palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Valentin Tomberg fala sobre o arcano “Os Amantes / Os Enamorados”

Os Amantes

Caro Amigo Desconhecido,

Eis como se compõe a sexta lâmina, transposta inteiramente da linguagem visual do Tarô para a da poesia de Salomão. Porque na lâmina uma mulher de cabelos pretos, vestido vermelho e modos impudentes agarra um adolescente pelo ombro, enquanto outra, de cabelos louros e manto azul, com gesto casto de sua mão esquerda faz apelo ao seu coração; enquanto isso, do alto, um menino arqueiro, alado, destacando-se de bola branca que emite chamas vermelhas, amarelas e azuis, está prestes a lançar flecha ao outro ombro do adolescente. Contemplando-se a VI lâmina do Tarô, não se ouve voz dizer: “Eu te encontrei”? e outra: “Aquele que me procura me encontra”? Não se reconhecem a voz da sensualidade, a voz do coração e a flecha de fogo do alto, da qual fala o rei Salomão?

O tema central do sexto Arcano é, pois, o da prática do voto de Castidade, como o quinto Arcano tinha por tema de base a Pobreza, e o quarto, a Obediência. O sexto Arcano é, ao mesmo tempo, o resumo dos dois arcanos precedentes, sendo a Castidade fruto da Obediência e da Pobreza. Ele resume os três “votos” ou métodos de disciplina espiritual, confrontando-os com as três provas ou tentações opostas a esses votos. A escolha diante da qual o adolescente do sexto Arcano se acha é de alcance maior do que entre o vício e a virtude. Aqui se trata da escolha entre a via da Obediência, da Pobreza e da Castidade, de um lado, e a via do Poder, da Riqueza e da Luxúria, do outro. O ensinamento prático do Arcano “Os Amantes” trata dos três votos e das três tentações correspondentes, porque é essa a doutrina prática do Hexagrama ou Senário.

Na sua essência, os três votos são recordações do Paraíso, no qual o homem estava unido a Deus (Obediência), no qual tinha tudo ao mesmo tempo (Pobreza) e no qual sua companheira era também sua mulher, sua amiga, sua irmã e sua mãe (Castidade). Porque a presença real de Deus acarreta necessariamente a ação de prostrar-se diante Daquele “que é mais eu do que eu mesmo” — e aqui está a raiz e a fonte do voto de Obediência; a visão das forças, substâncias e essências do mundo na forma de jardim dos símbolos divinos ou Éden significa a posse de tudo sem escolher, sem pegar, sem apropriar-se de alguma coisa particular, isolada do todo — e aqui está a raiz e a fonte do voto de Pobreza; enfim a comunhão total entre o Único e a Única, que abrange a escala de todas as relações possíveis do espírito, da alma e do corpo entre dois seres polarizados, comporta necessariamente a integralidade absoluta do ser espiritual, anímico e corporal no amor — e aqui se encontra a raiz e a fonte do voto de Castidade.

Só é casto quem ama a totalidade do seu ser. A castidade é a integralidade do ser não na indiferença, mas no amor, que é “forte como a morte e cujas flechas são flechas de fogo, a chama do Eterno”. É a unidade vivida. São três, espírito, alma e corpo, que são um, e outros três, espírito, alma e corpo, que são um — três mais três fazem seis, e seis são dois, e dois são um.

Tal é a fórmula da Castidade no amor. É a fórmula de Adão-Eva. Ela é o princípio da Castidade, a recordação viva do Paraíso.

E o celibato do monge e da religiosa? Como se aplica a eles a fórmula da Castidade “Adão-Eva”?

O amor é forte como a morte, isto é, a morte não o destrói. Ela não pode fazer esquecer, nem fazer cessar de esperar. Aqueles dentre nós, almas humanas, que trazem em si a chama da recordação do Éden não podem esquecê-lo nem cessar de esperá-lo. E se essas almas vêm ao mundo com a marca dessa recordação e, ainda, com a marca de saber que seu encontro com Outro não se dará nesta vida, viverão a vida presente como viúvas, enquanto recordam, e como noivas, enquanto esperam. Ora, no fundo de seu coração, todos os verdadeiros monges são viúvos e noivos, e todas as verdadeiras religiosas são viúvas e noivas. O verdadeiro celibato dá testemunho da eternidade do amor como o milagre do verdadeiro matrimônio dá testemunho de sua realidade.

Ora, caro Amigo Desconhecido, a vida é profunda, e a sua profundeza é como um abismo sem fundo. Nietzsche sentiu isso e o exprimiu em seu Nachtlied:

O Mensch, gib acht,
Was spricht die tiefe Mitternacht —
Ich schlief, ich schlief — aus tiefem Traum bin ich erwacht.
Die Welt ist tief, noch tiefer als der Tag gedacht,
Tief ist ihr Weh,
Die Lust — noch tiefer als das Herzelied —
Weh spricht — Vergeh,
Doch alle Lust will Ewigkeit, will tiefe, tiefe Ewigkeit.”

_________

Ó homem, presta atenção,
Ao que diz a profunda meia-noite —
Eu dormi, dormi — acordei-me de sonho profundo.
O mundo é pensado profundamente, mais profundamente do que o dia,
Profunda é a sua dor,
O prazer é ainda mais profundo do que a canção do coração!
A dor diz: passa,
Mas todo prazer quer a eternidade, a profunda, profunda eternidade.”

Assim é a mesma flecha — “a flecha de fogo da chama do Eterno” — que é a causa tanto do verdadeiro matrimônio como do verdadeiro celibato. O coração do monge está atravessado por ela — por isso ele é monge — como o está o coração do noivo nas vésperas das núpcias. Onde há mais verdade e mais beleza? Quem poderá dizê-lo?

E a caridade, o amor do próximo? Qual é sua relação com o amor, cujo protótipo é dado pela fórmula “Adão-Eva”?

Estamos cercados de inúmeros seres vivos e conscientes, visíveis e invisíveis. Embora saibamos que eles existam realmente e que são tão vivos como nós, parece-nos que eles existem menos realmente e que são menos vivos do que nós. Para nós, na percepção intensa da realidade, nós é que vivemos, enquanto os outros seres, em comparação conosco, parecem-nos menos reais; a sua existência tem mais da natureza de uma sombra do que da realidade completa. O nosso pensamento nos diz que é uma ilusão, que os seres fora de nós são tão reais como nós e que vivem tão intensamente como nós; mas é inútil, porque, apesar disso, nós nos sentimos no centro da realidade e vemos os outros seres como que afastados desse centro. Qualifique-se essa ilusão de “egocentrismo”, de “egoísmo” ou de ahamkara (“ilusão do eu”) ou de “efeito da queda primordial”, nada disso tem importância, uma vez que nem por isso ela cessa de nos fazer sentir-nos como mais reais do que os outros.

Ora, sentir alguma coisa como plenamente real é amar. É o amor que nos desperta para a realidade de nós mesmos, para a realidade do outro, para a realidade do mundo — e para a realidade de Deus. Nós nos amamos, sentindo-nos reais. E não amamos — ou não amamos tanto quanto a nós — os outros seres que nos parecem menos reais.

Ora, duas vias, dois métodos bem diferentes podem libertar-nos da ilusão do “eu vivo — tu sombra”, e a escolha cabe a nós. Uma consiste em extinguir o amor a si mesmo e em tornar-se “uma sombra entre as sombras”; é a igualdade na indiferença. A Índia nos oferece esse método da libertação da ahamkara, da ilusão do eu. Essa diferença é destruída quando alguém aplica a si mesmo a indiferença que tem pelos outros. Assim ele se reduz ao estado de sombra como as outras sombras que o cercam. Maya, a grande ilusão, consiste em acreditar que os seres individuais, eu e tu, seriam alguma coisa mais do que sombras, aparências sem realidade. A fórmula a realizar-se é, pois, eu sombra — tu sombra.

A outra via ou método consiste em alguém estender aos outros o amor que tem a si mesmo, a fim de realizar a fórmula: eu vivo — tu vivo. Trata-se de tornar os outros seres tão reais como ele, isto é, de amá-los como a si mesmo. Para isso, é necessário, em primeiro lugar, amar o próximo como a si mesmo. Porque o amor não é um programa abstrato, mas substância e intensidade. Por isso ele precisa jorrar como tal na direção de um ser individual, a fim de que possa começar a irradiar-se em todas as direções. “Para fazer ouro é necessário ter ouro”, dizem os alquimistas. O equivalente espiritual dessa máxima é que para se amar a todos é necessário amar alguém, isto é, o próximo.

Quem é o próximo, no sentido hermético, isto é, nos sentidos místico, gnóstico, mágico e metafísico ao mesmo tempo? É o ser mais próximo desde o começo, a alma-irmã desde toda a eternidade, a alma gêmea da minha que contemplou a aurora da humanidade.

A aurora da humanidade é o que a Bíblia descreve como Paraíso. Ora, foi nesse estádio do ser que Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18).

Ser é amar. Estar só é amar a si mesmo. Ora, “não é bom (tov) que Adão esteja só” significa: não é bom que o homem ame só a si mesmo. Foi por isso que IHVH Elohim disse: Vou fazer-lhe uma auxiliar semelhante a ele (´ezer kenegedo, “auxiliar semelhante a ele”). E como Eva era uma parte dele, Adão a amou como a si mesmo. Eva foi, pois, o “próximo”, o ser mais próximo (“osso de meus ossos e carne de minha carne”) de Adão.

Eis a origem do amor; ela é comum ao amor que une o homem e a mulher e ao amor do próximo. No começo havia um só amor, e a sua fonte era uma só, como o seu princípio era um apenas.

Todas as formas de amor (caridade, amizade, amor paterno, amor materno, amor filial, amor fraternal) procedem da mesma raiz única e primordial do casal Adão-Eva. Porque foi então que o amor — a realidade  do Outro — brotou e pôde depois manifestar-se e diversificar-se. É o calor do amor do primeiro casal (e pouco importa que fosse um só ou milhares de casais — trata-se do primeiro jorro qualitativo do amor, e não da quantidade de casos simultâneos ou sucessivos desse jorro) que se reflete no amor dos pais aos filhos, refletido, por sua vez, no amor dos filhos aos pais, refletido ainda no amor dos filhos entre eles, refletido enfim no amor a todo o parentesco dos seres humanos e, além do parentesco imediato, por analogia, no amor a tudo o que vive e respira… Uma vez surgido como substância e intensidade, o amor tende a difundir-se ramificando-se e diversificando-se segundo as formas de relações humanas nas quais ele entra. É uma corrente em cascatas que tende a tudo encher e a tudo inundar. Por isso, quando existe amor verdadeiro entre os pais, os filhos amarão, por analogia, os pais e se amarão mutuamente; amarão, por analogia — como irmãos e irmãs seus “por adoção” psicológica — seus amigos na escola e na vizinhança; amarão, sempre por analogia, seus mestres, preceptores, sacerdotes etc., levados pelo reflexo do amor que têm a seus pais — e mais tarde amarão suas esposas e seus esposos como seus pais se amavam outrora.

Tudo isso é claramente o inverso da doutrina pansexual de Sigmund Freud. Porque em Freud é a “libido” ou o desejo sexual que é a base de toda atividade psicológica humana e que constitui a sua energia motora, a qual — mediante a “sublimação” ou direção por canais diferentes da satisfação do desejo sexual — torna-se a força criadora social, artística, científica e religiosa. Mas o amor inteiro, entendido no sentido da fórmula “Adão-Eva”, está para o desejo sexual como a luz branca contendo as sete cores está para a luz vermelha. O Amor “Adão-Eva” compreende toda a escala das cores não diferenciadas, enquanto a “libido” de Freud é apenas uma cor isolada e separada do todo. O todo é o princípio de Castidade, e a separação do todo é exatamente o inverso da Castidade, é o princípio da impudicícia. Porque a impudicícia é a autonomia do desejo carnal, o que prejudica a integridade do ser humano espiritual, anímico e corporal. O desejo sexual é apenas um aspecto do amor — o aspecto refletido pela parte do organismo físico e psíquico que é o domínio especial do lótus de quatro pétalas — e que constitui somente a sétima parte do organismo físico-psíquico humano. Além do desejo sexual existem, pois, seis aspectos, cujo alcance não é menor e cuja doutrina Freud ignora ou cuja existência nega.

Como Karl Marx, impressionado pela verdade parcial, reduzida à sua base simples, segundo a qual é preciso comer para se poder pensar, elevou o interesse econômico a princípio do homem e da história humana, Sigmund Freud, impressionado pela verdade parcial, segundo a qual é preciso primeiro nascer para se poder comer e pensar e para nascer é necessário o desejo sexual, elevou este último a princípio do homem e de toda a cultura humana. Como Marx via na base do homo sapiens o homo oeconomicus, Freud viu na base do  homo sapiens o homo sexualis, o “homem sexual”.

Alfred Adler não podia seguir seu mestre na atribuição da primazia absoluta ao sexo, a experiência contradizendo em muitas ocasiões essa doutrina. Por isso esse fundador da escola da psicologia das profundezas (Tiefenpsychologie) foi levado a descobrir que é a vontade-de-poder que desempenha o papel preponderante no fundo do ser humano. Adler propõe então a doutrina do homo potestatis, do homem movido pela vontade-de-poder em lugar do homo sapiens da ciência do século XVIII, do homo oeconomicus de Marx e do homo sexualis de Freud.

Mas Carl Gustav Jung, embora admitindo a verdade parcial das doutrinas de Freud e de Adler, foi levado pela experiência clínica à descoberta de uma camada psíquica mais profunda que as estudadas por Freud e Adler. Ele teve de admitir a realidade de uma camada religiosa, que jaz na profundeza maior do que as camadas do sexo e da vontade-de-poder. Assim, graças as trabalho de Jung, o homem é, no fundo, homo religiosus, um ser “religioso”, embora seja também uma entidade econômica, uma entidade sexual e uma entidade que aspira ao poder.

Ora, Carl Gustav Jung restabeleceu o princípio da Castidade no domínio da psicologia, sendo as outras escolas psicológicas mencionadas contrárias à Castidade, uma vez que destroem a unidade dos elementos espirituais, anímico e corporal do ser humano. Ele descobriu o sopro divino no fundo do ser humano.

A obra de Jung comporta também a inauguração de novo método no domínio da psicologia. É o método da exploração sucessiva das camadas psíquicas correspondentes às camadas da arqueologia, da paleontologia e da geologia. E como a arqueologia, a paleontologia e a geologia vêem as camadas que estudam como os arquivos do passado, como o tempo tornado espaço, também a psicologia das profundezas, da escola de Jung, trata as camadas psíquicas como o passado vivo da alma, um passado tanto mais recuado quanto mais profunda a camada. A medida da profundeza é, ao mesmo tempo, a da história do passado da alma, indo muito além do limiar do nascimento. Pode-se perguntar se essas camadas são coletivas ou individuais, se a sua sobrevivência se deve à hereditariedade ou à reencarnação — mas não se pode mais negar a realidade delas nem seu valor de chave da “história psíquica” do homem e da humanidade. Mais ainda: não se pode mais negar o fato de que, no domínio psíquico, nada morre e de que o passado todo vive no presente, nas diferentes camadas da consciência profunda — “o inconsciente” ou a subconsciência — da alma. Porque se as camadas paleontológicas e geológicas só contêm as impressões e os fósseis do passado morto — as camadas psíquicas constituem um testemunho vivo do passado vivido. Elas são o passado que continua a viver, a memória — não intelectual, mas psiquicamente substancial — do passado vivido. Por isso, nada perece e nada se perde no domínio psíquico: a história essencial, isto é, as alegrias e os sofrimentos reais, as religiões e as revelações reais do passado continuam a viver em nós, e em nós é que se encontra a chave da história essencial da humanidade.

Ora, é em nós que se encontra também a camada “edênica” ou a história do Paraíso e da Queda, cuja narração está no livro do Gênesis de Moisés. Duvidais da verdade essencial dessa narração? Descei às profundezas de vossa alma, descei até as raízes, até as fontes do sentimento, da vontade e da inteligência e sabereis. Sabereis, isto é, tereis a certeza de que a narração bíblica é verdadeira no sentido mais profundo e mais autêntico do termo — no sentido de que, para poderdes duvidar da verdade intrínseca da narração de Moisés, deveríeis negar a vós mesmos e o testemunho da estrutura interior de vossa alma. A descida às profundezas de vossa alma, meditando na narração do Paraíso do Gênesis, eliminará toda possibilidade de dúvida. Eis a natureza da certeza que ela proporciona.

Mas, é evidente, não se trata de certeza quanto ao jardim, às suas árvores, à serpente ou ao fruto proibido, mas quanto às realidades vitais, psíquicas e espirituais que essas imagens ou símbolos revelam. Não é a linguagem simbólica da narração que dá a certeza de sua verdade, mas o que ela exprime.

Em linguagem simbólica ela exprime a primeira camada — primeira no sentido de “raiz de tudo o que é humano na natureza humana” — da vida psíquica humana ou de seu “começo”. Ora, o conhecimento do começo, initium em latim, é a essência da iniciação. A iniciação é a experiência consciente do estado inicial microcósmico (iniciação hermética) e macrocósmica (iniciação pitagórica). A primeira é uma descida consciente às profundezas do ser humano até sua camada inicial. O seu método é o ênstase, isto é, a experiência das profundezas de base dentro de si mesmo. O homem se torna cada vez mais profundo até despertar em si a camada primordial — ou “a imagem e a semelhança de Deus” — o que é o objetivo da ênstase. A experiência do ênstase se dá principalmente por meio do sentido do “tato espiritual”. Ela pode ser comparada com a experiência química sentida no plano psíquico e espiritual.

A segunda experiência iniciática — que denominamos como “pitagórica”, do ponto de vista histórico — baseia-se sobretudo no sentido da “audição ou do ouvido espiritual”. Ela é essencialmente musical, como a primeira é substancial ou química. É pelo êxtase — ou arrebatamento ou saída fora de si mesmo — que as “camadas” (“esferas” ou “céus”) macrocósmicas se revelam à consciência. A “música das esferas” de Pitágoras foi essa experiência e foi também a fonte da doutrina pitagórica da estrutura musical e matemática do macrocosmo. Porque os sons, os números e as formas geométricas constituíam três espaços para a visualização da experiência inefável da “música das esferas”.

Foi do ponto de vista histórico que falamos da iniciação macrocósmica pelo êxtase “pitagórico”. Porque ela não é prerrogativa da época anterior ao Cristianismo. Eis o que diz o apóstolo Paulo sobre sua experiência extática das “esferas” ou dos “céus”:

Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu (se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe). E sei que esse homem (se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado até o Paraíso e ‘ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir’ — (et audivit arcana verba, quae non licet homini loqui — kai ékousen arrete rêmata, ha ouk exon anthropô lalêsai)” (2Cor 12,2-4).

São Paulo foi, pois, arrebatado até o terceiro céu ou até a terceira esfera macrocósmica e, em seguida, até o Paraíso, onde ouviu palavras inefáveis… A sua iniciação macrocósmica pelo êxtase se verificou, portanto, na esfera do Paraíso, cujo objetivo é a experiência consciente — “e ouviu palavras inefáveis” — a qual é o objeto também da iniciação pelo ênstase, no qual ela tem o caráter de experiência da camada primordial no fundo do ser humano do microcosmo. A esfera macrocósmica do Paraíso e a camada microcósmica do Éden são os initia, os “começos” nos quais o homem é iniciado pela iniciação tanto microcósmica quanto macrocósmica. O êxtase nas alturas fora de si e o ênstase nas profundezas dentro de si conduzem ao conhecimento da mesma verdade fundamental.

O esoterismo cristão une esses dois métodos iniciáticos. O Mestre tem dois grupos de discípulos — “os discípulos do dia” e os “discípulos da noite”, sendo os primeiros os discípulos da via do ênstase, e os segundos, os da via do êxtase. Há ainda um terceiro grupo de discípulos, os “de dia e de noite”, isto é, o dos que possuem as chaves das duas portas ao mesmo tempo — da porta do êxtase e da do ênstase. Assim, o apóstolo João, o autor do Evangelho do Verbo feito Carne, era, ao mesmo tempo, aquele que ouvia o coração do Mestre. Ele tinha as duas experiências, a macrocósmica e a microcósmica, do Verbo cósmico e do Sagrado Coração, cuja ladainha diz: “Cor Jesu, rex et centrum omnium cordium”. Graças a essas duas experiências, o Evangelho que ele escreveu é, ao mesmo tempo, tão cósmico e tão humanamente íntimo, tão alto e tão profundo. Nele estão unidas a esfera solar macrocósmica e a camada solar microcósmica, o que explica sua singular magia.

Porque a realidade do Paraíso é a união da esfera solar macrocósmica e da camada solar microcósmica — da esfera do coração cósmico e do fundo solar do coração humano. A iniciação cristã é a experiência consciente do coração do mundo e da natureza solar do homem. Neles Deus Homem  é o Iniciador, e não há outro.

O que subentendemos atrás do termo “Iniciador”, os antigos cristãos o subentendiam atrás do termo Kyrios, “Dominus” ou “Senhor”. Por isso o esoterismo ou o hermetismo cristão adere com sinceridade absoluta — hoje como no passado — às palavras di Credo recitadas pela Igreja:

Et in unum Dominum Jesum Christum,
Filium Dei unigenitum.
Et ex Patre natum ante omnia saecula.
Deum de Deo, lumen de lumine,
Deum verum de Deo vero.
Genitum, non factum, consubstantialem Patri:
Per quem omnia facta sunt.
Qui propter nos homines,
et propter nostram salutem descendit de coelis,
Et incarnatus est de Spiritu Sancto
ex Maria Virgine: et homo factus est.”

(…)

______

Trecho inicial do capítulo VI do livro "Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô", de Valentin Tomberg (escrito em 1967 e publicado anonimamente em 1984). A apresentação é do teólogo Hans Urs von Balthasar. Este livro não pode ficar de fora da sua biblioteca.

A propósito: li recentemente um ótimo artigo do Wolfgang Smith com uma crítica certeira à obra de Jung — ao contrário do que faz aí acima o Tomberg (apesar deste não se aprofundar muito, o que lhe permitiu usar o psicólogo suíço num sentido positivo) —, mas não consigo encontrar o tal texto em lugar algum!! Tenho o ebook, mas também o vi na internet meses atrás. Caso alguém queira procurá-lo, o título é "Deificação do Inconsciente".

E feliz dia de San Valentín!

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2 Comments

  1. Outra coisa: no livro “Paulo e Estevão”, de Chico Xavier (um romance excelente), fica muito clara a origem da castidade de Paulo de Tarso, o noivo que se tornou viúvo…

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