palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Psicologia Page 2 of 7

Amor e tempo


Carl Sagan e Ann Druyan

Aos dezesseis anos de idade, li maravilhado o livro “Cosmos”, do astrofísico Carl Sagan. Apesar de realmente ter assimilado todas aquelas informações científicas — eu era um nerd que tirava dez sobre dez nas provas de física — um dos trechos que mais me impressionaram, e de que jamais me esqueci, foi a dedicatória à sua esposa: “Para Ann Druyan — Diante da vastidão do espaço e da imensidade do tempo, é uma alegria compartilhar um planeta e uma época com Annie”. Um cientista romântico!, pensei então. Quantas vezes ouvimos no colégio que um cientista também pode ser um romântico? E quantos cientistas usam e abusam de epígrafes retiradas de livros sagrados ou de relatos mitológicos? Carl Sagan, com seu tom agnóstico e sentimental, conquistou minha simpatia e minha admiração naquela época. E também me lembro de que, enquanto lia seu livro, imaginava a voz de seu dublador brasileiro da série Cosmos a falar em minha cabeça. E essa imagem, de amar uma determinada mulher em meio ao sem-fim de mulheres possíveis, colou-se na minha imaginação: seria realmente possível? Como o tempo e o espaço condicionariam um tal amor?

Dez ou doze anos mais tarde, vencido pela insistência de alguns amigos, li “Paulo e Estevão”, uma biografia romanceada de São Paulo cujo verdadeiro autor não me interessa: Chico Xavier? Seu mentor Emmanuel? E daí? O livro é excelente e, centrado na trama e nos personagens, não se perde em doutrinação ou apologia espíritas. A despeito de possíveis incongruências históricas, trata-se duma obra literária honesta, ponto. Ninguém seria capaz de desmerecer as tragédias e dramas históricos de Shakespeare por conta de seus remendos. A falta de dados e a necessária consistência estética assim o exigem! Ninguém, em sã consciência, tampouco acusaria Shakespeare de apologia ao espiritismo por conta do fantasma do pai de Hamlet. Enfim, a que pese a moral e os costumes judáicos, a maneira como o romance de Chico Xavier justifica a postura pessoal de Paulo diante da castidade, defendida por ele em suas epístolas, é artisticamente verossímil. Saulo (Paulo) teria ficado noivo de Abigail, irmã de Jesiel — mais tarde batizado por São Pedro como Estevão —, sem conhecer essa ligação familiar. A própria Abigail só teria reconhecido o irmão, supostamente prisioneiro das galés no Mediterrâneo, no rosto do grande inimigo de seu noivo caçador de cristãos no dia da execução de Estevão. Quando Saulo se dá conta de que havia condenado à morte o irmão da mulher amada, o mesmo homem que a ela o futuro apóstolo jurara resgatar nos confins do mundo, cai numa tremenda crise. Incapaz de encarar a noiva, afasta-se. Nesse ínterim, ela adoece e morre. Quando Saulo decide que ainda a quer, é tarde demais, o tempo o venceu. Ele, que já odiava os cristãos por serem uma ameaça ao judaísmo, passa a odiá-los como aqueles que também arruinaram sua vida pessoal. O resto é história.

Nas epístolas — perdão, não sou desses que memorizam capítulos e versículos —, Paulo discorre sobre a castidade como sendo análoga à espera tranqüilamente suportada pelo noivo e pelo viúvo. Ambos se guardam enquanto o tempo os afasta do anelado reencontro. Já o hermetista cristão Valentin Tomberg ressalta que a castidade não é uma fuga ao sexo ou ao matrimônio: é, sim, vencer em seu próprio interior a “pulsão de caça ao outro” e, por isso, mesmo uma pessoa casada e sexualmente ativa deve ser casta. A castidade é, pois, paciência, aceitação e amor. A castidade é inimiga da pressa e não deve se deixar enganar pelo tempo.

O dado mais interessante da vida no espaço-tempo é que, conforme essa vida transcorre, o tempo se contrai. Na infância, o tempo tem a dimensão da eternidade, amplo como o mundo. Mesmo um homem de 90 anos de idade confirmará que seus doze primeiros anos correspondem, no fundo, à metade da sua vida. Para uma criança, a espera de um mês é uma longa espera. E tal impressão não se desvanece de uma hora para outra. Aqueles primeiros anos de eternidade relativa permanecem na mente de todo adulto. Uma paixonite infantil pode condicionar, em geral de modo inconsciente, centenas de paixões da maturidade: uma mulher com o mesmo olhar daquela coleguinha de escola, o mesmo sorriso, os mesmos lábios fartos constantemente entreabertos… Enfim, conforme os anos passam, contraem-se, e um ano torna-se uma medida diferente para quem tem quarenta anos de idade e para quem tem vinte. Se uma pessoa de quarenta anos permanece cinco anos sem falar com alguém, é como se tivessem conversado ontem. Para alguém de vinte e poucos anos, ficar sem contato com alguém por cinco anos é como ter permanecido distante por uma eternidade, afinal, cinco anos correspondem a 25% do seu tempo de vida. (E, por isso, homens maduros, se vocês prometerem a uma moça que irão lhe telefonar, telefonem em até duas semanas e não depois de seis meses!)

O tempo, portanto, pode ser um vilão para pessoas apressadas que, apesar da grande diferença de idade, apaixonam-se uma pela outra. Outro dia, meu pai me mostrou no YouTube uma música que, enterrada no subsolo da minha mente, causou-me comoção: “Non ho l’età”, interpretada por Gigliola Cinquetti. A melodia me trouxe aquela dura nostalgia da infância. Foi como me ver novamente aos pés da minha mãe enquanto ela ouvia ao rádio e trabalhava ou na cozinha ou em seus quadros. Mas da letra da música, em italiano, eu não sabia absolutamente nada, não fazia idéia… E essa letra me trouxe outra dura nostalgia, outra mais recente, mais vívida. E o choque entre ambas as nostalgias me abalou a alma, como se eu tivesse finalmente desvendado um vaticínio que me chegara cedo demais, já que, em criança, eu não possuía ferramentas para penetrar sua criptografia. E isso, claro, também me lembra outro caso da Hilda Hilst.

Quando Hilda tinha 69 anos de idade, recebeu a notícia — ao menos me lembro do ocorrido desta maneira — da morte da mulher de um antigo namorado, Paes Barreto, o mesmo homem que inspirou seus poemas do livro “Trovas de muito amor para um amado senhor” (1960). Quando se conheceram nos anos 1950, Paes Barreto era cerca de vinte anos mais velho e já era casado. Ainda assim, eles se apaixonaram e viajaram juntos. Hilda me disse que Paes Barreto pretendia separar-se da esposa para se casar com ela, mas Hilda, apesar de tentada, pois realmente o amava, não queria o carma de ser a destruidora de uma família — e então o rejeitou, afinal, ainda havia todo o tempo do mundo. Ela me confessou que se arrependeu diversas vezes dessa decisão ao longo da vida, pois, além de Paes Barreto, nenhum outro homem a tratou com tanto respeito, carinho e paixão, nenhum outro homem a compreendeu tão bem. Rindo, ela me dizia que a esposa de Paes Barreto, nos anos seguintes, já ciente daquele caso findado, sempre rasgava os jornais quando saía alguma notícia sobre Hilda e seus livros. Ao menos era o que lhe segredavam amigas comuns. E, na ocasião daquele falecimento, ciente de que já não havia um casamento a atrapalhar, Hilda me pediu para encontrar o telefone de Paes Barreto, com quem já não conversava havia mais de vinte anos. Descobri o número e, sabendo que Hilda não se incomodava nem um pouco em dividir sua intimidade comigo, permaneci no escritório enquanto conversavam. Na verdade, eu fiz a ligação e o avisei: “Senhor Paes Barreto? Um telefonema da parte de Hilda Hilst” e passei o aparelho para a poeta.

— Barreto? É Hilda! (Pausa.) Sim, meu querido, eu sei, eu sinto muito. (Pausa.) É verdade, me desculpa. (Pausa.) Eu também tenho muitas, muitas saudades… Não chora.

Nesse momento, Hilda começou a chorar compulsivamente, causando-me grande constrangimento. Não queria incomodá-los, senti que era um momento muito importante, íntimo, e me levantei, dirigindo-me à porta do escritório, de onde ainda a ouvi dizer:

— Eu também, Barreto, eu também. Eu te amo muito, meu querido!

Paes Barreto, salvo engano, faleceu dois anos depois. Não chegaram a se reencontrar. Não na Terra, pois Hilda faleceu seis anos depois. Neste mundo, o tempo se contrai e, se para a jovem Hilda aquele homem mais velho era muito mais velho, agora estavam ambos igualados pela morte. Nem todo mundo tem a sorte que Carl Sagan teve de — além de encontrar numa mesma pessoa um grande amor e uma alma afim — compartilhar com ela uma época e um planeta como um casal.


Marina Di Vicenzi, Hilda Hilst e Paes Barreto, 1959.

UM POEMA DE HILDA HILST PARA SEU AMADO SENHOR:

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

E além de vós

Não desejo nada.

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Timidez imatura

Um traço típico da timidez imatura é fazer algo apenas se alguém já o estiver fazendo: dançar numa festa apenas se já há gente dançando, por mais vontade que tenha de dançar; ir embora durante um filme ruim apenas se mais gente já tiver abandonado o cinema; reclamar do atendimento em órgãos públicos apenas se alguém começar a fazê-lo antes; ir ao show de rock de uma banda idiota porque ninguém quer ir ao show da banda que a pessoa realmente curte; não levantar a mão para fazer uma pergunta inconveniente a um professor esquerdista apenas porque ninguém mais parece se importar com a lavagem cerebral; não ir a um protesto apenas porque não acha que haverá gente suficiente em meio à qual poder ocultar o próprio rosto; e assim por diante.
Desejo mimético é um pé no saco. Deseje seu próprio desejo. A timidez madura se chama modéstia.

Homem também tem pêlo

Bete Coelho e Daniela Thomas

Em Junho de 1999, quando eu já morava na Casa do Sol havia quase nove meses, a atriz e diretora Bete Coelho e a figurinista e cenógrafa Daniela Thomas foram visitar Hilda Hilst. Ambas participavam do projeto de adaptação para teatro do livro O Caderno Rosa de Lori Lamby, cuja protagonista seria vivida por Iara Jamra. A peça, à qual assisti semanas mais tarde no Teatro N.Ex.T, no centro de São Paulo, ficou excelente, unindo na proporção ideal o humor e o horror deste que é o primeiro volume da Trilogia Erótica hilstiana. O sucesso ulterior da montagem, contudo, não impediu Hilda de indagar pela milésima vez:

— Por que ninguém se interessa em montar minhas peças? Por que só querem adaptar meus livros?

— Ai, Hilda! — suspirava ao telefone o amigo Mora Fuentes. — Quando você disser isso às moças, porque eu sei que você vai dizer, sua teimosa, não faça a reclamona, né. Você não está contente com o interesse delas pela Lori Lamby?

— Claro que sim, Zé. Elas são ótimas. Mas não é isso…

— Hilda — eu então dizia — quando suas peças forem publicadas, os diretores vão começar a montá-las. Muita gente nem sabe que você também é dramaturga.

— Faz trinta anos que as escrevi! Trinta anos!! — repetia, arregalando os olhos.

E foi mais ou menos nesse clima que, num dia frio e ensolarado, recebemos as visitas. Em ocasiões assim, Hilda fazia questão da minha presença, entre outras coisas, para ser sua memória recente auxiliar.

— Yuri, quem é mesmo o autor dessa biografia do James Joyce que estou lendo?

— Richard Ellmann, Hilda.

— É verdade. Só me vinha à cabeça Richard Francis Burton. Mas é óbvio que se tratava de outro Richard.

Ela vivia citando autores e livros e, como eu vinha organizando sua biblioteca, cabia a mim correr atrás dos mesmos, pois ela sempre queria ler um trecho ou outro para seu interlocutor. Vale lembrar também que, como toda figura pública, Hilda Hilst se transformava nesses contatos com leitores e fãs. No dia a dia, eu até me esquecia de que ela estava prestes a completar setenta anos de idade: conversávamos como se ambos tivéssemos dezesseis. Claro, não foi assim desde nosso primeiro contato. Nossa amizade foi evoluindo. Mas essa diferença entre o antes e o depois saltava aos meus olhos quando, em minha presença, outras pessoas a encontravam pela primeira vez: de repente, minha “amiga adolescente que se interessava pelas mesmas coisas que eu”, e que só vestia a carapuça de mestra quando eu dizia uma grande besteira, se transformava em quem realmente era: um colosso literário. Ninguém que a tenha conhecido em sua casa jamais esquecerá de sua presença marcante, de sua sinceridade sem papas na língua e de sua modéstia aristocrática. Quando as visitas iam embora, ela me perguntava:

— Como me saí? — e então sorria. Tinha plena consciência do teatro do mundo e de seu papel nele.

Recebemos o anúncio da portaria do condomínio e nos preparamos para recepcionar Bete Coelho e Daniela Thomas. Hilda decidiu recebê-las à mesa de jantar, diante da lareira, já que o escritório estava inusualmente frio. Chico, o caseiro, abriu o portão e o carro veio estacionar diante do alpendre. Os cães, obviamente, fizeram o escarcéu de sempre, rodeando o carro e aguardando as visitantes com todos os volumes e tons de latido. Eram cerca de quinze cães.

— Olá, tudo bem? — eu disse, recebendo Daniela à porta e lhe estendendo a mão.

— Oi — respondeu, ligeiramente ansiosa, aceitando o cumprimento e me encarando por trás das grossas armações dos óculos. Uns dez cães a rodeavam, os pequenos latiam estridentemente.

— A Bete não vai entrar? — perguntei.

— Ela não quer sair do carro! Morre de medo de cachorros.

Ih, lascou-se!, pensei com meus botões. Hilda jamais sairia de casa para conversar com alguém pela janela de um automóvel. Ela simplesmente não confiava em quem não se dava com animais. Meu lado diplomático começou a se preocupar: e se isso fizesse Hilda não dar sua benção à peça? Não, ela não cancelaria sua autorização, mas aquela situação poderia azedar o trabalho de alguma forma. Talvez até aproveitasse o episódio como desculpa para não ir assistir à montagem. Embora estivesse mantendo um bom diálogo com Iara Jamra, por quem sentia grande simpatia, antipatizar com a diretora, por causa dos cães, não resultaria em nada de bom.

Entramos e Daniela cumprimentou Hilda com efusão. Após os salamaleques, indiquei a cadeira para que se sentasse.

— Cadê a Bete? — perguntou Hilda, que até então exalava pura simpatia. Pronto, pensei, vai começar.

— Ela não quer sair do carro — respondeu Daniela. — Está com medo dos cachorros. Não imaginava que se agitariam tanto.

O semblante de Hilda anuviou-se:

— Ué. Pensei que ela quisesse muito conversar comigo.

— E quer. Mas…

— Eles só ficam agitados no início, Daniela — atalhei. — Olha só como eles já se acalmaram. Bastou você se sentar.

— Eu vou lá falar com ela — respondeu, levantando-se e pressentindo nuvens de tempestade.

Daniela saiu e Hilda me encarou, uma expressão desgostosa nos lábios.

— Era só o que faltava — resmungou.

Infelizmente os cães acompanharam Daniela e retomaram a balbúrdia, o que, claro, só iria contradizer seus argumentos. Bete Coelho certamente não estaria disposta a ser um coelho numa caçada inglesa. Hilda, concentrada e já visivelmente irritada, fumava seu Chanceller. Aguardamos em silêncio. Ao cabo de dois ou três minutos, Daniela retornou: sozinha!

— Desculpa, Hilda — começou, embaraçada. — Não adianta. Ela está mesmo com medo.

Como Hilda nada respondesse, e pelo andar da carruagem talvez já não dissesse mais nada, decidi ir testar meus próprios argumentos.

— Eu falo com ela.

Fui até o carro e dei umas duas batidinhas no vidro. Bete Coelho abriu a janela. Os cabelos curtos e muito negros deixavam sua pele ainda mais pálida.

— Oi, Bete. Meu nome é Yuri. Sou secretário da Hilda.

— Oi, Yuri. Ela está muito chateada comigo?

— Um pouco. Mas você não precisa ficar com medo dos cachorros. Eles latem muito apenas quando vêem a pessoa pela primeira vez. Depois se acostumam e ficam quietos. Nunca morderam ninguém.

— Eu sei. Eu entendo que seja assim. Mas é involuntário! Juro! Estou em conflito aqui. Quero sair, mas não consigo.

Seu olhar comprovava sua angústia. Ela chegara à Casa do Sol e não veria Hilda Hilst? Como era possível?

— Olha — propus — você pode vir comigo. Vem segurando no meu braço. Você vai confirmar que cão que late não morde.

— Obrigada, Yuri — retrucou, desconsolada. — Mas não vai dar. É um problema que tenho. Estou até tratando essa fobia com meu psicanalista.

Nesse momento, trinta milhões de neurônios modificaram suas sinapses em meu cérebro e uma lâmpada, que só eu vi, acendeu sobre minha cabeça. Justamente naquele mês, eu e Hilda estávamos lendo e discutindo o livro “A Negação da Morte”, de Ernest Becker. Nele, através principalmente de Otto Rank e Kierkegaard, Becker busca provar que só há uma maneira de escapar à neurose causada pela verdade de que todos morreremos um dia: voltar à transferência original. Na psicanálise, grosso modo, transferência seria o processo pelo qual confiamos nossa segurança psíquica a algo que nos ultrapassa, que nos transcende, a algo que esteja fora e acima de nós mesmos. Quando o bebê está mamando, sua mãe é a fonte e a mantenedora de toda a sua saúde mental. Ele transfere suas necessidades mais profundas para ela. Ali, em seus braços, não há neurose, não há medo, não há ameaças de destruição. Conforme a criança vai crescendo e se tornando um adulto, sua transferência vai sendo dirigida para outras pessoas ou coisas: para o pai, para um namorado, para um trabalho, para uma crença, para uma ideologia e assim por diante. Quanto mais incerto, mortal ou volúvel for o alvo de sua transferência, mais neurótica se tornará a pessoa e, por isso, de mais mentiras existenciais necessitará para não mergulhar na loucura de se ver apenas como um animal que em breve irá morrer. E não há ninguém que viva sem estar preso a esse processo, por mais inconsciente que seja, por mais que seja oculto o alvo de sua transferência. Daí o estado de verdadeiro “escândalo”, no sentido bíblico, isto é, de abalo da fé, quando tal alvo se desfaz no ar ou cai em desgraça. Nada explica melhor um crime passional, quando o marido, traído pela esposa, mata-a e em seguida dá um tiro na cabeça. Nada explica melhor o suicídio de nazistas que, de repente, descobrem que o Führer está morto. Becker, portanto, desenvolve seu pensamento até nos mostrar que a única transferência perene, indestrutível e legítima é aquela que tem Deus por alvo. Seria essa a transferência original. Enfim, eu olhava para Bete Coelho e me vinham à cabeça todas essas coisas. Mas é claro que eu não iria lhe dizer: “Tenha fé em Deus, Bete, e nada vai lhe acontecer”. Não. Vestida com roupas escuras e pálida como uma freqüentadora do Hell’s Club, que eu também freqüentei — sempre curti música eletrônica —, essa não parecia de modo algum a abordagem correta. O fato é que eu também sabia que, numa psicanálise, a terapia torna-se muito mais efetiva quando, entre paciente e psicanalista, ocorre a transferência, quando o psicanalista se torna a salvaguarda do equilíbrio psíquico do paciente. Portanto, eu me inclinei em sua direção, sorri e lhe disse:

— Bete, tenho certeza de que, se você conseguisse enfrentar essa fobia agora e, apesar de todos esses cachorros, fosse até a sala conversar com a Hilda, seu psicanalista ficaria muito orgulhoso de você… — e, tendo dito isso, dei-lhe as costas e voltei à sala.

— Cadê ela, Yuri? — perguntou Hilda.

— Já está vindo.

— Sério?

— Sério.

E, de fato, em menos de dois minutos, Bete Coelho surgiu à porta por si só, os olhos vidrados, direcionados para frente, evitando olhar para baixo. Os cães, que haviam me acompanhado, cercaram-na latindo muitíssimo, mas ela, rígida, corajosa, permaneceu como uma estátua, os braços colados ao corpo. Com passos curtos e cuidadosos, mais parecia se deslocar sobre rodinhas do que caminhar. Dirigiu-se então até Hilda, que se levantou e a abraçou.

— É um prazer, Hilda. Me desculpa.

— Não entendi esse pânico todo — repreendeu-a Hilda, num tom bem humorado. — Você por acaso também tem medo de homem? Homem também tem pêlo. Sabia?

Todos riram dessa observação e Bete Coelho se sentou na cadeira que lhe indiquei. As conversas prosseguiram de forma amena e, graças à bravura da atriz-diretora, que confirmou Sócrates, segundo o qual corajoso não é quem não sente medo, mas, sim, quem o sente e o enfrenta, semanas mais tarde a própria Hilda foi assistir à montagem de O caderno Rosa de Lori Lamby. Porque, sinceramente, caso a autora tivesse antipatizado com Bete, teria sido muito difícil para Mora Fuentes arrastá-la da Casa do Sol até o teatro. (Ah, vale lembrar que, além de pêlos, alguns homens também têm boas idéias.)

Eugen Rosenstock-Huessy: o desempregado e a linguagem

Eugen Rosenstock-Huessy

« […] Já somos capazes, a esta altura, de determinar uma quarta doença da linguagem comunitária. […] Para melhor descrevermos tal situação, podemos empregar as palavras crise e anarquia. Quando um desempregado bate à minha porta e eu digo “não há trabalho para ti”, isso parece não implicar nenhum problema linguístico. Mas implica, sim. O desempregado que pede “trabalho” está na verdade pedindo que lhe digam o que fazer. Tendo a pensar que nossos economistas não percebem, além da dificuldade financeira que há em tal reivindicação, a reivindicação de que falem com ele! Queremos que nos digam o que fazer na sociedade. A crise interna de uma sociedade em desintegração resulta de que ninguém diz a muitas pessoas dessa sociedade o que elas devem fazer.

« Para muitos, hoje em dia, é difícil entender que isso seja uma doença da linguagem. Estão acostumados a pensar na linguagem como exteriorização de pensamentos ou ideias. Assim, quando um comerciante em dificuldades tenta obter algum fornecimento, ou quando um trabalhador desempregado sonha com algum trabalho, a conexão entre essa necessidade e a linguagem passa despercebida. No entanto, a linguagem é antes de tudo dar ordens. Quando os pais se recusam a dar ordens aos filhos, a família deixa de ser família. Torna-se um bando de indivíduos mal instalados. Ordens são as sentenças de que toda ordem se compõe. O uso abstrato da palavra “ordem” fez-nos esquecer que “lei e ordem” é o somatório de todos os imperativos e ordens dadas por longo período de tempo.

« Um desempregado é alguém que procura ordens e não encontra ninguém que lhas dê. Por que as procura? Porque ordens cumpridas dão direitos. Se faço por conta própria uma imagem de barro, não posso exigir que me dêem dinheiro por isso. Mas, quando recebo ordens para fazer imagens de barro, estabeleço uma reivindicação. As respostas às ordens dadas fundam direitos. Os milhões de desempregados dos anos 30 esperavam alguém que lhes dissesse o que fazer.[…]»

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Trecho do capítulo 2 do livro “A Origem da Linguagem“, de Eugen Rosenstock-Huessy.

Agenda: Grinding America Down (2010) – documentário legendado

Leia sobre o filme no IMDB. (O vídeo postado originalmente foi deletado, só encontrei este outro.)

J.R.R. Tolkien fala sobre o casamento e as relações entre os sexos

J.R.R. Tolkien

De uma carta para seu filho Michael Tolkien

6-8 de março de 1941

Os relacionamentos de um homem com as mulheres podem ser puramente físicos (na verdade eles não podem, é claro, mas quero dizer que ele pode recusar-se a levar outras coisas em consideração, para o grande dano de sua alma (e corpo) e das delas); ou “amigáveis”; ou ele pode ser um “amante” (empenhando e combinando todos os seus afetos e poderes de mente e corpo em uma emoção complexa poderosamente colorida e energizada pelo “sexo”). Este é um mundo decaído. A desarticulação do instinto sexual é um dos principais sintomas da Queda. O mundo tem “ido de mal a pior” ao longo das eras. As várias formas sociais mudam, e cada novo modo tem seus perigos especiais: mas o “duro espírito da concupiscência” vem caminhando por todas as ruas, e se instalou em todas as casas, desde que Adão caiu. Deixaremos de lado os resultados “imorais”. Para esses você não deseja ser arrastado. À renúncia você não tem nenhum chamado. “Amizade”, então? Neste mundo decaído, a “amizade” que deveria ser possível entre todos os seres humanos é praticamente impossível entre um homem e uma mulher. O diabo é incessantemente engenhoso, e o sexo é seu assunto favorito. Ele é da mesma forma bom tanto em cativá-lo através de generosos motivos românticos, ou ternos, quanto através daqueles mais vis ou mais animais. Essa “amizade” tem sido tentada com freqüência: um dos dois lados quase sempre falha. Mais tarde na vida, quando o sexo esfria, tal amizade pode ser possível. Ela pode ocorrer entre santos. Para as pessoas comuns ela só pode ocorrer raramente: duas almas que realmente possuam uma afinidade essencialmente espiritual e mental podem acidentalmente residir em um corpo masculino e em um feminino e ainda assim podem desejar e alcançar uma “amizade” totalmente independente de sexo. Porém, ninguém pode contar com isso. O outro parceiro(a) irá desapontá-la(-lo), é quase certo, ao se “apaixonar”. Mas um rapaz realmente não quer (via de regra) “amizade”, mesmo que ele diga que queira. Existem muitos rapazes (via de regra). Ele quer amor inocente, e talvez ainda irresponsável. Ail Ail que sempre o amor foi pecado!, como diz Chaucer. Então, se ele for cristão e estiver ciente de que há tal coisa como o pecado, ele desejará saber o que fazer a respeito disso.

Há, na nossa cultura ocidental, a romântica tradição cavalheiresca ainda forte, apesar de que, como um produto da cristandade (porém de modo algum o mesmo que a ética cristã), os tempos são hostis a ela. Tal tradição idealiza o “amor” — e, ademais, ele pode ser muito bom, uma vez que ele abrange muito mais do que prazer físico e desfruta, se não de pureza, pelo menos de fidelidade, e abnegação, “serviço”, cortesia, honra e coragem. Sua fraqueza, sem dúvida, é que ele começou como um jogo artificial de cortejo, uma maneira de desfrutar o amor por si só sem referência (e, de fato, contrário) ao matrimônio. Seu centro não era Deus, mas Divindades imaginárias, o Amor e a Dama. Ele tende ainda a tornar a Dama uma espécie de divindade ou estrela guia — do antiquado “sua divindade” = a mulher que ele ama — o objeto ou a razão de uma conduta nobre. Isso é falso, é claro, e na melhor das hipóteses fictício. A mulher é outro ser humano decaído com uma alma em perigo. Mas, combinado e harmonizado com a religião (como o era há muito tempo, quando produziu boa parte daquela bela devoção à Nossa Senhora, que foi o modo de Deus de refinar em muito nossas grosseiras naturezas e emoções masculinas, e também de aquecer e colorir nossa dura e amarga religião), tal amor pode ser muito nobre. Ele produz então o que suponho que ainda seja sentido, entre aqueles que mantêm ainda que um vestígio de cristianismo, como o ideal mais alto de amor entre um homem e uma mulher. Porém, eu ainda acho que ele possui perigos. Ele não é completamente verdadeiro e não é perfeitamente “teocêntrico”. Leva (ou, de qualquer maneira, levou no passado) o rapaz a não ver as mulheres como elas realmente são, como companheiras em um naufrágio, e não como estrelas guias. (Um resultado observado é que na verdade ele faz com que o rapaz torne-se cínico.) Leva-o a esquecer os desejos, necessidades e tentações delas. Impõe noções exageradas de “amor verdadeiro”, como um fogo vindo de fora, uma exaltação permanente, não-relacionado à idade, à gestação e à vida simples, e não-relacionado à vontade e ao propósito. (Um resultado disso é fazer com que os jovens — homens e mulheres — procurem por um “amor” que os manterá sempre bem e aquecidos em um mundo frio, sem qualquer esforço da parte deles; e o romântico incurável continua procurando até mesmo na sordidez das cortes de divórcio).

As mulheres realmente não têm parte em tudo isso, embora possam usar a linguagem do amor romântico, visto que ela está tão entrelaçada em todas as nossas expressões idiomáticas. O impulso sexual torna as mulheres (naturalmente, quando não-mimadas, mais altruístas) muito solidárias e compreensivas, ou especialmente desejosas de assim o serem (ou de assim parecerem), e muito predispostas a ingressarem em todos os interesses, na medida do possível, de gravatas à religião, do jovem pelo qual estejam atraídas. Nenhuma intenção necessariamente de ludibriar — puro instinto: o instinto serviente de esposa, generosamente aquecido pelo desejo e um sangue jovem. Sob esse impulso, elas de fato podem alcançar com freqüência um discernimento e compreensão extraordinários, até mesmo de coisas que em outras circunstâncias estariam fora de seu âmbito natural: pois é o dom delas serem receptivas, estimuladas, fertilizadas (em muitos outros aspectos que não o físico) pelo homem. Todo professor sabe disso. O quão rápido uma mulher inteligente pode ser ensinada, captar as idéias dele, ver seu motivo — e como (com raras exceções) elas não conseguem ir além quando deixam a tutela dele, ou quando param de ter um interesse pessoal nele. Mas esse é o caminho natural delas para o amor. Antes que a jovem perceba onde está (e enquanto o jovem romântico, quando ele existe, ainda está suspirando), ela pode de fato “se apaixonar”, o que para ela, uma jovem ainda pura, significa querer se tornar a mãe dos filhos do jovem, mesmo que esse desejo não esteja de modo algum claro ou explícito a ela. E então acontecerão coisas, e elas podem ser muito dolorosas e prejudiciais caso dêem errado, especialmente se o jovem quisesse apenas uma estrela guia ou divindade temporária (até que fosse atrás de uma mais brilhante), e estivesse simplesmente desfrutando da lisonja da simpatia belamente temperada com um estímulo do sexo — tudo bastante inocente, é claro, e muito distante da “sedução”.

Você pode encontrar na vida (como na literatura*) mulheres que são volúveis, ou mesmo puramente libertinas — não me refiro a um simples flerte, o treino para o combate real, mas às mulheres que são tolas demais até mesmo para levar o amor a sério, ou que são de fato tão depravadas ao ponto de desfrutar as “conquistas”, ou mesmo que apreciem causar dor — mas essas são anormalidades, embora falsos ensinamentos, uma má criação e costumes deturpados possam encorajá-las. Muito embora as condições modernas tenham modificado as circunstâncias femininas, e o detalhe do que é considerado decoro, elas não modificaram o instinto natural. Um homem tem um trabalho de toda uma vida, uma carreira (e amigos homens), todos os quais podem (e o fazem, quando ele possui alguma coragem) sobreviver ao naufrágio do “amor”. Uma mulher jovem, mesmo uma “economicamente independente”, como dizem agora (o que na verdade geralmente significa subserviência econômica a empregadores masculinos ao invés de subserviência a um pai ou a uma família), começa a pensar no “enxoval” e a sonhar com um lar quase que imediatamente. Se ela realmente se apaixonar, o navio naufragado pode de fato acabar nas rochas. De qualquer maneira, as mulheres são em geral muito menos românticas e mais práticas. Não se iluda com o fato de que elas são mais “sentimentais” no uso das palavras — mais espontâneas com “querido” e coisas do gênero. Elas não querem uma estrela guia. Elas podem idealizar um simples jovem como um herói, mas elas não precisam realmente de tal deslumbramento tanto para se apaixonar como para permanecerem assim. Se elas possuem alguma ilusão, é a de que podem “remodelar” os homens. Elas aceitarão conscientemente um canalha e, mesmo quando a ilusão de reformá-lo mostrar-se vã, continuarão a amá-lo.

Elas são, é claro, muito mais realistas sobre a relação sexual. A não ser que sejam corrompidas por péssimos costumes contemporâneos, elas via de regra não falam de modo “obsceno”; não porque sejam mais puras do que os homens (elas não são), mas porque não acham isso engraçado. Conheci aquelas que aparentavam achar isso engraçado, mas é fingimento. Tais coisas podem lhes ser intrigantes, interessantes, atraentes (em boa parte atraentes demais): mas é um interesse natural honesto, sério e óbvio; onde está a graça?

* A literatura tem sido (até o romance moderno) um negócio principalmente masculino, e nela há muito sobre o “belo e falso”. Isso, em geral, é uma calúnia. As mulheres são humanas e, portanto, capazes de perfídia. Mas dentro da família humana, comparadas com os homens, elas geral ou naturalmente não são as mais pérfidas. Muito pelo contrário. Exceto pelo fato de que as mulheres são capazes de sucumbir se lhes for pedido para “esperarem” por um homem por tempo demais e enquanto a juventude (tão preciosa e necessária para uma futura mãe) passa rapidamente. Na verdade, não deveria se pedir que esperassem.

Elas precisam, é claro, ser ainda mais cuidadosas nas relações sexuais, no que diz respeito a todos os contraceptivos. Erros lhes causam danos física e socialmente (e matrimonialmente). Mas elas são instintivamente monogâmicas, quando não-corrompidas. Os homens não são… Não há por que fingir. Os homens simplesmente não o são, não por sua natureza animal. A monogamia (ainda que há muito venha sendo fundamental às nossas idéias herdadas) é para nós, homens, uma porção de ética “revelada”, em concordância com a fé e não com a carne. Cada um de nós poderia gerar de forma saudável, por volta dos nossos 30 anos, algumas centenas de filhos e apreciar o processo. Brigham Young (acredito) era um homem feliz e saudável. Este é um mundo decaído, e não há consonância entre nossos corpos, mentes e almas.

Entretanto, a essência de um mundo decaído é que o melhor não pode ser alcançado através do divertimento livre, ou pelo o que é chamado “auto-realização” (em geral um belo nome para auto-indulgência, completamente hostil à realização de outros aspectos da personalidade), mas pela negação, pelo sofrimento. A fidelidade no casamento cristão acarreta nisto: grande mortificação. Para um homem cristão não há saída. O casamento pode ajudar a santificar e direcionar os desejos sexuais dele ao seu objeto apropriado; a graça de tal casamento pode ajudá-lo na luta, mas a luta permanece. A graça não irá satisfazê-lo — tal como a fome pode ser mantida à distância com refeições regulares. Ela oferecerá tantas dificuldades à pureza própria desse estado quanto fornece facilidades. Homem algum, por mais que amasse verdadeiramente sua noiva quando jovem, viveu fiel a ela como uma esposa em mente e corpo sem um exercício consciente e deliberado da vontade, sem abnegação. Isso é dito a poucos — mesmo àqueles educados “na Igreja”. Aqueles de fora parecem que raramente ouviram tal coisa. Quando o deslumbramento desaparece, ou simplesmente diminui, eles acham que cometeram um erro, e que a verdadeira alma gêmea ainda está para ser encontrada. A verdadeira alma gêmea com muita freqüência mostra-se como sendo a próxima pessoa sexualmente atrativa que aparecer. Alguém com quem poderiam de fato ter casado de uma maneira muito proveitosa se ao menos —. Por isso o divórcio, para fornecer o “se ao menos”. E, é claro, via de regra eles estão bastante certos: eles cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio no fim de sua vida poderia fazer um julgamento seguro a respeito de com quem, entre todas as oportunidades possíveis, ele deveria ter casado da maneira mais proveitosa! Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são erros: no sentido de que quase certamente (em um mundo mais perfeito, ou mesmo com um pouco mais de cuidado neste mundo muito imperfeito) ambos os parceiros poderiam ter encontrado companheiros mais adequados. Mas a “verdadeira alma gêmea” é aquela com a qual você realmente está casado. Na verdade, você faz muito pouco ao escolher: a vida e as circunstâncias encarregam-se da maior parte (apesar de que, se há um Deus, esses devem ser Seus instrumentos ou Suas aparências). É notório que, na realidade, os casamentos felizes são mais comuns quando a “escolha” feita pelos jovens é ainda mais limitada, pela autoridade dos pais ou da família, contanto que haja uma ética social de pura responsabilidade não-romântica e de fidelidade conjugal. Mas mesmo em países onde a tradição romântica até agora afetou os arranjos sociais a ponto de fazer as pessoas acreditarem que a escolha de um parceiro diz respeito unicamente aos jovens, apenas a mais rara das sortes junta o homem e a mulher que, de certo modo, são realmente “destinados” um ao outro e capazes de um enorme e esplêndido amor. A idéia ainda nos fascina, agarra-nos pelo pescoço: um grande número de poemas e histórias foi escrito sobre o tema, mais, provavelmente, do que o total de tais amores na vida real (mesmo assim, a maior dessas histórias não fala do casamento feliz de tais grandes amantes, mas de sua trágica separação, como se mesmo nessa esfera o verdadeiramente grande e esplêndido neste mundo decaído esteja mais propício a ser alcançado pelo “fracasso” e pelo sofrimento). Em tal inevitável grande amor, freqüentemente um amor à primeira vista, temos uma visão, suponho, do casamento como este deveria ser em um mundo não-decaído. Neste mundo decaído, temos como nossos únicos guias a prudência, a sabedoria (rara na juventude, tardia com a idade), um coração puro e fidelidade de vontade

Minha própria história é tão excepcional, tão errada e imprudente em quase todos os aspectos que fica difícil aconselhar prudência. Ainda assim, casos difíceis dão maus exemplos; e casos excepcionais nem sempre são bons guias para outros. Pois o que é válido aqui é um pouco de autobiografia — nesta ocasião direcionada principalmente às questões da idade e das finanças. Apaixonei-me por sua mãe por volta dos 18 anos. De maneira muito genuína, como se mostrou — embora, é claro, falhas de caráter e temperamento tenham feito com que eu com freqüência caísse abaixo do ideal com o qual eu havia começado. Sua mãe era mais velha do que eu e não era uma católica. Completamente lamentável, conforme vislumbrado por um guardião1. E isso foi de certa forma muito lamentável; e de certo modo muito ruim para mim. Essas coisas são cativantes e nervosamente exaustivas. Eu era um garoto inteligente lutando contra as dificuldades de se conseguir uma bolsa de estudos (muito necessária) em Oxford. As tensões combinadas quase causaram um colapso nervoso. Fracassei nos meus exames e (como anos mais tarde meu professor me contou) embora eu devesse ter conseguido uma boa bolsa, acabei apenas com uma bolsa parcial de £60 em Exeter: apenas o suficiente para começar (ajudado por meu querido e velho guardião), junto com uma bolsa de saída do colégio da mesma quantia. E claro, havia um lado de crédito, não visto tão facilmente pelo guardião. Eu era inteligente, mas não diligente ou concentrado em apenas uma única coisa; grande parte do meu fracasso foi devido simplesmente ao fato de não me esforçar (pelo menos não em literatura clássica) não porque eu estava apaixonado, mas porque eu estava estudando outra coisa: gótico e não sei mais o quê2. Por ter uma criação romântica, fiz de um caso de menino-e-menina algo sério, e o tornei a fonte do empenho. Fisicamente covarde por natureza, passei de um coelhinho desprezado do segundo time da casa para capitão do time principal em duas temporadas. Todo esse tipo de coisa. Porém, surgiram problemas: tive de escolher entre desobedecer e magoar (ou enganar) um guardião que havia sido um pai para mim, mais do que a maioria dos pais verdadeiros, mas sem qualquer obrigação, e “desistir” do caso de amor até que eu completasse 21. Não me arrependo de minha decisão, embora ela tenha sido muito difícil para minha amada. Mas não foi minha culpa. Ela estava perfeitamente livre e sob nenhum voto a mim, e eu não teria reclamação justa alguma (exceto de acordo com o código romântico irreal) se ela tivesse se casado com outra pessoa. Por quase três anos eu não vi ou escrevi à minha amada. Foi extremamente difícil, doloroso e amargo, especialmente no início. Os efeitos não foram completamente bons: voltei à leviandade e à negligência, e desperdicei boa parte do meu primeiro ano na Faculdade. Mas não acredito que qualquer outra coisa teria justificado um casamento com base em um romance de garoto; e provavelmente nada mais teria fortalecido suficientemente a vontade de conferir permanência a tal romance (por mais genuíno que fosse um caso de amor verdadeiro). Na noite do meu aniversário de 21 anos, escrevi novamente à sua mãe — 3 de janeiro de 1913. Em 8 de janeiro voltei para ela, e nos tornamos noivos, informando o fato a uma atônita família. Esforcei-me e estudei mais (tarde demais para salvar o Bach3, do desastre) — e então a guerra eclodiu no ano seguinte, enquanto eu ainda tinha um ano para cursar na faculdade. Naqueles dias os garotos se alistavam ou eram desprezados publicamente. Era um buraco desagradável para se estar, especialmente para um jovem com imaginação demais e pouca coragem física. Sem diploma; sem dinheiro; noiva. Suportei o opróbrio e as insinuações cada vez mais diretas dos parentes, fiquei acordado até mais tarde e consegui uma Primeira Classe no Exame Final em 1915. Atrelado ao exército: julho de 1915. Considerei a situação intolerável e me casei em 22 de março. Podia ser encontrado atravessando o Canal (eu ainda tenho os versos que escrevi na ocasião!)4 para a carnificina do Somme.

Pense na sua mãe! No entanto, não creio agora por um momento sequer que ela estivesse fazendo algo mais do que lhe deveria ser pedido para fazer — não que isso diminua o valor do que foi feito. Eu era um rapaz jovem, com um bacharelado regular e capaz de escrever poesia, algumas libras minguadas por ano (£20 — 40)5 e sem perspectivas, um Segundo Ten. seis dias por semana na infantaria, onde as chances de sobrevivência estavam severamente contra você (como um subalterno). Ela se casou comigo em 1916 e John nasceu em 1917 (concebido e carregado durante o ano da fome de 1917 e da grande campanha U-boat) por volta da batalha de Cambrai, quando o fim da guerra parecia tão distante quanto agora. Vendi, e gastei para pagar a clínica de repouso, a última de minhas poucas ações sul-africanas, “meu patrimônio”.

Da escuridão da minha vida, tão frustrada, coloco diante de você a única grande coisa para se amar sobre a terra: o Sagrado Sacramento… Nele você encontra romance, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os seus amores sobre a terra; e, mais do que isso, a Morte: pelo paradoxo divino, que encerra a vida e exige a renúncia de tudo, e ainda assim pelo gosto (ou antegosto) somente do qual o que você procura em seus relacionamentos terrestres (amor, fidelidade, alegria) pode ser mantido, ou aceitar aquele aspecto.

Notas:
1. Guardião de Tolkien. O Padre Francis Morgan desaprovava seu caso de amor clandestino com Edith Bratt.
2. Tolkien ficou empolgado nos dias de colégio ao descobrir a existência do idioma gótico; vide a carta n° 272.
3. Bacharelado em Letras Clássicas, no qual Tolkien recebeu uma Segunda Classe.
4. A verdadeira data da travessia do Canal feita por Tolkien com seu batalhão foi 6 de junho de 1916. O poema a que ele se refere, datado “Étaples, Pas de Calais, junho de 1916”, é intitulado “A Ilha Solitária”, e possui o subtítulo “Para a Inglaterra”, embora ele também esteja relacionado à mitologia de O Silmarillion. O poema foi publicado no Leeds University Verse 1914-1924 [“Versos da Universidade de Leeds 1914-1924”] (Leeds, na Swan Press, 1924), p.
5. Tolkien herdou uma pequena renda de seus pais, proveniente de ações em minas sul-africanas

Fonte: As Cartas de J.R.R. Tolkien, livro editado por Humphrey Carpenter. (Tradução: Gabriel Oliva Brum.)

Cinema e armas: John Huston e a vida numa colméia cinematográfica

John Huston

Quem já dirigiu um filme sabe que dificilmente irá escapar dos mil e um conflitos que costumam surgir entre os membros da equipe e os do elenco. Há sempre uma picuinha, uma invejinha, uma fofoquinha, uma conspiraçãozinha e demais infernidades que podem colocar tudo a perder. (E, se não colocam tudo a perder, ao menos deixam o saco do diretor bastante dolorido.) Sim, o set de filmagem não é senão um microcosmo a refletir o estado da sociedade que pariu toda essa gente. E é por isso que gostei tanto da solução encontrada pelo diretor John Huston (1906–1987) quando das filmagens de The Night of Iguana (1964): preocupado com a possibilidade e com as conseqüências de uma tal desordem em seu longínquo set — uma praia mexicana cuja distância da civilização impedia uma logística adequada –, e logo no primeiro dia, o irônico e ousado cineasta presenteou cada membro do elenco com uma caixa contendo uma pistola (de verdade!) cujas balas (reais!) continham gravados os nomes dos demais atores em seus cartuchos. Ou seja: cada ator era, desde o início das gravações, e em último caso, um cabra marcado para morrer…

Os membros da equipe técnica, em geral bem mais realistas do que os atores, costumam sossegar com o velho e bom dinheiro — seu profissionalismo está sempre acima da vaidade –, o que explica por que no pobre Brasil eles enchem tanto o saco e por que, nos ricos Estados Unidos, trabalham numa boa sem atrapalhar a ordem e sem violar a hierarquia. Mas quando se trata do ego dos atores… ah, o ego… O mero dinheiro não pode com ele!

Os defensores do desarmamentismo certamente esperariam testemunhar um massacre hollywoodiano dos mais sangrentos nesse set mexicano. Ou melhor: nesse set hustoniano. Mas a questão é que, pela primeira vez na vida, John Huston conseguiu o mais pacífico e tranqüilo dos ambientes de trabalho! Ora, quem é que iria arranjar confusão numa colméia cinematográfica onde cada ator possuía seu próprio ferrão? Locos, pero no tontos! Enfim, palmas para esse mestre, palmas para esse grande conhecedor, não apenas do cinema, mas também da natureza humana. (Hoje em dia, o coitado seria crucificado pelos politicamente corretos…)

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