Blog do Yuri

palavras aos homens e mulheres da Madrugada

O Outsider: o drama moderno da alienação e da criação – Colin Wilson

Colin Wilson

« A obra de T. E. Lawrence introduziu novas implicações em nosso estudo dos “problemas do Outsider”, que ficarão mais claros ao revermos o caminho percorrido até agora. Lawrence tem características em comum com todos os Outsiders que comentamos, e nele podemos ver o ponto para onde alguns deles tendiam.

« Com Barbusse, pudemos ver que o problema do Outsider é o problema da negação da auto-expressão. Isso nos leva a perguntar se o Outsider é, conseqüentemente, um problema meramente sociológico. A introdução, no folheto de H. G. Wells, de um aspecto claramente não-sociológico nos levou, naturalmente, a Roquentin, onde constatamos que o problema é, de fato, metafísico.

« Camus e Hemingway ressaltaram a sua natureza prática. É o problema de viver; o problema de esquema ou finalidade da vida. O Outsider é aquele que não pode aceitar a vida tal como ela é, que não pode considerar sua existência, ou a de qualquer outro, como necessária. Ele vê “muito fundo, e demais”. É ainda uma questão de auto-expressão.

« Em The Secret Life vemos o Outsider separado das outras pessoas por uma inteligência que impiedosamente destrói os valores delas e o impede de se expressar pela incapacidade de recolocar novos valores. Seu problema é de “Vanitatum vanitas” do Eclesiastes; nada vale a pena ser feito.

« O Outsider romântico ampliou a abordagem ao mostrar que o problema não é necessariamente de homens desiludidos. Em um nível diferente, o romântico vive o problema em seu esforço por dar corpo ao ideal romântico. A conclusão de Hesse foi: mais auto-análise, “para atravessar de novo o inferno do ser interior”. O Outsider precisa se conhecer mais. Isso implica o caminho de Roquentin e o caminho de Mersault; o caminho da análise metafísica e o caminho da aceitação da vida física. Mas o fracasso final, tanto de Goldmund como do Magister Ludi, os caminhos da carne e do espírito, nos deixam diante da afirmação de Strowde: Nada vale a pena ser feito, nenhum caminho é melhor do que outro.

« É T. E. Lawrence quem finalmente indica o caminho da saída para o impasse. Os outros aceitaram como um problema de uma única variável, por assim dizer. Um “caminho” precisa ser procurado. A questão “um caminho para quem?” seria respondida por Roquentin ou Strowde: “Um caminho para mim, obviamente”. Lawrence deu um grande passo à frente: “Você não é o que pensa ser”. Em vez de dizer: Nada vale a pena ser feito, dever-se-ia dizer: “Eu não sou digno de fazer qualquer coisa”. A pergunta de Oliver Gauntlett: “Onde está o inimigo?” foi respondida por Lawrence: “Você pensa que é você”. A verdadeira guerra de Oliver é a guerra contra si mesmo. Lawrence estabeleceu a distinção vital em uma sentença: “De fato, não gostava daquele eu mesmo que eu podia ver e ouvir”. “Ele não é ele mesmo”, dissera o professor de Kennington. Lawrence não se divide em duas partes como Haller para depois dizer: “O homem odeia o lobo”. Lawrence odiava o complexo todo de corpo, mente, emoções, e suas idéias a respeito de si mesmo que constituíam uma proteção constante, sufocante, em torno de seus impulsos vitais.

« Esta é uma situação que de forma alguma é desconhecida dos santos e dos místicos; a infelicidade de Lawrence é não ter encontrado, até agora, um biógrafo qualificado para tratar de seus conflitos espirituais. As noções correntes de um “enigma de Lawrence” culminaram com a tentativa feita por Aldington de explicar Lawrence em termos da inadequada psicologia de Freud. Mas o “enigma de Lawrence” foi esclarecido por ele mesmo em The Seven Pillars. O homem não é uma unidade; é muitas. Entretanto, para que qualquer coisa valha a pena ser feita, é preciso que ele se torne uma unidade. O reino dividido precisa ser unificado. A enganosa visão de personalidade que nossa civilização ocidental promove e glorifica aumenta a divisão interior; Lawrence reconheceu isto como sendo o inimigo. Portanto, a guerra contra esta descoberta é, inevitavelmente, uma revolta contra a civilização ocidental.

« O feito de Lawrence nos leva mais adiante ainda. A guerra não deve ser travada pela mera razão. A razão deixa a personalidade à vontade em seu próprio campo. O poder da vontade é imenso quando apoiado pela intenção moral. O único papel da razão é o de estabelecer a intenção moral pela auto-análise. Uma vez definido o inimigo, a vontade pode operar e o limite de seu poder sobre o corpo é só o limite da intenção moral que o apóia.

« Se o nosso raciocínio estiver correto, o problema do Outsider não é novo; Lawrence mostra que a história dos profetas de todos os tempos segue um esquema: nascidos numa civilização, eles rejeitam os seus padrões de bem-estar material e se retiram para o deserto. Quando voltam, é para pregar a rejeição do mundo: a intensidade do espírito contra a intensidade da segurança material. As angústias do Outsider são as dores de dente do profeta. Ele se refugia em seu quarto, como uma aranha num canto escuro; vive sozinho, quer evitar as pessoas. “Para os pensadores do deserto, o impulso para Nitria sempre foi irresistível.” Ele pensa, analisa, “desce dentro de si mesmo”: “Não porque provavelmente encontrassem Deus habitando lá, mas porque na solidão eles ouviam melhor a palavra viva que traziam consigo”. Aos poucos a mensagem emerge. Não necessariamente uma mensagem positiva; e por que haveria de ser, se o impulso que impele para ela é negativo — o desgosto?

« O profeta é um homem de integridade espiritual maior que a de seus semelhantes; a tibieza deles o revolta e ele se sente impelido a dizer-lhes isso. Em seu estágio embrionário como Outsider ele não se conhece suficientemente bem para compreender a força propulsora que está por trás de seus sentimentos. Por esta razão, sua maior ocupação está me pensar e não em fazer. Nos Outsiders de que vamos tratar no resto desde livro, observaremos a emergência do elemento distintamente profético que habita o Outsider.»

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(…)

« Hulme considerava o seu Speculations como um prolegômeno à leitura de Pascal. A minha aspiração, ao escrever este estudo sobre o Outsider, era a de fornecer uma introdução a um campo ainda mais vasto, a um campo limitado por Shaw e Gurdjieff, de um lado, e por um protestante ortodoxo como Kierkegaard, ou um católico ortodoxo como Newman, de outro. Com tal objetivo, de fato cobri boa parte do assunto já brilhantemente tratado no livro de Reinhold Niebuhr, Natureza e Destino do Homem e em várias obras de Berdyaev; devo reconhecer minha dívida para com eles bem como para com os impressionantes ensaios de Eliot sobre o humanismo e a atitude religiosa (dívida, aliás, que tenho em comum com muitos outros da minha geração). Revendo o passado, acho que provavelmente nenhum livro de cem mil palavras poderia atingir este objetivo. Se este livro puder servir de estímulo a uma releitura de Shaw, terá cumprido plenamente sua finalidade. Na época em que este livro foi escrito, Shaw sofria um processo de desvalorização sem paralelos desde o esquecimento de Shakespeare no século XVII. Tal desvalorização de um grande mestre religioso seria o pior sintoma possível de nossa época, não fosse o crescente interesse pelos pensadores existencialistas como Berdyaev, Kierkegaard, Camus. Para que a “nova idade religiosa” de Hulme surja antes que nossa civilização se destrua a si mesma, seria necessário um esforço intelectual de gestação que envolvesse todo o mundo civilizado.»

« Restam ainda muitas dificuldades que não podem ser abordadas aqui. O problema que se coloca para a “civilização” é o da adoção de uma atitude religiosa que possa ser assimilada tão objetivamente quanto as manchetes dos jornais de domingo passado. Para o indivíduo, porém, o problema é exatamente o inverso: o esforço consciente de não limitar a quantidade de experiência vista e tocada; o intolerável esforço de expor as áreas sensíveis do ser ao que talvez possa feri-las; a tentativa de ver como um todo, embora o instinto de autopreservação se debata contra a dor da expansão interior, e todos os impulsos de preguiça espiritual se ergam em vagas de sono a cada nova tentativa. O indivíduo inicia esta longa tentativa como um Outsider; e pode terminá-la como um santo.»
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Trecho de O Outsider: o drama moderno da alienação e da criação, de Colin Wilson.

Henry Miller fala sobre a verdadeira vitalidade

Henry Miller

« UMA DAS coisas que mais impressionam na América, nesta minha viagem, é que os homens promissores, os homens de alegre sabedoria, os homens que inspiram esperança neste período tão desanimador de nossa história, são ou meninos mal saídos da adolescência ou meninos de setenta anos ou mais.

« Na França, os velhos, principalmente os de origem camponesa, são uma alegria e uma inspiração a se imitar. São como grandes árvores que nenhuma tempestade consegue derrubar; irradiam paz, serenidade e sabedoria. Na América, os velhos são, em geral, uma tristeza, principalmente os bem-sucedidos que prolongam sua existência muito além dos termos naturais por meio de respiração artificial, por assim dizer. São horríveis exemplos vivos da arte do embalsamador, cadáveres semoventes manipulados por um séquito de atendentes muito bem pagos que são uma vergonha para a sua profissão.

« As exceções à regra — e o contraste é abismal — são os artistas, e por artistas quero dizer os criadores, independentemente do seu campo de operação. A maioria deles começou a desenvolver, a revelar sua individualidade depois dos quarenta e cinco anos, idade que a maior parte das empresas industriais deste país fixou como o fim da linha. Deve-se admitir, incidentalmente, claro, que o trabalhador médio, que atuou desde a adolescência como um robô, está pronto para a lixeira nessa idade. E aquilo que é verdadeiro para o robô comum é, em grande parte, verdadeiro para o robô mestre, o chamado capitão da indústria. Só sua riqueza permite que ele alimente e mantenha uma débil e oscilante chama. No que diz respeito à verdadeira vitalidade, depois dos quarenta e cinco anos somos uma nação de destruídos.

« Mas existe uma classe de homens resistentes, antiquados o suficiente para se terem mantido asperamente individuais, abertamente desdenhosos da moda, apaixonadamente dedicados a seu trabalho, imunes ao suborno e à sedução, que trabalham longas horas, muitas vezes sem recompensa ou fama, que são motivados por um impulso comum: a alegria de fazer o que bem entendem. Em algum momento ao longo do trajeto eles se destacaram dos outros. Os homens de que estou falando são identificáveis a um mero olhar: seu rosto registra algo muito mais vital, muito mais eficiente, do que a sede de poder. Eles não procuram dominar, mas realizar-se. Operam a partir de um centro que está em repouso. Evoluem, crescem, alimentam só por serem o que são.

« Essa questão, a relação entre sabedoria e vitalidade, me interessa porque, ao contrário da opinião geral, nunca fui capaz de olhar a América como jovem e vital, mas sim como prematuramente envelhecida, como uma fruta que apodreceu antes de ter a chance de amadurecer. A palavra-chave para descrever o vício nacional é desperdício.
E as pessoas que são esbanjadoras não são sábias nem conseguem se manter jovens e vigorosas. Para transmutar energia a níveis superiores e mais sutis é preciso conservar a energia. O pródigo logo fica esgotado, vítima das próprias forças com as quais brincou tão tola e descuidadamente.

« Até mesmo as máquinas têm de ser manuseadas com perícia para se obter delas o máximo resultado. A menos, como é o caso da América, que sejam produzidas em tais quantidades que possamos jogá-las fora antes que fiquem velhas e inúteis. Mas, quando se trata de jogar fora seres humanos, a história é outra. Seres humanos não podem ser desligados como máquinas. Existe uma curiosa correlação entre fecundidade e lixo. O desejo de procriar parece morrer quando o período de utilidade é fixado na prematura idade de quarenta e cinco anos.

« Poucos são os que conseguem escapar do rolo compressor. Sobreviver apenas, apesar das condições, não confere mérito nenhum. Animais e insetos sobrevivem quando tipos superiores são ameaçados de extinção. Para viver além do declínio, para trabalhar pelo prazer de trabalhar, para envelhecer com graça conservando todas as faculdades, entusiasmos e auto-respeito, é preciso estabelecer valores diferentes daqueles adotados pela massa. É preciso um artista para abrir essa brecha na muralha. Um artista é primordialmente alguém que acredita em si mesmo. Ele não reage aos estímulos normais: não é nem um burro de carga nem um parasita. Vive para se expressar e ao fazê-lo enriquece o mundo.

« O homem em quem estou pensando neste momento, o doutor Marion Souchon, de Nova Orleans, não é nada típico. É, de fato, uma curiosa anomalia e por essa razão muito mais interessante para mim. Hoje um homem de 70 anos, cirurgião famoso e bem-sucedido, começou a pintar seriamente com a idade de 60 anos. E não abandonou a prática médica ao fazê-lo. Cinqüenta anos atrás, quando começou a estudar medicina, seguindo os passos do pai, ele instaurou para si mesmo um regime espartano ao qual se manteve fiel desde então.

« Um regime que, devo dizer, lhe permite fazer o trabalho de três ou quatro homens e continuar cheio de vitalidade e otimismo. É seu costume levantar-se às cinco da manhã, tomar um desjejum leve e ir para a sala de operação, depois para o consultório, onde desenvolve seus deveres de funcionário de uma companhia de seguros, responde à correspondência, atende pacientes, visita hospitais e assim por diante. Na hora do almoço, já realizou o trabalho duro de um dia inteiro. Durante os últimos dez anos tem conseguido encontrar todos os dias um tempinho para dedicar à pintura, para ver a obra de outros pintores, conversar com eles, estudar o seu métier como se fosse um jovem de 2 anos que apenas começou carreira. Ele não sai do consultório para um estúdio — pinta no próprio consultório. No canto de uma salinha forrada de livros e estátuas fica um objeto que parece um instrumento musical coberto. No momento em que se vê sozinho, vai até esse objeto, abre-o, e se põe a trabalhar. Toda a sua parafernália de pintura está contida nessa caixa musical negra de aspecto misterioso.

« Quando a luz enfraquece, ele continua com luz artificial. Às vezes, tem uma hora para passar assim, às vezes quatro ou cinco. É capaz de, sem aviso prévio, sair do cavalete e realizar uma delicada operação cirúrgica. O que não é pouco e, no caso de um artista, um procedimento, no mínimo bastante não-ortodoxo.

« Quando perguntei a ele se não pensava fazer da pintura sua única atividade, sobretudo agora que lhe restavam poucos anos pela frente, ele disse que havia rejeitado a idéia porque "Tenho de ter uma outra ocupação para ser variado o grande prazer de trabalhar sem nunca me cansar." Depois de várias visitas, tive a audácia de reformular a questão. Não me parecia possível que um homem tão apaixonado por sua pintura como ele e que, além disso, estava evidentemente tentando concentrar o trabalho de vinte anos em quatro ou cinco, que um homem assim pudesse não enfrentar algum tipo de problema com essa vida dupla ou múltipla. Se fosse um mau pintor, ou um mau cirurgião. Se fosse um mestre numa coisa e um diletante na outra, eu não teria me dado ao trabalho de continuar com o assunto. Mas ele é, reconhecidamente, um dos grandes cirurgiões do seu tempo e, quanto a sua pintura, não há dúvidas, principalmente na opinião de outros artistas consideráveis, de que se trata de um artista sério cuja obra está se tornando dia a dia mais importante, crescendo a uma velocidade assustadora. Ele acabou me confessando que estava começando a se dar conta de que "essa coisa chamada pintar é algo que agita a alma, mexe com a cabeça, absorve tempo, é absolutamente exigente e monopoliza todo o ser da pessoa e acaba por transcender quaisquer outros interesses." "É", acrescentou reflexivo, "tenho de admitir que isso perturbou o ritmo de minha vida, lançou-me em uma jornada inteiramente nova."

« Era o que eu queria ouvir. Se ele não tivesse admitido isso, eu teria formado uma opinião muito diferente dele. Quanto às razões para continuar com sua outra vida, sinto que não tenho nada a ver com isso.

« "Se tivesse a chance de recomeçar sua vida toda de novo," perguntei, "essa vida seria muito diferente da que conhecemos? Você teria digamos, colocado a arte na frente da medicina?"
"Eu teria feito exatamente a mesma coisa de novo," respondeu sem hesitar nem um momento. "A cirurgia era o meu destino. Meu pai foi um cirurgião notável e um exemplo maravilhoso de sua profissão A cirurgia é ciência e arte combinadas e por essa razão, por ora, satisfaz a minha necessidade de arte."

« Fiquei curioso para saber se a preocupação com a pintura havia aguçado o seu interesse pelos aspectos metafísicos da vida. "Vou responder da seguinte maneira," disse ele. "Uma vez que a vida em todos os seus aspectos humanos foi o trabalho de minha vida, pintar veio a ser apenas uma ampliação dessa esfera. O sucesso que eu possa ter tido como médico, atribuo a meu conhecimento da natureza humana. Tratei a mente das pessoas tanto quanto seus corpos. A pintura, sabe, é muito semelhante à prática da medicina. Embora ambas tratem do físico, a sua maior influência e força é, sem nenhuma dúvida, psíquica. A palavra significa para o paciente a mesma coisa que a linha e a forma para o pintor. É quase incrível como uma mera palavra, um ponto ou uma linha podem moldar e influenciar a vida de um indivíduo. Não é assim?"

« No curso de nossa discussão, fiz uma outra descoberta que confirmou minhas intuições e que foi a seguinte: que desde a infância ele tivera o desejo de pintar e desenhar. Quando tinha seus 21 anos, divertia-se fazendo aquarelas. Depois de um lapso de quase trinta anos, passou a esculpir figuras em barro e madeira. Exemplos dessa última direção estavam espalhados por seu minúsculo escritório, todas de figuras históricas pelas quais havia se fascinado no curso de sua vasta leitura. Era uma outra ilustração de sua paixão e dedicação. Como preparação para um giro pelo mundo ele começara a ler história e biografias. Circunstâncias além do seu controle fizeram com que a viagem fosse abortada, mas os livros nas estantes da parede, que ele leu com ardor e empenho, testemunhavam a paixão com que se atira a tudo.

« Homens assim, pensei comigo, ao sair de seu consultório essa noite, são o que há de mais próximo a sábios e santos no mundo profano. Como esses, eles praticam concentração, meditação e devoção. São absolutamente obsessivos ao se consagrar a uma tarefa; seu trabalho, que é puro e descompromissado, é uma prece, uma oferenda que fazem cada dia ao Criador.

«Só no reino ou no domínio em que operam é que diferem das grandes figuras religiosas.»

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Trecho do livro Pesadelo Refrigerado, de Henry Miller.

Fernão Mendes Pinto conta por que fugiu do Reino de Quedá

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Do que passei até chegar ao reino de Quedá, na costa da terra firme de Malaca, e do que aí me aconteceu

Ao outro dia seguinte pela manhã nos partimos deste ilhéu de Fingau, e corremos a costa do mar Oceano em distância de vinte e seis léguas, até abocar o estreito de Minhagaruu, por onde tínhamos entrado, e passados à contracosta destoutro mar mediterrâneo, seguimos nossa derrota ao longo dela até junto de Pullo Bugay, donde atravessamos a terra firme, e aferrando o porto de Junçalão, corremos com ventos bonanças dois dias e meio, e fomos surgir no rio de Parlés do reino de Quedá, no qual estivemos cinco dias surtos, por nos não servir o vento, e neles o Mouro e eu, por conselho de alguns mercadores da terra fomos ver o Rei, com uma adiá ou presente (como lhe nos cá chamamos) de algumas peças suficientes a nosso propósito, o qual nos recebeu com mostras de bom gasalhado. Neste tempo que aqui chegamos estava el-Rey celebrando com grande aparato e pompa fúnebre de tangeres, bailes, gritas, e de muitos pobres a que dava de comer, as exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com sua mãe, que estava já prenhe dele, e por cuidar as murmurações que sobre este horrendo e nefandissíssimo caso havia no povo, mandou lançar pregão, que sob pena de gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito, por razão do qual, nos disseram aí, que por outro novo modo de tirania tinha já mortos os principais senhores do reino, e outra grande soma de mercadores, cujas fazendas mandou que fossem tomadas para o fisco, o que lhe importou mais de dois contos d’ouro, e com isto era já neste tempo que aqui cheguei, tamanho o medo em todo o povo, que não havia pessoa que ousasse soltar palavra pela boca. E porque este mouro Coja Ale que vinha comigo, era de sua natureza solto da língua, e muito atrevido em falar o que lhe vinha à vontade, parecendo-lhe que por ser estrangeiro, e com nome de feitor do Capitão de Malaca, poderia ter mais liberdade para isto que os naturais, e que o Rei lho não acoimaria a ele como fazia aos seus, sendo um dia convidado doutro Mouro que se dava por seu parente, mercador estrangeiro natural de Patane, parece ser segundo me depois contaram que estando eles no meio do banquete, já bem fartos, vieram os convidados a falar neste feito tão publicamente, que ao Rei, pelas muitas escutas que nisto trazia, lhe deram logo rebate, o qual sabendo o que passava, mandou cercar a casa dos convidados, e tomando-os a todos, que eram dezessete, lhos trouxeram atados. Ele em os vendo, sem lhes guardar mais ordem de justiça, nem os querer ouvir de sua boa ou má razão, os mandou matar a todos com uma morte cruelíssima, a que eles chamam de gregoge, que foi serrarem-os vivos pelos pés, e pelas mãos, e pelos pescoços, e por derradeiro pelos peitos até o fio do lombo, como os eu vi depois a todos. E temendo-se el-Rey que pudesse o Capitão tomar mal mandar-lhe ele matar o seu feitor na volta dos condenados, e que por isso lhe mandasse lançar mão por alguma fazenda sua que lá tinha em Malaca, me mandou logo naquela noite seguinte chamar ao jurupango onde então estava dormindo, sem até aquela hora eu saber alguma coisa do que passava. E chegando eu já depois da meia-noite ao primeiro terreiro das casas, vi nele muita gente armada com terçados, e cofos, e lanças, a qual vista sendo para mim coisa assaz nova, me pôs em muito grande confusão, e suspeitando eu que poderia ser alguma traição das que já em outros tempos nesta terra houve, me quisera logo tornar, o que os que me levavam não consentiram dizendo, que não houvesse medo de coisa que visse, porque aquilo era gente que el-Rey mandava para fora a prender um ladrão, da qual reposta confesso que não fiquei satisfeito, e começando eu já neste tempo a tartamelear, sem poder quase pronunciar palavra que se me entendesse, lhes pedi assim como pude, que me deixassem tornar ao jurupango em busca de umas chaves que me lá ficaram por esquecimento, e que lhes daria por isso quarenta cruzados logo em ouro, a que eles todos sete responderam, nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos, nos mandará el-Rey cortar as cabeças. Neste tempo me cercaram já outros quinze ou vinte daqueles armados, e me tiveram todos fechado no meio: até que a manhã começou a esclarecer, que fizeram saber a el-Rey que estava eu ali, o qual me mandou logo entrar, e só Deus sabe como o pobre de mim então ia, que era mais morto que vivo. E chegando ao outro terreiro de dentro, o achei em cima de um elefante, acompanhado de mais de cem homens, afora a gente da guarda, que era em muito mor quantidade, o qual quando me viu da maneira que vinha, me disse por duas vezes, jangão tacor, não tenhas medo, vem para cá, e saberás o para quê te mandei chamar, e acenando com a mão fez afastar dez ou doze daqueles que ali estavam, e a mim me acenou que olhasse para ali, eu então olhando para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos, todos metidos num charco de sangue, um dos quais conheci que era o mouro Coja Ale feitor do Capitão que eu trouxera comigo, da qual vista fiquei tão pasmado e confuso, que como homem desatinado me arremessei aos pés do elefante em que el-Rey estava, e lhe disse chorando, peço-te senhor que antes me tomes por teu cativo, que mandares-me matar como a esses que aí jazem, porque te juro à lei de Cristão que o não mereço, e lembro-te que sou sobrinho do Capitão de Malaca, que te dará por mim quanto dinheiro quiseres, e aí tens o jurupango com muita fazenda, que também podes tomar se fores servido; a que ele respondeu, valha-me Deus, como? tão mau homem sou eu que isso faça? não hajas medo de coisa nenhuma, assenta-te e descansarás, que bem vejo que estás afrontado, e depois que estiveres mais em ti te direi o porquê mandei matar esse mouro que trouxeste contigo, porque se fora Português, ou Cristão, eu te juro em minha lei que o não fizera, inda que me matara um filho; então me mandou trazer uma panela com água, de que bebi uma grande quantidade, e me mandou também abanar com um abano, em que se gastou mais de uma grande hora. E conhecendo ele então que estava eu já fora do sobressalto, e que podia responder a propósito, me disse, muito bem sei Português que já te diriam como os dias passados matara eu meu pai, o qual fiz porque sabia que me queria ele matar a mim, por mexericos que homens maus lhe fizeram, certificando-lhe que minha mãe era prenhe de mim, coisa que eu nunca imaginei, mas já que com tanta sem razão ele tinha crido isto, e por isso tinha determinado de me dar a morte, quis-lha eu dar primeiro a ele, e sabe Deus quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fui muito bom filho, em tanto, que por minha mãe não ficar como ficam outras muitas viúvas, pobres e desamparadas, a tomei por mulher, e enjeitei outras muitas com que dantes fui cometido, assim em Patane, como em Berdio, Tanauçarim, Siaca, Iambé, e Andraguiré, irmãs e filhas de Reis, com que me puderam dar muito dote. E por cuidar murmurações de maldizentes que falam sem medo quanto lhe vem à boca, mandei lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. E porque esse teu mouro que aí jaz, ontem estando bêbado, em companhia de outros cães tais como ele, disse de mim tantos males que tenho vergonha de tos dizer, dizendo publicamente em altas vozes, que eu era porco, e pior que porco, e minha mãe cadela saída, me foi forçado por minha honra mandar fazer justiça dele, e de estoutros perros tão maus como ele. Pelo que te rogo muito como amigo, que te não pareça mal isto que fiz, porque te afirmo que me magoarás muito nisto, e se por ventura cuidas que o fiz para tomar a fazenda do Capitão de Malaca, crê de mim que nunca tal imaginei, e assim lho podes certificar com verdade, porque assim te juro em minha lei, porque sempre fui muito amigo de Portugueses, e assim o serei enquanto viver. Eu então ficando algum tanto mais desassombrado, conquanto não estava ainda de todo em mim, lhe respondi que sua alteza em mandar matar aquele mouro, fizera muito grande amizade ao Capitão de Malaca seu irmão, porque lhe tinha roubado toda sua fazenda, e a mim por isso já por duas vezes me quisera matar com peçonha, só por lhe eu não poder dizer as embrulhadas que tinha feitas, porque era tão mau perro que continuamente andava bêbado, falando quanto lhe vinha à vontade, como cão que ladrava a quantos via passar pela rua. Desta minha resposta, assim tosca, e sem saber o que dizia, ficou el-Rey tão satisfeito e contente, que chamando-me para junto de si me disse, certo que nessa tua resposta conheço eu seres muito bom homem, e muito meu amigo, porque de o seres te vem não te parecerem mal as minhas coisas, como a esses perros cães que aí jazem, e tirando da cinta um cris que trazia guarnecido douro, mo deu, e uma carta para Pero de Faria de muito ruins desculpas do que tinha feito. E despedindo-me então dele pelo melhor modo que pude, e com lhe dizer que havia ainda ali de estar dez ou doze dias, me vim logo embarcar, e tanto que fui dentro no jurupango, sem esperar mais um momento, larguei a amarra por mão, e me fiz à vela muito depressa, parecendo-me ainda que vinha toda a terra após mim, pelo grande medo, e risco da morte em que me vira havia tão poucas horas.

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Este é o Capítulo XIX do livro Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. (Ortografia atualizada por Yuri Vieira.)

Este texto daria um ótimo filme, ¿não? Como se nota aí acima, o argumento já está prontinho. Aliás, os dois volumes da Peregrinação dariam vários filmes… (Leia mais sobre o livro aqui.)

Colin Wilson fala sobre a esposa de William Blake: “Uma tal mulher poderia ter salvo Nietzsche da insanidade”

Colin Wilson

« William Blake passou a vida em completa obscuridade; sua voz sempre teve um tom profético, mas ele nunca falou de um púlpito popular. Enquanto viveu, foi considerado louco, maníaco; nem mesmo seus amigos acreditavam em seu gênio. Blake não se perturbava; continuava trabalhando regularmente, produzindo seus quadros impopulares e seus poemas épicos menos populares ainda, vivendo como podia. Assumiu o saudável ponto de vista dos estóicos gregos, segundo o qual nada lhe faltava de que realmente precisava:

Tenho alegria mental e saúde mental
E amigos mentais e bens mentais
Tenho uma esposa que amo e que me ama
Tenho tudo menos riqueza material.

« A luta de Blake foi muito parecida com a de Nietzsche; e as semelhanças entre os dois na maneira de ver o mundo são espantosas, se considerarmos os oitenta anos de diferença entre o nascimento de um e de outro: Blake é contemporâneo do dr. Johnson, e Nietzsche, de Dostoiévski. Blake, em todo caso, teve a sorte de ter uma esposa que compartilhava de suas lutas, uma jovem absolutamente dócil que sempre viu o marido como um grande homem. Uma tal mulher poderia ter salvo Nietzsche da insanidade.

« A fama, acreditava Blake, era desnecessária para o gênio. O homem nasce só e morre só. Se ele permitir que suas relações sociais o enganem, levando-o a esquecer sua fundamental solidão, estará vivendo uma felicidade ilusória.»

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Trecho de O Outsider, de Colin Wilson.

Admirável e Só para Selvagens, no Rio de Janeiro

Nossa peça, que esteve em cartaz no SESC Copacabana durante o mês de Janeiro, está em cartaz no Teatro Municipal do Jockey, na Gávea. Veja mais informações no cartaz abaixo (clique na imagem para ampliá-la):

Admirável e Só para Selvagens

A trilha sonora original, composta por quizzik, pode ser ouvida online integralmente:

Admiravel e so para Selvagens – Soundtrack by quizzik

John Donne: “Não perguntes por quem os sinos dobram”

donne

"Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".

Meditações VII, John Donne

Com o grande número de catástrofes naturais ocorrendo em seqüência — tsunami no Índico (2004), em Sumatra (2009), terremotos no Haiti (2010), no Chile (2010), enchentes e deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro (2011), e mais terremotos na Nova Zelândia (2011) e, agora, no Japão (2011) — o comentário acima é mais que pertinente. Há sempre alguém assistindo à notícia de um desses acontecimentos com o coração distante, sem imaginar que há a possibilidade de participar como personagem de uma próxima ocorrência. Necessitamos uns dos outros. A compaixão deve estar sempre conosco. Memento mori.

Olavo de Carvalho: literatura e decomposição do idioma

Olavo de Carvalho

« Dou graças aos céus por não ser escritor de ficção nos dias que correm, quando se tornou impossível conciliar linguagem coloquial e correção da gramática.

« Leiam Marques Rebelo ou Graciliano Ramos e entenderão o que estou dizendo. Os personagens deles falavam com extrema naturalidade sem incorrer em solecismos. Hoje em dia, tudo o que se pode fazer é escrever como gente nos trechos narrativos e descritivos, deixando que nos diálogos os personagens falem como macacos nerds. É a literatura exemplificando o abismo entre a linguagem culta e a fala cotidiana. Mas a existência desse abismo prova, ao mesmo tempo, a inutilidade social de uma literatura que já não poderia ser compreendida pelos seus próprios personagens.

« Antigamente esse dualismo extremo de linguagem culta e vulgar só aparecia quando o autor queria documentar a fala das classes muito pobres, afastadas da civilização por circunstâncias econômicas ou geográficas insanáveis.

« Na era Lula tornou-se necessário usá-lo para reproduzir a fala de um presidente da República – e, depois, a de senadores, deputados, líderes empresariais e tutti quanti. Um jornalista decente já não pode escrever na linguagem de seus entrevistados. Não há mais medida comum entre a consciência e os dados que ela apreende. Isso é o mesmo que dizer que já não é mais possível elaborar intelectualmente a realidade, ao menos sem improvisar arranjos linguísticos que estão acima do alcance da maioria.»
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Olavo de Carvalho, no artigo O Brasil falante

Tenho sofrido com esse pobrema

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