninguna carretera conducía a ella, sino tan sólo caminos adecuados para los carros. Se trazó en el mapa un cuadrado simbólico de 100 kilómetros de lado, correspondiente a ese territorio, sede del distrito federal, en cuyo centro se levantaría la futura capital. Como no había allí ningún accidente natural que importunara a los arquitectos, éstos pudieron trabajar en el lugar como si lo hubieran hecho sobre planos. El trazado de la ciudad se dibujó en el suelo; se delimitó el contorno y dentro de él se marcaron las diferentes zonas: residencial, administrativa, comercial, industrial y la reservada a las distracciones; éstas son siempre importantes en una ciudad pionera: hacia 1925, Marilia, que nació de una empresa semejante, sobre 600 casas construidas contaba con casi 100 prostíbulos, en su mayoría consagrados a esas francesinhas que con las monjas constituían los dos flancos combatientes de nuestra influencia en el extranjero; el Quay d’Orsay lo sabía muy bien y todavía en 1939 dedicaba una fracción sustancial de sus fondos secretos a la difusión de las revistas “ligeras”. Algunos de mis colegas no me desmentirán si hago recordar que la fundación de la Universidad de Rio Grande do Sul, el Estado más meridional del Brasil, y la preeminencia que allí se dio a los maestros franceses, tuvieron por origen el gusto por nuestra literatura y nuestra libertad que una señorita de virtud ligera inculcó a un futuro dictador, en París, durante su juventud.

« De la noche a la mañana los diarios se llenaron de carteles que ocupaban páginas enteras. Se anunciaba la fundación de la ciudad de Goiánia; en torno de un plano detallado, tal como si la ciudad hubiera sido centenaria, se enumeraban las ventajas que se prometían a los habitantes: vialidad, ferrocarril, derivación de aguas, cloacas y cinematógrafos. Si no me equivoco, al principio, en 1935-1936 hasta hubo un período en que la tierra era ofrecida en primer lugar a los adquisidores que pagaban las costas. Pues los abogados y los especuladores eran los primeros ocupantes.

« Visité Goiánia en 1937. Una llanura sin fin con algo de terreno baldío y de campo de batalla, erizada de postes eléctricos y de estacas de agrimensura, que dejaba ver unas cien casas nuevas dispersas en todas direcciones. La más importante era el hotel, paralelepípedo de cemento que, en medio de semejante llanura, parecía un aeropuerto o un fortín. De buen grado se le hubiera podido aplicar la expresión «baluarte de la civilización» en un sentido no figurado sino directo, que así empleado tomaba un valor singularmente irónico, pues nada podía ser tan bárbaro, tan inhumano, como esa empresa en el desierto. Esa construcción sin gracia era lo contrario de Goiás; ninguna historia, ninguna duración, ninguna costumbre había saturado su vacío o suavizado su dureza; uno se sentía allí como en una estación o en un hospital, siempre pasajero, jamás residente. Sólo el temor a un cataclismo podía justificar esta casamata. En efecto, se había producido uno y su amenaza se veía prolongada en el silencio y la inmovilidad que reinaba. Cadmo, el civilizador, había sembrado los dientes del dragón. Sobre una tierra desollada y quemada por el aliento del monstruo se esperaba que los hombres avanzaran.»

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Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss.

(Traduzido do francês ao espanhol por Noelia Bastard.)

Monteiro Lobato fala sobre os Amigos do Brasil

Monteiro Lobato

Amigos do Brasil! Pois há disso? Há. Houve e há estrangeiros que se apaixonam das nossas coisas, vêm estudá-las e de volta às suas terras dão-se ao sentimentalismo de querer bem ao país onde a primavera e o estado de sítio são eternos.

O saudoso e recém falecido J. C. Branner, reitor da Universidade de Stanford, estudou na mocidade a nossa geologia e de regresso, até o fim da vida, conservou-se um amigo do Brasil. Quando publiquei meu primeiro livro recebi dele uma carta que conservo como prêmio. Discutia a “geringonça”, ou gíria como dizemos hoje, e falava disso com a segurança do homem de ciência para o qual tudo quanto representa criação tem valor.

Na Alemanha tivemos sempre inúmeros amigos, a partir do grande Martius. Hoje também os temos e um deles é o Dr. Frederico Sommer, que se empenha em verter e lá publicar os livros mais característicos da nossa literatura.

Até na França, tão de si própria, temos amigos. Mr. Le Gentil dedica-se a estudos brasileiros e em companhia de M. Gahisto, Martinenche e outros mantém na Revue de l’Amerique Latine uma seção dedicada amorosamente ao Brasil. Não contentes, criaram na Sorbonne um centro de estudos brasileiros e cuidam agora de constituir uma biblioteca de livros brasileiros. Tudo isto sem subvenções, à custa de enormes esforços e ao arrepio da nossa muçulmana indiferença. (Aviso aos autores de livros: essa biblioteca da Sorbonne aceita com grande prazer e pede a remessa de obras nacionais para lá, sobretudo as científicas. Endereço: Mr. Le Gentil, Centro de estudos portugueses, Sorbonne, Paris).

Outro, de nome menos conhecido entre nós, é Mr. Jean Turiau (Boulevard Murat, 29, XVIme). Já residiu no Brasil, conhece as nossas coisas e as rememora com saudades. O Brasil é uma coisa deliciosa vista assim de longe. Um meu amigo, grande patriota, dizia sempre: — Meu ideal é a diplomacia. Viver do Brasil mas longe dele, de modo a sentir sempre doces saudades da pátria, que delícia!

Mas Turiau quer bem a isto aqui e gostos não se discutem. Trabalha em traduções e vai tornando conhecida em França a nossa esfarrapada literatura. Na última carta que me escreveu lamenta-se da sua situação de funcionário público, como toda gente em França, situação que lhe não permite adquirir obras sobre o Brasil. E chora por uma Rondônia, por uma História do Brasil, de Rocha Pombo, trop chère… (Aviso aos srs. Roquette Pinto e a Rocha Pombo: não percam a oportunidade de um tal leitor. Nada há mais raro e que mais honre a um escritor do que um bom leitor).

A interpenetração literária é o que há de mais profícuo na aproximação dos povos. Só ela suprime as muralhas que a estupidez dos governos ergue. Só ela demonstra que somos todos irmãos no mundo, com as mesmas vísceras, os mesmos defeitos, os mesmos ideais. Se a França tornou-se amada entre nós a ponto de bombardear Damasco e esmagar Abd-el-Krim sem que isso nos arrepie as fibras da indignação, deve-o aos senhores Perrault, Lafontaine, Hugo, Maupassant, Taine, Anatole e quantos mais nos trouxeram para aqui esta sensação da irmandade do homem. Se a Alemanha não se gozou de idênticas simpatias é que víamos os atos de violência dos seus homens de governo e não havia dentro de nós, para atenuar-lhes a repercussão, o coxim de veludo da literatura alemã bem absorvida como temos a francesa.

Grande serviço, pois, prestam aos povos esses homens beneméritos que trabalham na difusão da literatura alheia em seus próprios países. Estão a preparar os preciosos coxins de veludo, amortecedores dos choques. Criam a compreensão e a tolerância. Demonstram, com a exibição de documentos humanos, que somos iguais, todos filhos do mesmo macaco que rachou a cabeça ao cair do pau.

Mas o nosso descaso é imenso. Nenhuma livraria do Rio, por exemplo, tem à venda essa revista da América Latina. Por que? Não há procura. Estupidificados pelo estado de sítio crônico, parece que um desalento nos ganhou a todos, um desânimo de tudo, indiferença de chim.

Se alguma coisa valesse alguma coisa nesta terra: eis a frase com que um jornalista traduz tal estado d’alma. Frase horrível, reflexo do desespero do desânimo, e, no entanto, lógica, sempre que um povo perde a sua liberdade e tomba no boçalismo da escravidão. Mas tudo passa. Depois da noite vem o dia. Depois da Idade Média vêm os 89. Tolice é desesperar. Esperemos, e enquanto esperamos não contaminemos com o nosso desalento de escravos os abnegados pioneiros das nossas letras em França. É noite? Não importa. Também de noite se trabalha e não há trabalho mais abençoado do que o que se faz dentro da noite para apressar a vinda do dia claro. E é trabalhar para um dia melhor meter mãos à obra da difusão literária.

Os morcegos passam e os livros ficam.

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Na Antevéspera, de Monteiro Lobato.

Ray Bradbury, o contribuinte e a viagem a Marte

Ray Bradbury

   Março de 2000: O contribuinte

Ele queria ir a Marte no foguete. Foi até o campo de foguetes de manhã cedo e gritou através da cerca de arame, para os homens fardados, que queria ir a Marte. Disse-lhes que era um contribuinte, chamava-se Pritchard e tinha todo o direito de ir a Marte. Não havia nascido ali em Ohio? Não era um cidadão cumpridor de seus deveres? Então por que não podia ir a Marte? Sacudiu o punho cerrado na direção deles e disse-lhes que queria ir embora da Terra, que qualquer pessoa com a cabeça no lugar queria ir embora da Terra. Dentro de dois anos iria ser desencadeada uma enorme guerra atômica na Terra e ele não queria estar ali quando isso acontecesse. Ele e milhares de outros como ele, se tivessem bom senso, quereriam ir para Marte. Pergunte-lhes se não quereriam! Ficar longe de guerras, censuras, estatizações, conscrição, controle governamental disto e daquilo, da arte e da ciência! Vocês podem ficar com a Terra! Estava lhes oferecendo sua mão direita, seu coração, sua cabeça, pela oportunidade de ir para Marte! Que se devia fazer, que se devia assinar, que se devia saber para embarcar no foguete?
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As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury.

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